Chocolate e nativos

— Malta, está na altura de ouvirmos as histórias do Ulisses. Se aqui continuamos enfiados na água, o tempo passa num instante. Arriscamo-nos a ficar sem a continuação do relato da manhã. Já se esqueceram que ainda não esprememos completamente o Ulisses? Ainda falta muita coisa para ouvirmos.

Todos concordámos. Saímos da água. Estendemos as toalhas no chão e, mesmo sem nos limparmos, que a tarde estava quente, sentámo-nos em círculo, perto da água.

— Vá lá, Ulisses, somos todos ouvidos. — disse o capitão.

— Sem limparem a água dos ouvidos para me ouvirem melhor?

— Anda lá. O tempo avança.

— Onde é que ficámos?

— Disseste que tinhas feito muitas descobertas, lá na Quimabaca. Que descobertas, Ulisses?

— É verdade, Valério.

— Fiz várias descobertas. E esta é espantosa! Foi uma descoberta espantosa que eu fiz. Apesar de estarmos em África, numa região onde abunda quase tudo, descobri que os nativos desconhecem muitas das coisas boas com que nos deliciamos...

— Como por exemplo, Ulisses?

— Quer um exemplo simples, Capitão? Olhe, por exemplo, o chocolate. Este é um bom exemplo. Foi uma das minhas grandes surpresas. Descobri que numa terra de cacau, o chocolate é completamente desconhecido da maioria dos povos africanos.

— Estás a exagerar, Ulisses.

— Não estou, Graça Marques. É verdade!

— Ouçam lá — disse o capitão — isso que dizes não é nada de especial. É muito natural que os nativos desconheçam o chocolate. Nesta região de Angola não há cacau. O que aqui abunda é o café. Isso é que é normal que eles conheçam. Por isso, não percebo o teu espanto, Ulisses.

— O meu espanto é natural, Capitão. Olhe, por exemplo, o Joaquim, o moço de quinze anos que andou comigo pela região da Quimabaca. Apesar de ter já uma boa soma de conhecimentos, graças ao convívio de há longa data com a tropa, até ele desconhecia o chocolate. Quando lhe dei o primeiro quadrado desta gostosa e energética gulodice, foi com certo receio que o levou à boca.

— Isso foi porque nunca teve a sorte de encontrar uma companhia como a tua. Certamente os familiares dos outros nunca lhes mandaram chocolates, como fazem os teus pais!

— Ó capitão, isso nem parece seu! Acha que é preciso que nos mandem chocolates da metrópole? Não os temos nas rações de combate? Acha que só agora é que o exército os passou a incluir nas nossas rações de combate?

— Isso é porque toda a malta guarda os chocolates para as ocasiões de maior necessidade e ninguém se desfaz deles!

— Acha que sim, capitão?

— Claro, Valério. Tu também não guardas os chocolates para quando tens necessidade de energias suplementares durante as acções no meio da mata?

— Seja como for, capitão, a verdade é que sempre que dou um bocado de chocolate a um miúdo nativo, é sempre com receio e surpresa que o comem. Foi o que aconteceu ao Joaquim. Quando lhe dei o primeiro quadrado, hesitou em o meter na boca. Tive de insistir com ele. Mas tão depressa o fez, tomou-lhe de tal modo o gosto que, actualmente, a melhor oferta que lhe posso fazer é um pedaço ou uma tablete de chocolate. Bem, não é só o chocolate. Estou a ser impreciso.

— Então porquê, Ulisses? Os miúdos não são gulosos por natureza?

— Claro que sim, Graça Marques. Mas não sou justo, ao dizer que é o chocolate a melhor oferta. Há outra coisa que torna o Joaquim muito mais feliz.

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