Alvorada no Cuango

Imagem aqui se a houver

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— Que horas são, Ulisses?

— Já estás acordado, Graça marques?

— Já. Há um longo pedaço. Estava a sonhar com a família. Acordei de repente, sem saber se estava aqui ou em casa. O nosso capelão ainda ressona.

— Já não vai ressonar por muito tempo. São agora quatro da manhã. Temos mais meia hora. Ouve lá, como é que sabias que eu estava acordado, para me estares a chamar a esta hora da madrugada?

— Pareceu-me ver-te levantar o braço. Pelo menos, no escuro, deu-me a impressão de ter visto uma luz ténue, de cor esverdeada, a deslocar-se no espaço.

— Tens boa vista! Era eu a ver as horas. Parece-me que fiz bem em ter tirado a tampa de cabedal. Embora ténue, sempre é uma luz esverdeada na escuridão das noites, para me dar informações.

— Também não conseguias dormir? Estavas também a pensar na família?

— Sonho muitas vezes com ela. Mas agora não! Estava preocupado com as horas. Além disso, isto é habitual.

— Habitual? Porquê?

— Costumo acordar sempre entre as quatro e quatro e meia da manhã.

— Tão cedo? Mas... por que razão?

— Um hábito, Graça Marques.

— Um hábito?

— Sim, um hábito.

— Explica lá isso melhor. Não estou a ver porquê.

— Isto é habitual. É um hábito que já vem de miúdo. Habituei-me a acordar, durante vários anos, pelas quatro, quatro e meia da manhã.

— Tão cedo?! Para quê?

— Olha, temos de falar mais baixo. Quando não, acordamos o capelão.

— Estamos a falar baixo. Ele nem dá por nada. Explica-te melhor. Acordavas às quatro e meia para quê?

— Para estudar, até às horas do comboio.

— Até às horas do comboio?

— Sim, Graça Marques. Não sou tripeiro, mas conheço o Porto como as minhas mãos. Fiz quase todo o meu curso no Liceu Alexandre Herculano. Todos os dias, às sete da manhã, ia de abalada no comboio até Campanhã. Chegava lá pelas oito e dez. Depois, era subir, a toda a pressa, a rua Pinto Bessa, para estar às oito e meia nas aulas. Isto, durante uma série de anos. Creio que é por isto que acordo, sistematicamente, entre as quatro e as quatro e meia...

— Não me digas que tens um despertador na cabeça, Ulisses...

— É capaz de ser isso mesmo!

— Sempre brincalhão! Achas isso mesmo?

— Acho. Para acordar a horas, tinha um despertador que fazia um barulho que acordava a casa toda. A preocupação de não acordar os meus pais fazia com que eu, sistematicamente, acordasse uns minutos antes dele tocar. Carregava no botão, para impedir a barulheira. Levantava-me sem fazer barulho. Arranjava-me e ia estudar até às horas do comboio. Não sem antes ter aquecido o pequeno-almoço que a minha mãe me deixava já preparado, em cima do fogão. Por isto, acho que fiquei com o despertador dentro de mim.

— Essa tua história é curiosa! — ouviu-se, do outro lado do quarto, uma terceira voz.

— O capelão já está acordado? Ainda há pouco parecia uma locomotiva!

— É natural, Ulisses. Acordámos o capelão com a nossa conversa. Fomos indecentes! Esquecemo-nos completamente dele!

— Não foram nada. Há muito que estava a ouvir a vossa conversa. E já me arrependi de ter falado.

— Arrependeu-se? Porquê?

— Porque vos cortei a conversa. Não sabia que tu também tinhas uma costela tripeira, Ulisses!

— Não sou tripeiro, capelão. Sou de Coimbra. Só que passei quase toda a minha infância a 18 quilómetros do Porto.

— A 18 quilómetros? Onde vivias?

— Vivia em Espinho.

— Como é que lá foste parar?

— Era aqui que o meu pai trabalhava. Era professor primário.

— Era? Já não é?

— Era e é. Mas já não em Espinho... Mudou-se por minha causa.

