A carta anterior

Quimbele, 4 de Abril de 1973

 

Estão certamente surpreendidos com a maneira abrupta com que terminei os aerogramas anteriores. E mais surpreendidos deverão ter ficado, se reflectiram um pouco acerca do que escrevi na colecção que já devem ter recebido. Se bem me lembro, a minha escrita foi interrompida pela chegada dos meus colegas. Mas o texto continuou a fluir naturalmente, como se nada tivesse ocorrido no acto da escrita. E se efectivamente reflectiram, como penso que sim, ter-vos-ão surgido estas questões: como é que o nosso filho registou a conversa com os camaradas a partir do momento em que eles chegaram à esplanada do café? Não é possível estar na conversa com alguém e ir registando no papel aquilo que se diz! No entanto, a transição de uma situação para a outra processou-se sem qualquer interrupção. Como foi isto possível? Para cúmulo, terminou abruptamente o relato com a saída para o almoço. E esta nova série de cartas, melhor dizendo, de aerogramas, tem a data do dia quatro. Ora, não só não foi apresentada a sequência dos acontecimentos como a correspondência não teve o encerramento que lhe é habitual. E os registos antes da saída definitiva da Quimabaca? Será que o nosso filho se esqueceu da promessa que nos fez no dia em que nos mandou aquela carta escrita no avião?

Creio que estão a fazer demasiadas perguntas. Mas creio igualmente que vos poderei explicar tudo muito bem, antes de retomar os relatos a que já vos habituei.

Em relação à correspondência anterior, a conversa com os meus camaradas foi escrita à noite, no meu quarto, depois de um serão bem passado em casa de um civil. No dia seguinte, parti logo pela manhã para o Alto Zaza. Fui efectuar a entrega formal do destacamento ao alferes que me foi substituir. De modo que fechei à pressa todos os aerogramas, para os colocar na saca do correio antes de sair com os meus homens. Deixei o texto no sítio onde estava. Não houve tempo para as habituais saudações de despedida. Regressei ontem, já tarde. Era já noite cerrada quando cheguei a Quimbele. E hoje retomo a escrita. E, se os meus cálculos saírem certos, espero voltar a pôr-me em dia.

Neste momento, para ser sincero, não sei bem qual a estratégia narrativa a adoptar. Estou numa de reflexão, a pensar o que fazer. Retomo o diálogo, que deixei incompleto, e evoco depois os últimos dias na Quimabaca? Ou, pelo contrário, dou um salto no tempo e levo todos os acontecimentos de uma maneira perfeitamente cronológica, socorrendo-me para tal da minha preciosa agenda castanha, que os pais fizeram o favor de me mandar por altura do Natal?

Reflectindo melhor, estou agora a lembrar-me que, na tarde do passado domingo, após uma banhoca no Futa, ocupámos parte do tempo com os meus relatos. Foram duas horas de conversa, em que tive uma roda de amigos interessados nas minhas palavras. E tive como ouvintes não apenas os meus camaradas, mas também alguns civis, com quem jantámos, nessa noite, num restaurante de Quimbele. Praticamente, consegui pô-los ao corrente dos meus últimos dias na sanzala. Significa isto que o meu problema é de fácil solução. Basta reavivar esses bons momentos de convívio para que fiquem também a par dos acontecimentos.

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