Prelecção sobre segurança

Cabula Calonge, 28 de Abril de 1973

 

Aqui estou outra vez na vossa companhia. Creio que foi assim que comecei a carta anterior, que já meti na saca do correio. E creio também que repeti duas vezes esta frase ao longo da carta. Se não foi rigorosamente com estas mesmas palavras, foi uma expressão muito parecida. Se quisesse ter a certeza de que a frase inicial é rigorosamente idêntica, bastar-me-ia consultar os duplicados a químico, que já estão devidamente arquivados. Foi para isso que trouxe da secretaria uma elevada quantidade de químicos novos. Até o sargento ficou surpreendido com a quantidade, quando os fui requisitar. Mas não é de químicos nem de cópias que interessa falar.

Logo pela manhã, a seguir ao pequeno-almoço, mandei o furriel formar todo o pessoal, devidamente fardado e armado. Fiz aquilo que já deveria ter feito quando cheguei para substituir o alferes Raul, que foi de férias e, a esta hora, já deve estar a caminho de Portugal, ao encontro da mulher e do filho. Como quando o vim substituir o pessoal que me trouxe estava com pressa de regressar a Quimbele e tinham de levar o alferes, despachei o assunto o mais depressa possível. Foi só o tempo de receber a papelada, a relação com todo o pessoal de um pelotão que não é o meu, carregar a tralha do alferes e ala que se faz tarde! Logo, não houve tempo para formalidades e apresentações, tanto mais que é gente conhecida. Viemos todos no mesmo dia e já nos conhecemos do tempo de Santa Margarida.

Ora o facto do conhecimento vir de longa data não significa que seja suficiente. Se o pessoal do meu grupo já sabe quais são as minhas exigências, as exigências de segurança e de bom comportamento, e sabe que comigo não podem existir descuidos que possam colocar em risco as nossas vidas, certamente que estes estarão mais habituados a um certo relaxamento nas normas. Mandei por isso reunir todo o pessoal. E fui até um pouco mais longe, provocando uma certa reacção dos furriéis:

— O furriel que está de serviço deve mandar reunir todo o pessoal, devidamente fardado e armado. E deve também contactar o chefe dos milícias, porque os quero também aqui, ao lado dos meus homens.

— Ó alferes, dos milícias? Mas estes não estão sob o nosso comando directo.

— Não estão sob o nosso comando directo? Quem é aqui a autoridade militar?

— É o alferes.

— E acha que não estão sob a minha alçada? Quando há algum sarilho, a quem é que os milícias vêm pedir ajuda?

— É a nós, alferes.

— Então se é connosco que contam quando têm problemas, a quem acha que eles deverão também obedecer? Acha que servimos só para quando estão atrapalhados?

— Não, meu alferes.

— Então faça-me um favor. Contacte o chefe dos milícias. Diga-lhe que o alferes mandou formar todo o pessoal em frente à cubata do alferes, incluindo os próprios milícias.

— Mas há algum problema grave, alferes?

— Grave ou agudo, é o que iremos ver, quando todo o pessoal estiver reunido. Dentro de meia hora, no máximo, quero todo o pessoal na minha presença, devidamente fardado e armado. Estamos entendidos?

Pouco depois, tinha na minha frente toda a gente, incluindo o grupo de milícias, devidamente enquadrado pelo chefe. Feitas as devidas apresentações, dei início a uma prelecção séria e com cara de poucos amigos. Evoquei não apenas o acontecimento da noite, sem referir o nome do soldado que apanhara em falta, e preveni-os que podem contar sempre com a amizade do alferes para todos os problemas que lhes surjam. Mas frisei bem que, por maior que seja a amizade, não posso de modo nenhum tolerar falhas na segurança do pessoal. Viemos todos no mesmo grupo. Partilhámos sempre os bons e os maus momentos enquanto estivemos em Santa Margarida. Mesmo enquanto andava de braço ao peito, não deixei de lhes dar o apoio necessário, tendo mesmo colocado o meu carro ao serviço do grupo. Embarcámos todos no mesmo avião e fizemos o percurso de Luanda até aqui na mesma coluna. Só nos separámos quando cada grupo de combate teve de ir ocupar as diferentes zonas da Companhia. Os nossos familiares estão longe de nós, mas confiando plenamente nos oficiais, a quem entregaram a responsabilidade dos filhos, irmãos, maridos e pais. Estão a contar que os oficiais tudo farão para que os seus entes queridos regressem vivos e de boa saúde dentro de ano e meio. Mas, para que os oficiais possam cumprir esta pesada obrigação e não tenham de vir a ser confrontados com a desagradável situação de participarem a morte de alguém, para que não surjam acontecimentos desagradáveis, funestos, é necessário que todos, que cada um de nós nunca caia na asneira de descurar as normas de segurança. Um cigarro aceso, no meio da escuridão, é o alvo ideal para um ataque terrorista. E a cabeça onde se situa a boca que o fuma é a primeira a ficar com um buraco, um enorme buraco, um buracão, por onde escorre o sangue e os miolos do alvejado em fracções de segundo. E um homem a dormir no posto de sentinela é o alvo ideal para ficar com as goelas cortadas, sem tempo de dizer um ai, para não dar o alarme e acordar o resto do pessoal que se encontra a dormir nas cubatas.