— Como é que foi parar a Espinho?

— Segundo ouvia ao meu pai, estudou em Coimbra. Esteve matriculado em Medicina e teve de abandonar por falta de dinheiro para as propinas. Acabou por tirar um curso mais barato, de dois anos apenas, e foi parar a Espinho. Conheceu aqui a minha mãe, casaram e aqui viveram durante vários anos. Vivia na casa existente na própria escola, ao lado da câmara municipal. Foi director da escola, delegado escolar, fotógrafo, juiz de paz, em suma, um homem polivalente, que se interessava por electrónica, fotografia, cinema...

— Como é que foste parar ao Porto? Não havia escolas em Espinho?

— Não, capelão. Tirando o colégio de São Luís, não havia ensino oficial em Espinho. Ou antes, no mesmo ano em que fiz o exame de admissão ao liceu, arrancou em Espinho uma escola comercial e industrial, num antigo palacete perto do largo da feira. Cheguei também a fazer o exame de admissão à escola comercial. Como passei nos dois exames, fui para o liceu. Não sem antes ter frequentado, durante dois anos, o colégio de São Luís. Só que me fartei e exigi ao meu pai a mudança para o liceu, no Porto; caso contrário, recusava-me a continuar os estudos...

— Na altura, eras um fedelho, Ulisses. Como é que podias recusar-te? Como é que o teu pai foi na conversa?

— Era um fedelho, capelão, mas não era parvo. Parvo seria só na estatura, porque andava pelos meus doze anos. Podia e pude exigir. E muito bem, capelão. O meu pai foi o primeiro a dar-me razão... Mas isso são contos largos. Já não temos tempo para eles. São quatro e meia. Está na hora da alvorada. Tenho que ir ver se o pessoal já está levantado. Às seis da manhã, na pior das hipóteses, temos de estar na picada. Sabem que mais? Marquei o pequeno-almoço para as cinco e meia e temos de cumprir os horários...

— Aguenta um pouco mais. Faz a vontade ao capelão, Ulisses. Explica lá como é que exigiste a saída do colégio para ires para o liceu.

— Isso são contos largos, Graça Marques. Foi tudo por causa de um estúpido de um professor de Português, que passava as aulas a falar dos livros que escrevia e não nos ensinava nada... Mas isto são contos largos. Não é conversa para agora. Agora, vou acender o petromax. Aliás, acendam-no vocês. Não posso perder mais tempo. Tenho a minha lanterna. Vou arranjar-me e ver se o pessoal já está acordado.

— Não te esqueças, Ulisses, que ficas a dever-nos o resto da tua história.

— Está certo, capelão. Assim que tivermos uma oportunidade, conto-vos o resto da história.

— E também as tuas conquistas, Ulisses. Estás a dever-me isso.

— Estou a dever-te, Graça Marques? Acho-te piada! Tu fechas-te sempre em copas. Nunca falas de ti. E queres que eu te conte a minha vida amorosa?... Até já, que o tempo vai avançado. Acendam o petromax, que eu vou ver do pessoal.

Às cinco e meia da manhã, já todo o pessoal estava a tomar o pequeno-almoço e a preparar-se para deixar o destacamento do Cuango.

Eram seis menos dez, quando a Berliet e o unimogue pararam ao lado do edifício do comando, já com o pessoal em cima, à espera dos oficiais para iniciarem o regresso.

— Como é, alferes? — perguntou-me o furriel Santos. — Mantemos as mesmas posições da vinda?

— Pode ser. Vão os dois furriéis no unimogue, juntamente com o doutor. Nós, eu e o capelão, regressamos na Berliet. À frente, a abrir o caminho.

— É o alferes que vai levar a Berliet?

— Não. É o condutor. Porquê?

— Por nada, alferes.

— Ora morda aqui o meu dedo, a ver se eu deixo. A sua pergunta traz água no bico. Ou não trará?

— É que se fosse o alferes a conduzir, pedia-lhe para não carregar tanto no prego.

— Mas porquê? Só acelerei nas rectas e não zona plana do Suaicomba...

