Fazenda, café e salalé

 

Estou neste momento com as fotografias na mão. Acabo de as rever. São trinta e oito fotografias. As imagens estão todas boas. Não há nenhuma que se possa considerar estragada ou mesmo fraca. Todas com boa qualidade de iluminação, bem enquadradas e, sobretudo, com um bom recorte, o que significa que a objectiva mantém as mesmas características: imagens nítidas e bem recortadas.

Ocupei o resto da semana a procurar recuperar o tempo perdido em que estive sem máquina. Efectuei uma reportagem fotográfica completa, em diapositivos, da povoação em que me encontro e também dos arredores.

Tirando pequenos problemas menos agradáveis, como a fuga de um GE da prisão e os sobressaltos, de vez em quando, com o estômago, que teima em doer e dar-me cabo da boa disposição, os tempos livres têm sido ocupados ou a tirar fotografias, ou a conviver com o médico e o pessoal civil e militar aqui em Quimbele. Rotineiramente, tenho vindo a assistir aos treinos da nossa equipa de futebol de salão e conversado com o meu braço direito, o furriel Rodrigues, sem mencionar alguns serões em casa de civis e as noites em que há cinema. Olhem, por exemplo, na quinta-feira, tivemos cá o «Caminho para a Aventura». Há dois dias, dia vinte e três, vi um filme muitíssimo bom com Anthony Quinn e Virna Lisi, intitulado «A Vigésima Quinta Hora».

Deixemos agora os filmes, que têm menor importância, e voltemos ao tema da nossa conversa — a reportagem fotográfica.

Tenho andado, nestes últimos dias, a procurar guardar para daqui a alguns anos os locais onde tenho estado.

     
   
     
 

Na sexta-feira, dia dezoito, registei um mercado em Quimbele. Foi um dia em que a povoação ficou muito concorrida, com muito pessoal das sanzalas dos arredores, porque foi um dia de mercado de café. No dia seguinte, um sábado, ocupei a manhã a fotografar as sanzalas dos arredores. Da parte da tarde, tive o convite do Senhor Lobo para ir com ele no Land-Rover à fazenda que possui na zona da picada entre o Alto Zaza e a estrada alcatroada que liga Quimbele a Sanza Pombo. Graças a ele, devo ter ficado com sete bons diapositivos e, sobretudo, fiquei a conhecer a Fazenda Nossa Senhora da Conceição, ao lado da qual passei tantas vezes, durante o período inicial desta comissão em que estive destacado no comando do Alto Zaza.

A Fazenda Nossa Senhora da Conceição ocupa uma vasta zona plana, a perder de vista, próxima do cruzamento da picada do Alto Zaza com o Cuango.

A parte edificada, na extremidade da picada de acesso, é protegida por um edifício fortificado, onde os habitantes poderão refugiar-se em caso de perigo. Além do café, a principal produção de toda a região do Uíje, a grande riqueza desta fazenda reside na criação de gado bovino. O número de cabeças é elevado, sendo o Senhor Lobo o grande fornecedor de carne em toda a região envolvente.

 
 
 
 
 

Durante a agradável tarde passada na fazenda, pude fotografar aspectos bastante interessantes, de entre os quais destaco dois, não só pela beleza como pelo exotismo aos olhos de um europeu.

 

 
 

Não sei se alguma vez vos falei disto. Creio que sim. Pelo menos das formigas perigosas destas paragens já vos contei o episódio em que, durante a operação no Quitari, tivemos de levantar à pressa o nosso acampamento e escolher uma zona mais saudável. Mas das formigas salalé creio que ainda nada vos disse. Estas, ao contrário das outras, são inofensivas. A grande particularidade da salalé está nas monumentais cidades por ela edificadas. É uma espécie facilmente identificada à distância, graças às suas técnicas de construção. Tal como irão poder ver nos diapositivos que aí receberão dentro de alguns dias, a formiga salalé constrói altos morros de argila, cujo interior deve conter verdadeiras galerias e estradas formigais por onde elas se deslocam.

O morro que fotografei apresenta uma altura com dois metros ou mais. Se eu sou alto, com um metro e oitenta, e mesmo assim o cume fica muito acima da minha cabeça, por aqui já podem avaliar que a minha estimativa não deve andar longe da realidade. E o aspecto é digno de fazer inveja as torres rendilhadas de uma catedral no estilo da que estão ainda a construir, salvo erro, numa cidade do norte de Espanha. Não tenho agora bem presente, nem o nome da cidade, nem o do arquitecto que penso já ter morrido há muito tempo, apesar da igreja ainda estar por concluir. Estou para aqui a procurar puxar pela memória, para ver se me lembro. Tenho quase o nome do arquitecto debaixo da língua; mas quanto mais penso, mais o nome parece fugir-me. Há de surgir quando já não vier a tempo! Esperem lá! Parece que já me surgiu! Penso que o nome é Gaudi ou algo parecido.

Inicialmente formado pela argila que as formigas vão trazendo para o exterior, devido à abertura das galerias, as chuvas fortíssimas deram ao montículo afunilado, semelhante ao cone de um vulcão em miniatura, um aspecto rendilhado, cheio de sulcos provocados pela escorrência das águas. Aqui e ali, zonas salientes põem em destaque paredes estreitas de argila, que me fazem recordar os arcobotantes e os contrafortes das catedrais.