Lembrei-lhes ainda que frequentemente somos ameaçados pelas rádios terroristas. Que nos divertimos, que rimos frequentemente com aquilo que dizem. Mas, apesar de na maior parte dos casos não passar de propaganda, a verdade é que, em qualquer momento, poderão passar das palavras à acção. E o que eles querem é precisamente que nós acreditemos que não passam de palavras, para, quando menos esperarmos, nos apanharem desprevenidos.

A época da Páscoa está praticamente passada. Os momentos mais importantes já passaram, sem novidades desagradáveis e sem sobressaltos. Mas isso não é motivo para considerarmos passadas as situações de alerta máximo. Seja em que altura for, estejamos onde estivermos, quer se trate ou não de épocas festivas e de prevenção máxima, a única garantia de nunca virmos a ter surpresas desagradáveis consiste em estarmos sempre alerta, sempre em alerta máximo, sem nunca cairmos em desleixos de que possamos vir a arrepender-nos, se tivermos a sorte de não sermos nós os abatidos.

Lembrem-se que as maiores baixas não acontecem com os maçaricos, mas sim com os velhinhos, com os tarimbados, com aqueles que já têm largos meses de comissão e se julgam os melhores do mundo e a salvo de situações perigosas.

Enquanto for eu a comandar-vos, acautelem-se, porque é durante a noite que mais controlo exerço no pessoal. E mesmo depois de eu vos deixar, peço-vos que se lembrem sempre das minhas palavras, para que, dentro de ano e meio, possamos separar-nos, na metrópole, satisfeitos pela missão cumprida e sem baixas.

E por agora é tudo. Ah! É verdade, ia-me esquecendo de uma coisa importante, por onde até deveria ter começado. Não sei se o vosso alferes, o alferes Raul, vos disse, antes de virem para aqui, o que agora vos vou dizer. Se já disse, também não é problema. Nunca é demais repetir isto, para segurança de todos. Não sei se sabem, mas esta é uma povoação nova, formada pelo reagrupamento de várias sanzalas. No ano passado, por esta altura, nada disto existia. O que existia eram vários pequenos povos, que foram atacados pelos turras fez agora um ano. Foram atacados por altura da Páscoa. Foi esta a principal razão de termos vindo para aqui reforçar o grupo dos milícias. Foi esta a razão que levou ao agrupamento dos vários povos que existiam à volta deste lugar. Por isso, os meus avisos de cautela não surgem ao calha. E já que estamos a falar de coisas importantes, há ainda outra coisa que não posso deixar de vos dizer. Desculpem se vos estou a ocupar mais do que o habitual. Mas é para interesse de todos nós.

Não sei se já se deram conta que chove cada vez menos. Aquelas chuvadas que desabavam em cima de nós, e para nosso azar muitas vezes quando andávamos nas picadas, já estão passadas. Estamos a entrar numa nova época climática. E isto não é nada bom! Sabem quais são as consequências de deixar de chover? Não são nada boas para nós, como vou passar a explicar-vos. De agora em diante, quando andarmos na picada, peço-vos que prestem a maior das atenções aos sítios por onde passamos. Isto é para todos. É para os condutores, que devem prestar o máximo de atenção, e para todos os que vão em cima das viaturas. Se até aqui andávamos com alguma segurança nas picadas, agora o caso muda de figura. E sabem porquê? Porque as chuvadas que nos encharcavam eram nossas amigas. Lembram-se que muitas vezes depararam com locais onde as picadas tinham desaparecido, levadas pelas águas da chuva? Isso era para nós um factor de segurança. As fortes chuvadas impediam os turras de colocar minas nas picadas. Agora, que quase não chove, começa a altura ideal para que nos coloquem uns brindes desagradáveis. Já pensaram o que sucede se tivermos o azar de pisar algum? Bum! Vamos todos para o galheiro! Lembrem-se do que o alferes Ulisses vos está a dizer e passem a palavra aos vossos colegas, àqueles que não estão agora aqui connosco e que não me ouviram. Isto é para interesse de todos nós. 

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