Recuperação fotográfica

 

Depois de uns larguíssimos minutos passados no edifício do comando e sem mais nada de importante para tratar, resolvi aproveitar o resto da manhã para uma volta pela vila e terminar no Briosa Bar, para dar uns dedos de conversa com o dono ou com outros civis. Já na descida, após a pequena igreja de Quimbele, ouço o meu nome do outro lado da rua. Parei. Voltei-me. Orientei-me na direcção do som. Era o comerciante, onde habitualmente faço as minhas compras, que me chamava, com um ar de pessoa satisfeita e de braço erguido.

— Alferes Ulisses, o alferes podia fazer o favor de aqui chegar? Tenho notícias agradáveis para o alferes.

Atravessei a rua e dirigi-me ao meu interlocutor.

— Então, como vai?

— Bem, obrigado. E o alferes?

— Como sempre. Umas vezes melhor, outras de molho como o bacalhau.

— Como o bacalhau, alferes? Então porquê? Aconteceu-lhe alguma coisa?

— O que é que me havia de acontecer? É a porcaria do estômago, que de vez em quando me prega partidas e me tem feito andar de dieta. Então, qual é essa novidade que o fez sair da loja a gritar por mim?

— Tenho uma boa notícia que o vai deixar feliz, alferes.

— Valha-me ao menos isso! Não me diga que foi a máquina que já chegou?!

— Exactamente, alferes. Acertou em cheio. Acabo de a receber agora mesmo. Demorou, mas chegou!

— Finalmente! E está bem reparada? Estará em boas condições?

— Isso é o que o alferes terá de averiguar. Mas deve estar. É claro que sim, alferes. Não a iam mandar se não estivesse!

— É preciso experimentá-la, para ver se não lhe alteraram as características. Tirava boas fotografias.

— E deve continuar a tirar, alferes. O problema não era das lentes.

— Talvez! Ao desmontarem-na para conserto, podem ter-lhe alterado as características. À cautela, não lhe vou meter nenhum rolo de diapositivos. São muito mais caros. E pior do que isto, difíceis de arranjar. Tem rolos de 35 milímetros a preto e branco?

— A preto e branco e a cores. Os que o alferes quiser.

— A preto e branco. Venda-me um. Vou-o tirar. Vou fazer várias experiências e, daqui a pouco, tem-me cá de volta, para o mandar revelar. Quanto lhe devo?

— Não me deve nada, alferes. A máquina está dentro da garantia.

— Não me refiro à máquina. Quanto lhe devo do rolo?

— Não me deve nada. Ofereço-lho. Experimente a máquina e veja se está tudo em ordem.

— Onde é que eu a posso carregar?

— Aqui mesmo, alferes.

— Não pode ser aqui. Tenho de meter o rolo num lugar às escuras. Não tem um quarto fechado onde não entre luz?

— Só se for lá dentro. Fecha as janelas e a porta e fica completamente às escuras. Mas não vai conseguir meter o rolo sem ver nada!

Perante a surpresa do comerciante, enfiei-me numa sala que ele me indicou e fechei as janelas e a porta, ficando completamente às escuras. Servindo-me exclusivamente do tacto, tirei o rolo da caixa e do invólucro de protecção. Abri a tampa do corpo da máquina e encaixei cuidadosamente a extremidade afunilada da película no carreto, procurando acertar depois os orifícios laterais com o rolete dentado de tracção. Enfiei a cassete no devido lugar e verifiquei novamente se a película estava na posição correcta. Fechei a máquina e abri as janelas e a porta, regressando à zona comercial.

— Então, alferes, conseguiu meter o rolo às escuras?

— Claro!

— Nada claro para mim, alferes. Ora explique-me uma coisa, se me fizer o favor. Não podia ter metido o rolo aqui mesmo na minha frente, como toda a gente? Qual o interesse de estar a complicar as coisas? Para quê fazer às escuras uma coisa que pode ser feita às claras com muito mais facilidade?

— Eu explico. Quantas fotografias permite tirar este rolo?

— Trinta e cinco ou trinta e seis, penso eu.

— Pois eu vou tirar umas trinta e oito, se não for mesmo mais!

— Como assim, alferes? Não me diga que consegue esticar o rolo!

— Não consigo. Ele não estica. Mas se o tivesse carregado aqui na sua frente, só poderia tirar garantidamente trinta e seis imagens. Como carreguei a película quase em total escuridão, vou poder aproveitar a extremidade que habitualmente fica inutilizada. Esta parte inutilizada corresponde, à vontade, a umas duas ou três imagens. E agora, se me dá licença, vou deixá-lo. Até já. Antes do almoço, passarei por aqui para lhe entregar o rolo para revelação.

Não devo ter gasto mais do que meia hora para tirar todas as fotografias. Foi um tal disparar nas mais diversas condições: a objectos colocados à distância mínima permitida pela objectiva, a diferentes aspectos de Quimbele sob um sol pouco brilhante e de um amarelado mortiço, a interiores à luz de uma lâmpada normal, com o diafragma todo aberto e uma obturação lenta, com a máquina colocada sobre uma mesa e utilizando o disparador automático, a mim mesmo em frente a um espelho, colocado no exterior da messe por causa da luz; em suma, um verdadeiro teste para avaliar as qualidades da máquina. Antes do almoço, estava de novo na loja do comerciante.

— Já gastou todo o rolo?!

— Não lhe tinha dito que em pouco tempo faria o teste à máquina? Devem estar aí umas trinta e nove imagens. Quando é que poderemos ver as fotografias?

— Penso que amanhã. Estou também com curiosidade em ver o que o alferes fez com a máquina. Preciso de ir a Sanza Pombo. Vou lá hoje, a seguir ao almoço. De certeza que o fotógrafo revela ainda hoje a película e lhe faz as fotografias. Amanhã, quase de certeza, já as poderá ver. Passe por cá amanhã a meio da tarde.

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