Com uma tonalidade vermelha característica de toda esta zona de terra barrenta, o morro da salalé destaca-se perfeitamente do ambiente onde se encontra, mesmo à distância, sobressaindo como um elemento contrastante com a verdura da mata envolvente. Este, particularmente, um dos mais altos que encontrei até hoje, fica a uns escassos metros do edifício principal da fazenda, quase no prolongamento de uma das paredes laterais.

Contornei-o e apreciei-o em várias perspectivas: tendo por fundo o verde da mata; do lado oposto, tendo por fundo as paredes das construções humanas; em posição rente ao chão, tendo por fundo o céu acinzentado mas luminoso deste período inicial do cacimbo. De qualquer dos ângulos, embora os contornos e cumes afilados mudem de aspecto, este trabalho das formigas, ajudadas pela erosão das chuvas, afigurou-se-me como um monumento natural digno de rivalizar com as nossas catedrais góticas, salvaguardadas as respectivas proporções. Lamentei apenas que a objectiva da minha máquina fotográfica não me permitisse uma maior aproximação, para registar o que observei em pormenor, quando tirei os óculos e me pus a observar de muito perto as laboriosas formigas. Sempre imperturbáveis e indiferentes à minha presença, como se eu ali não estivesse!

Admirei as longas filas de caminhantes, sempre laboriosos, que paravam de vez em quando e se tocavam com as antenas, quando se cruzavam em sentidos opostos na sua faina permanente, para logo retomarem a caminhada. Certamente que esta paragem e o tocarem-se com as antenas não será mais do que uma forma de comunicação.

Depois de uns longos minutos de silenciosa contemplação e reflexão, afastei-me do morro das salalés em direcção à casa. Parei junto do edifício. Levantei a máquina fotográfica, que trazia a tiracolo, e abri-lhe a bolsa protectora de cabedal. Colocando-a na posição de imagem vertical, enquadrei, apanhando todo o conjunto e parte do edifício, para permitir uma melhor apreciação do ambiente e localização. Tirei apenas uma fotografia. Uma única apenas, mas suficiente para, daqui por uns dias, vocês aí poderem ficar com uma ideia das maravilhas com que vou deparando de vez em quando e com que me vou deliciando e compensando o meu afastamento de vós. Quem sabe, daqui por uns anos, estas mesmas imagens não irão ajudar-me a reviver todas estas experiências! Talvez encontre, então, o mesmo prazer na projecção destes diapositivos que senti, há uns meses atrás, após a minha chegada a Angola, quando fui gentilmente recebido pelo comandante da polícia de Luanda e esposa. Em parte, devo confessá-lo, foram eles que me fizeram descobrir o prazer das imagens projectadas num grande ecrã de cinema e me levaram a trocar as fotografias tradicionais pelos diapositivos.

Voltando novamente à espécie de formigas que me levou a escrever estas linhas, tenho de concluir que a mãe Natureza é digna da nossa profunda admiração e respeito. E estas formigas e a sua organização social são também dignas da nossa observação e reflexão. Tal como todas as formigas e outros insectos com elevada organização social, de entre os quais me estou agora a lembrar das abelhas, temos aqui autênticas sociedades animais perfeitamente estruturadas, com milhares de indivíduos e várias categorias sociais. Ao contrário da nossa sociedade, onde muitos querem mandar e ninguém se entende, estas formigas são uma sociedade em que todos trabalham para o bem comum, agrupados em torno de uma rainha que os mantém coesos, sem intrigas nem disputas de terreno.

O outro aspecto que registei e que muito me agradou foi o recanto idílico, na área onde predominam os cafeeiros, junto a uma linha de água. Tirando o manso murmúrio da água corrente e o farfalhar quase imperceptível da folhagem agitada por uma leve e morna aragem, contrastante com a frescura do local, reinava aqui um sossego repousante e convidativo à reflexão e à comunhão com a natureza.

Estou agora a rever mentalmente aquele maravilhoso local e faço votos para que o diapositivo fique bem, para que vocês aí possam melhor aferir da veracidade das minhas palavras e, sobretudo, para que eu próprio, um dia mais tarde, finda esta comissão que ainda nem a meio chegou, possa compensar estes dois anos fora de casa, longe de vós e dos amigos, revendo os locais e recordando aqueles bons momentos que me têm permitido a fruição de minutos de rara beleza e prazer, num universo tão diferente daquele onde nasci. Daí que posso dizer que, apesar de tudo, este desterro forçado vai tendo alguns aspectos positivos. Nem tudo é mau, se soubermos abrir os olhos para as belezas locais e partilharmos as experiências com os que nos rodeiam.

Deixemos as fugas no espaço e voltemos às quatro paredes do quarto onde agora vos estou a escrever. Já não devo ter muito tempo para divagações e escritas, porque as horas vão avançando e não tarda muito que desliguem o gerador que nos ilumina. Por isso, vou agora terminar e retomo mais logo.

Pensando bem, vou mesmo dar por finda esta colecção de aerogramas, porque não sei quando poderei voltar a escrever-vos e a ficar na vossa companhia.

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