— É que o unimogue não tem a agilidade da Berliet, alferes.

— Esteja descansado, que eu não lhe vou dar trabalho. Nem a si nem aos mecânicos que vieram consigo. Vamos fazer a viagem nas calmas... E com muitas paragens! E, mesmo assim, vamos chegar cedo a Quimbele. Muito a tempo de ainda irmos ao cinema, que hoje é quarta-feira. É dia de cinema.

Preparava-me para tomar o meu lugar na cabine da Berliet, ao lado do capelão, quando me lembrei de uma coisa importante:

— Esperem dois a três minutos. Tenho de ir rapidamente à cantina. Quase me esquecia do mais importante...

— Olha que são quase seis horas, Ulisses. Se queres cumprir o teu horário, tens de te despachar.

— Não se preocupe, capelão. Vai ser rápido. Daqui a pouco já estamos a rolar.

Afastei-me rapidamente e chamei o moço responsável pela cantina do destacamento:

— Anda daí comigo. Vamos lá dentro, à cantina. Esqueci-me de uma coisa muito importante.

Quando regressei, estava o médico sentado, ao lado do condutor, e o capelão atrás, sentado num caixote, juntamente com os três soldados que vieram na Berliet.

— Como é? Vocês trocaram de lugares? O capelão vai aí atrás, no sítio da carga?

— Anda lá. Levas aí o médico, a teu lado. Ajuda-lo com a máquina fotográfica. Vocês não querem tirar fotografias durante o regresso?

— Querer, queremos, capelão. Mas aí não vai bem...

— Não vou bem? Vou mesmo atrás de ti. Se os soldados conseguem andar aqui, sentados na caixa em cima de caixotes, também eu consigo.

— Anda lá, Ulisses. O capelão tem razão. Está na hora de arrancarmos.

Passavam dois a três minutos das seis quando deixámos para trás a tabuleta com a ementa habitual do destacamento. Ainda não tínhamos acabado de percorrer a avenida ladeada pelas frondosas mangueiras e já o capelão começava a procurar recolher alguma fruta, obrigando-me a olhar para trás.

— O que é que tu foste fazer à cantina, Ulisses? Até parecia que estavas a esquecer-te de...

— De algo gravíssimo, capelão. De gravíssima importância!

— Gravíssima?!

— Sim, capelão. Gravíssimo, fundamental, essencial e outras coisas em –al, como vital.

— Não estarás a exagerar, Ulisses?

— De modo nenhum, capelão.

— Então o quê? Que raio foste fazer à cantina?

— Comprar tabaco.

— Tabaco?

— Sim, capelão. Tabaco.

— Mas tu também fumas? Imaginava-te mais ajuizado...

— Não é para mim, capelão. Eu só fumo de vez em quando. É raríssimo.

— Então para que raio foste tu comprar tabaco?

— Trago os bolsos do camuflado cheios de maços de tabaco, mas não é para mim.

— Não é para ti? Então para quem? Para o teu pessoal?

— Também para eles, quando me pedem. Mas não é para eles. Vão ser precisos para a viagem...

— Para a viagem? Não te estou a entender...

— Não tem importância, capelão. Não está a perceber agora, mas lá mais para diante já vai perceber. Agora, vamos antes apreciar a viagem. Não me faça voltar para trás, que tenho de ir atento à picada. Quando não, ainda sou capaz de enjoar. Apreciemos a paisagem, que o sol já nos alumia há um bom pedaço. Já nos aquece e dá cor a tudo. Vamos ter uma viagem cheia de pitoresco. — continuei, voltando-me agora para o médico, mas continuando a falar em voz alta, para o capelão ouvir. — Deixem passar a região do Suaicomba e vão ver como tudo muda. Aqui é tudo monótono. Mas quando chegarmos à região da Quimabaca, acabam-se as monotonias. E tu, Graça Marques, prepara-te, que vais tirar boas fotos na minha companhia.

— Com a viatura em andamento, Ulisses?

— Em andamento e também parada. Não te preocupes, que eu digo-te o que tens de fazer.

 

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