Cinema nacional e vinho do Porto

Na quarta-feira, logo a seguir ao almoço, arrancámos para aqui, para Quimbele, para trazermos os sacos da correspondência. Desafiei o furriel Rodrigues para irmos jantar ao café e restaurante que fica na curva, na descida que sai de Quimbele. Durante o jantar, alguns soldados de outros grupos, do pessoal que ficou em Quimbele, abordaram-nos e meteram conversa:

— Então, alferes Ulisses? Veio com o nosso furriel Rodrigues para ir ao cinema?

Fiz-me de desentendido.

— Ao cinema? Hoje é quarta-feira.

— Ao cinema, pois, alferes. Hoje é dia de cinema. Há cinema às quartas-feiras e aos sábados. E hoje passa um filme português.

— Um filme português? Qual?

— «Os cinco avisos de Satanás».

— Não conheço. Se calhar, mais um barrete, alferes. — disse o Rodrigues.

— É possível! Se é um filme recente. Nem sabia que existia. Deve ser mais um barrete.

— Quase de certeza, alferes.

— Pode ser que não. Mas, geralmente, o cinema português é como o vinho do Porto.

— Então porquê? — perguntaram os soldados, cheios de curiosidade e interessados no diálogo que se estava a travar entre mim e o furriel.

— É fácil de ver porquê. O vinho do Porto, quanto mais velho, melhor é. E tirando os filmes antigos, com Vasco Santana, António Silva e outros actores conhecidos da mesma época, que continuam a divertir-nos, que nunca deixam de nos fazer rir, tirando os antigos, os de agora são uns grandes barretes. Por isso é que digo que os filmes portugueses são como o vinho do Porto. Quanto mais antigos, melhor.

— E o que é que fazemos, alferes? Eu não trouxe dinheiro comigo. Nem para pagar o jantar. O alferes vai ter de mo emprestar.

— Isso não é problema, Rodrigues. Empresto-lhe o dinheiro do jantar. Paga-me quando puder. E se não pagar, também o prejuízo não é grande! O bilhete do cinema fica por minha conta. Não precisa de se preocupar. Já agora tiramos a prova dos nove, não acha? Vamos ver se a minha teoria bate ou não certo.

Fomos ao cinema. Na bilheteira, para nossa surpresa, estava uma bicha enorme de gente. Gente branca e não só. Muitos eram das sanzalas próximas, dos arredores de Quimbele. Também eles gostam das novidades da civilização. Tomaram-lhe o gosto. E creio que está aqui explicada a razão pela qual passaram a dar sessões também às quartas-feiras. Como aos fins de semana, a sala não tem capacidade para tanta gente, desdobraram as sessões.

Na bilheteira, tive uma surpresa:

— O alferes foi para a bicha? Está aqui para comprar um bilhete? Não era preciso. Os oficiais têm a fila do fundo reservada, ao lado das autoridades. Não pagam nada.

— Mas o bilhete não é para mim. Tenho um furriel que veio comigo e convidei-o para vir ao cinema. O bilhete é para ele.

Não me aceitaram o dinheiro. Disseram-me que não era preciso, que a fila destinada às autoridades, à semana, costumava ficar com alguns lugares vazios. Por isso, se não nos importássemos com a companhia do furriel, podia ocupar um dos lugares. O furriel entrou comigo sem pagar e sentou-se ao meu lado, na extremidade da fila, junto à coxia lateral.

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