Um açoriano de gema

 

Carmona, 11 de Junho de 1973

 

Ainda há dois dias vos mandei um razoável maço de aerogramas, escritos em Sanza Pombo, e aqui me têm a cumprir a promessa do final da correspondência. Disse-vos que voltaria a conversar convosco um ou dois dias depois. Estou a cumprir. Disse também que retomaria a escrita no ponto onde tinha ficado; mas só pegarei no fio da meada depois de vos dizer como e onde me encontro neste momento.

Prestando atenção ao início desta missiva, facilmente se concluirá que já não estou em Sanza Pombo. Saí daqui em viatura militar, aproveitando uma coluna de reabastecimento. Não fiz a viagem sozinho. Além de todos os elementos da coluna da C.C.S., tive a companhia de alguns oficiais. Andei com eles durante todo o dia. Foram a minha companhia de passeata nas primeiras horas desta breve estadia em Carmona.

Lembram-se ainda de um célebre raspanete que o Comandante de Batalhão, o tenente-coronel Soares Coelho, me passou em Sanza Pombo? Lembram-se ainda quem foi o principal causador desse raspanete, pelo menos a causa primeira, porque o principal culpado fui eu por me ter deixado levar na conversa?

Foi precisamente na companhia desse mesmo oficial e da esposa que andei ontem a passear. E não apenas com estes dois amigos. Outros oficiais aproveitaram a coluna de reabastecimento para passarem o domingo na cidade: o camarada Belo e respectiva esposa e aquele oficial açoriano de outra Companhia, que nós costumávamos arreliar em Tomar, para o enervarmos e pôr fora dos carris.

Estão agora a perguntar qual a razão de nos metermos com esse camarada, a ponto de lhe fazermos perder as estribeiras. Por inimizade? Por má camaradagem? Por embirrarmos com ele?

Nada disso! Sempre fomos e continuamos a ser amigos. Era e continua a ser um moço impecável, educado, amigo do seu amigo, um companheiro com quem gostávamos e continuamos a gostar de andar.

A razão é muito simples e passamos a explicá-la: este camarada é açoriano.

O quê? Açoriano? E é por isto que vos metíeis com ele?

Exactamente! Apenas pelo facto de ser açoriano.

Continuam certamente a não perceber a importância que isto tem, a ponto de o levarmos a ficar irritado! E têm toda a razão! Ainda não vos dei uma explicação satisfatória, uma explicação capaz de justificar o nosso reprovável procedimento: irritar uma pessoa de quem gostamos. Parece até um autêntico disparate! Mas não é!

O Costa, assim se chama o alferes açoriano cuja Companhia foi parar a uma «zona de combate diuros», é um companheiro simpático, educado (como já referi), um caixa de óculos como eu, mas muito mais jovem e franzino. Um percalço nos estudos fez com que tivesse sido chamado mais cedo e visse o curso bruscamente interrompido. Azares de quem estuda e consequências deste período de guerras coloniais, que têm lixado a vida e os estudos a muitos de nós! Encontrámo-nos pela primeira vez na recruta como soldados-cadetes, em Mafra; e voltámos a encontrar-nos no mesmo local durante a especialidade; e voltámos a estar juntos em Tomar. E ficámos no mesmo Batalhão, mas em Companhias diferentes.

Durante o rápido meio ano que passámos em Tomar, no R.I. 15, o Costa era um dos nossos companheiros de patuscadas. No seu estado normal, as suas conversas eram iguais às de todos nós, mal se notando que era açoriano. Todavia, quando se enervava, a maneira de falar mudava substancialmente. Não era mais o mesmo Costa, com um registo igual aos outros. Vinham à superfície todas as marcas linguísticas características da terra que o viu nascer e onde terá passado a maior parte da juventude. Eram não apenas os termos regionais próprios dos Açores, que vinham à tona da água, mas também e sobretudo aquela pronúncia própria daquelas ilhas, uma fala por vezes cerrada, com a fonética alterada em relação à nossa norma e com os «us» pronunciados à maneira do Francês.

Quando descobrimos que, num estado de nervosismo e irritação, nos surgia um Costa diferente, genuíno, transpirando por todos os poros a terra que o formara, a partir dessa altura tivemos muitos momentos em que o irritámos, o fizemos passar dos carretos, só para termos o prazer de o ouvirmos metamorfoseado num verdadeiro ilhéu de gema, muito mais castiço e agradável que um Vitorino Nemésio, nas suas palestras televisivas. Estes momentos só terminaram no dia em que caímos na asneira de lhe explicar os motivos que nos levavam a arreliá-lo. Deixou de se zangar connosco. E nunca mais tivemos o açoriano genuíno que tanto prazer nos dava.

Estão agora a perceber a razão do nosso censurável procedimento em Tomar? Seguramente que, se tivessem vivido esses momentos, compreenderiam melhor o nosso comportamento, um comportamento onde nunca deixou de se manter, por um só minuto que fosse, a amizade e o prazer da confraternização e um saudável convívio. Mas a causa mais grave, muito mais forte, de se nos terem acabado definitivamente esses momentos de Tomar não estará talvez aqui. Além de que tudo passa e nada permanece na mesma, a razão mais importante estará nisto: fomos mobilizados. Viemos parar com o corpo aqui, a este enorme país africano! E cheios de sorte! Antes Angola que a Guiné ou Moçambique.

Tomar está aí, muito longe de nós, tal como está tudo o que nos é querido: a família, os amigos e as nossas coisas. Acabaram-se aqueles serões. Acabaram-se aquelas patuscadas quase diárias. Acabaram-se os passeios de descoberta dos belos recantos à volta de Tomar, nos nossos tempos livres, depois da instrução dos recrutas! Em suma, tudo passou, com uma incrível rapidez! Tudo, menos estas boas recordações, para nos ajudarem, de vez em quando, a amenizar este desterro em terras que não são nossas.

 

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