Em 1966-67, frequentávamos o terceiro ano do curso de Filologia Românica
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Éramos um dos muitos
alunos da cadeira de Linguística Portuguesa, ministrada pelo Professor
Doutor Paiva Boléo. Para quem não saiba, o Professor Paiva Boléo foi um
dos continuadores do trabalho de Leite de Vasconcelos. Tal como este
primeiro grande mestre da Linguística em Portugal, percorreu todo o
nosso País de um extremo ao outro, contactando com os seus habitantes e,
junto deles, efectuar o levantamento dos dialectos e falares de Portugal
Continental, realizando, com os meios da época, centenas de inquéritos
linguísticos. Como professor da cadeira de Linguística Portuguesa,
alguns dos aspectos especialmente focados no segundo ano em que tínhamos
esta disciplina, durante todo o primeiro período, foi a situação
linguística de Portugal, o estudo aprofundado dos conceitos de dialecto
e falar e a preparação para o trabalho de campo, na realização de
inquéritos. O trabalho que teríamos de fazer durante o período de férias
do Natal seria o de escolher uma localidade ainda não estudada da região
onde vivíamos, de seleccionar um informador que fosse um bom
representante da fala local e conhecedor das muitas actividades aí
realizadas e, com a sua ajuda, realizar, durante cerca de uma semana, o
inquérito pretendido, tendo como apoio o modelo de inquérito linguístico
organizado em anos anteriores pelo nosso professor.
Tal como se refere no prefácio do trabalho que agora recuperámos, o meu
inquérito, por razões que então não referi e que agora, volvidos quase
50 anos, já não constam do meu arquivo neuronal, o trabalho só pode ser
feito durante as férias da Páscoa. E, segundo se deduz da leitura do
prefácio, o período de férias foi insuficiente para a obtenção de todos
os elementos necessários, obrigando-me a passar parte das férias grandes
junto da população da Gafanha do Carmo e, sobretudo, do simpático casal,
que me acolheu como se fosse um dos filhos mais novos e teve toda a
paciência do Mundo para me ajudar na concretização do trabalho. Digo, e
bem, um dos filhos mais novos, porque como tal me trataram. E só muito
mais tarde, já colocado como professor em Aveiro, vim a conhecer, na
década de 1980, vim a conhecer o filho deste casal da Gafanha, que era
um dos sócios do Café Palácio, onde eu passei muitas manhãs e tardes na
correcção não só dos teste dos meus alunos, mas sobretudo das provas
tipográficas, num período de tempo em que era o responsável pela
estruturação e revisão de provas da primeira série de boletins de uma
associação de defesa do património aveirense, recentemente criada e que
fui obrigado a abandonar, alguns anos depois, quando me faltou o maior
auxiliar que tinha neste trabalho minucioso e saturante. Naquela altura
ainda ninguém sabia o que eram computadores. Todo o trabalho tinha de
ser feito com papel e caneta na caça de gralhas tipográficas e, pior do
que isto, na decifração e alinhamento dos textos de alguns
colaboradores, que nos apresentavam os artigos em extensos linguados,
muitas vezes num Português quase indecifrável e com as ideias nem sempre
expostas de forma coerente e alinhada, que tínhamos de reorganizar e
bater pacientemente na máquina de escrever, antes de mandarmos o
material para a tipografia.
Em suma, outros tempos que são já passados e, talvez, nem sejam para
aqui chamados, porque é de um inquérito realizado vinte anos antes que
agora, tal como o azeite, voltou à tona da água e saiu do esquecimento a
que esteve votado durante meio século da nossa vida.
Para a recuperação do «Relatório do Inquérito Linguístico realizado na
Gafanha do Carmo», fomos obrigados a recorrer ao exemplar original, uma
vez que o duplicado em nosso poder está incompleto. Porquê a necessidade
de recorrer ao original entregue ao professor para a nossa avaliação?
Na época em que o inquérito foi feito, não existiam as facilidades de
duplicação de documentos que hoje conhecemos. Praticamente ninguém sabia
o que era uma fotocopiadora. A primeira máquina com esta função de que
tivemos conhecimento e algumas vezes utilizámos foi uma fotocopiadora da
marca Xerox, adquirida pela Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
Era, segundo pensamos, o único exemplar existente em toda a cidade de
Coimbra. Era uma máquina que reproduzia os documentos a preto e branco
com uma qualidade excepcional. Tinha uma característica que hoje não se
encontra nas máquinas actuais, apesar de mais sofisticadas e a cores.
Esta Xerox, que nos permitia obter o que designávamos na época por
xerocópias, imprimia com traços que sobressaíam da folha de papel, de
tal modo que, passando com as pontas dos dedos por cima das imagens ou
dos textos, poderíamos sentir o relevo da impressão. E, seguramente, um
invisual, adestrado na leitura digital, conseguiria detectar e decifrar
o que estava registado na folha impressa. Algumas vezes fizemos esta
experiência. Fechámos os olhos e passámos os dedos sobre a mancha
gráfica, procurando decifrar pelo tacto o que os olhos facilmente podiam
observar e ler. O único problema para nós, enquanto estudantes, é que as
xerocópias eram caras e só recorríamos a elas em caso de grande
necessidade.
