Reencontro com o capelão

— O capelão está aqui em Quimbele?

— É como vês. Segundo sei, estás quase a largar a Quimabaca.

— Já amanhã, se tudo correr bem.

— Precisamente! Foi isso que pensei. E foi isto que me fez vir mais cedo para aqui. E sabes porquê?

— Não faço ideia. O capelão ainda não me disse. Estava com saudades da civilização? Do cinema de Quimbele? Da companhia do capitão?

— Nada disso. Vim mais cedo precisamente por tua causa. Qualquer coisa me dizia que te ia encontrar.

— Não o estou a entender. Qual é o seu interesse na minha pessoa? Não me diga que vem com mais alguma incumbência do comandante de batalhão. É por causa da fotografia?

— Qual fotografia? Qual comandante? A fotografia é também importante. Mas não é isso que agora me interessa. És tu.

— Sinceramente, capelão, não estou a ver onde quer chegar. Que interesse é que a minha pessoa pode ter para si?

— Muita! Muita importância! Muitíssimo interesse. Quero estar junto de ti quando te despedires da Quimabaca. Quero assistir ao levantamento do acampamento. E também despedir-me daquela gente.

— E quando pensa ir para cima? Hoje comigo ou amanhã com o furriel Rodrigues?

— Hoje mesmo. Porquê? Não tens lugar para mim?

— Para si e para o seu ajudante...

— Não. É só para mim. O meu ajudante não tem lá nada que fazer. Fica aqui em Quimbele. Tens lugar para mim?

— Já sabe que sim. E desta vez vai à larga. Vou só com metade do pessoal. A outra segue amanhã com o Rodrigues, na Berliet.

— Quem? O moço lisboeta?

— Sim, o furriel Rodrigues. O meu braço direito.

— O teu braço direito?

— Sem dúvida! Nem podia haver melhor expressão. Braço direito no sentido real e figurado.

— Não te estou a entender. Sei o que queres dizer com a expressão «braço direito». Mas essa agora, de ser no sentido real e figurado, essa é que agora me está a baralhar. Não estou a ver onde queres chegar.

— É fácil, capelão. Já vai entender. Eu explico. Está farto de saber o que queremos dizer quando afirmamos que alguém é o nosso braço direito. Só que o Rodrigues revelou-se muito mais do que isso. Quando em Tomar dei uma estúpida queda e fiquei de braço direito ao peito durante várias semanas, foi ele o único que me acudiu. Não me largou enquanto não fui com ele ao hospital militar tirar uma radiografia. E se ele não tivesse insistido e pegado no mini para me levar, teria mesmo arranjado um sarilho dos diabos, porque tinha uma profunda fissura ao nível do pulso.

— Não sabia disso!

— Pois não! Como poderia saber? Nessa altura ainda não fazia parte do nosso batalhão e nem nos conhecíamos. Só nos conhecemos aqui em Angola. Mas agora me lembro. Até já deveria saber. Por que razão acha que, antes do Natal, não aguentei a acção helitransportada no meio da mata e tive de ser evacuado de helicóptero para Sanza Pombo? Na altura, ainda mal conseguia agarrar nos objectos com a mão direita. É preciso notar que tirei o gesso pouco tempo antes de vir para Angola. E andei durante os últimos dias de Tomar a ir todos os dias para o Hospital Militar de Lisboa, para levar um reforço de cálcio por meio de eléctrodos. Imagine-se a ter de andar no meio da mata carregado de tralha e só poder utilizar o lado esquerdo. E como fiquei ao fim de dois dias de marcha forçada, a ter de trepar morros altíssimos agarrando-me apenas com a mão esquerda e tendo de ser empurrado pelo pessoal que vinha atrás, para não me voltar a aleijar.

— Tens razão. Estou a lembrar-me perfeitamente. Mas nunca imaginei que tivesses passado por tudo isso.

— Nem podia imaginar! Por tudo isto, já está a ver a razão da minha afirmação de há pouco. O Rodrigues revelou-se um amigo daqueles que raramente se encontram.

Arranquei para a Quimabaca com metade dos homens e na companhia do capelão. Chegámos ao fim da tarde. E chegámos também aos meus últimos momentos vividos na sanzala.

Estamos agora no dia da despedida. Estamos no dia trinta de Março, uma sexta-feira diferente das outras. Não é que eu tenha alguma coisa a dizer das sextas-feiras. Mas, curiosamente, as sextas-feiras na Quimabaca foram quase sempre recheadas de surpresas. Não como aquelas sextas-feiras aziagas, que encontramos em certas obras de certos autores da nossa literatura. Não me posso queixar das sextas-feiras. A não ser daquela manhã de Tomar, em que dei o célebre tombo e que foi precisamente a uma sexta-feira. Mas desde então, pelo menos na Quimabaca, proporcionaram-me sempre momentos agradáveis. Tirando esse dia aziago, não me posso queixar. Além de serem agradáveis, porque marcam o começo do descanso do fim de semana, se prestaram atenção aos meus relatos, deverão ter verificado que as sextas-feiras foram sempre férteis em episódios curiosos, durante o curto período passado na companhia dos nativos quimabaquenses. Logo, não me posso queixar delas.

Deixemo-nos de reflexões e vamos ao que interessa, porque estamos num dia muito importante. Estamos num dia que, quase de certeza, irá ficar guardado para o resto da minha vida.

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