Quando queríamos ficar com um duplicado dos trabalhos dactilografados,
tínhamos de recorrer ao papel químico. De tudo quanto fosse texto
ficávamos com uma cópia de reduzido custo. Todavia, para as ilustrações
e desenhos, esta facilidade já não existia.
Relativamente ao material fotográfico, a duplicação era para nós fácil e
acessível, uma vez que revelávamos os rolos e fazíamos as ampliações das
fotografias no laboratório que tínhamos no sótão da casa onde vivíamos,
em Aveiro, na Rua Castro Matoso. Ainda hoje lá continua à espera de
novos trabalhos, apesar de já não entrarmos naquele sótão há umas boas
dezenas de anos. Para os desenhos feitos à mão a partir dos esboços
obtidos a lápis, no local dos inquéritos, e mais tarde redesenhados a
tinta-da-china com uma caneta de aparo fino, próprio para desenho, a
duplicação já não era nem rápida nem fácil. E a passagem veloz do tempo
e a urgência da entrega do original acabou por fazer com que os espaços
destinados às gravuras tivessem ficado até hoje vazios no duplicado a
químico.
Para agora podermos completar o nosso exemplar, a solução foi regressar
à Faculdade de Letras e procurar o original. Graças à ajuda das
funcionárias da Biblioteca das Letras, a quem deixamos aqui expresso o
nosso agradecimento, localizámos o inquérito ao lado de umas boas
dezenas de outros, que constituem actualmente um valioso espólio
linguístico, no segundo piso, numa sala ao lado da dedicada ao nosso
professor de Linguístico e, mais tarde, orientador da tese de
licenciatura, o Professor Doutor Manuel de Paiva Boléo. A duplicação do
material em falta foi relativamente simples, com o apoio das simpáticas
funcionárias da secção de fotocópias e com a ajuda do scanner
manual, que tivemos o cuidado de levar na carteira. Ficámos, deste modo,
com dois duplicados: um exemplar fotocopiado e todas as imagens
digitalizadas no cartão de memória do nosso sistema portátil de
digitalização.
Que diferenças existem entre a versão original e a que programámos e
disponibilizamos para todos os interessados na páginas do espaço «Aveiro
e Cultura»?
À excepção dos capítulos de índole linguística, que suprimimos na
íntegra na versão digital, esta versão actual reproduz todos os
conteúdos do original dactilografado. A única diferença é que, para
facilidade de reprodução e consulta, efectuámos a numeração de todas as
imagens, sejam elas de índole fotográfica, sejam desenhos ou esboços. No
original, as fotografias não apresentam numeração, que apenas foi
atribuída aos esboços e desenhos. Para podermos saber os nomes dos
diferentes constituintes dos objectos representados no original, será
necessária a leitura integral do texto. Na versão digital, isto não é
necessário. Basta-nos clicar nas imagens para as ampliarmos e termos
acesso às legendas explicativas. E, voltando a clicar-se sobre elas,
regressamos à página anterior.
A leitura das diferentes rubricas processa-se como em qualquer
publicação impressa. Ou fazemos uma leitura seguida, clicando nos botões
para a página seguinte ou a anterior, colocados no final de cada página,
ou, clicando no botão «Índice», vamos directamente para ele e
seleccionamos aquilo que pretendemos ver.
Relativamente ao Português, reproduzimos todo o material tal como se
encontra no original. Tratando-se de um inquérito linguístico, no qual
se procurou reproduzir as características linguísticas da fala dos
informadores, a grafia das palavras está de acordo com o que foi dito
por eles, ou seja, procurando registar a maneira de falar, mas sem
recurso a transcrições fonéticas, o que dificultaria a leitura dos
conteúdos por todos nós, muito especialmente por quem nunca estudou o
Código Fonético Internacional. Este código fonético não é de fácil leitura
para quem nunca o estudou e, pior do que isto, é extremamente difícil
(para não dizer impossível) de registar utilizando-se uma vulgar máquina
de escrever. Por isso, quando as vogais eram pronunciadas de forma
aberta, utilizámos no original o acento grave ou um sinal de abertura ou
de fechamento de vogal colocados manualmente debaixo dos respectivos
grafemas, sempre que a pronúncia fugia à pronúncia normal. Na versão
digital, abdicámos disto, até porque, mesmo com o recurso a um
computador, continua a ser extremamente difícil de escrever. Isso obrigar-nos-ia a ter de
arranjar um código de escrita específico, o que, ainda assim, seria
incompatível com os teclados que utilizamos actualmente nos
computadores. Esta variação em relação à grafia tradicional, que
mantivemos, pode ser facilmente notada na parte relativa, por
exemplo, ao devocionário fornecido pela ti Rosa de Jesus Bexina ou na reprodução quase integral de algumas conversas entre inquiridor e informador.
Para não nos alongarmos demasiado, resta-nos
desejar que este trabalho de reconversão possa ajudar as gerações
actuais a conhecer um pouco do nosso passado regional. E, no momento
actual, a Gafanha do Carmo, que então conhecemos, não é mais do que uma insignificante parcela do vasto espaço populacional
constituído pelas diferentes Gafanhas do
distrito de Aveiro.
Aveiro, 6 de Março de 2017
Henrique J. C. de Oliveira |