O porquê de um hiato sem notícias

Quimbele, 1 de Abril de 1973

Embora este domingo seja um dia propício a mentiras, porque é o primeiro dia de Abril, a verdade é que já não me encontro na Quimabaca. Parece que sempre é verdade que chegou a minha vez de ficar em Quimbele, em local mais civilizado. Não quero com isto dizer que tenha andado por sítios incivilizados. Nunca estive no meio de selvagens. Pelo contrário! Sempre com gente afável, sociável, mas com cultura e hábitos diferentes daqueles a que estamos habituados na metrópole. E se calhar, aí, há gente menos civilizada que as simpáticas pessoas da região da Quimabaca e do canto de Angola onde permaneci durante uns tempos. Mas coube, finalmente, a minha vez de ficar na sede da Companhia. Só faço votos para que não me voltem a surgir situações imprevistas.

Onde é que eu vos estou a escrever, nesta magnífica manhã de domingo? Precisamente na esplanada do Briosa Bar, onde há já um certo tempo vos escrevi uns aerogramas. E digo bem: há já um certo tempo! Devem estar admirados como é que consegui estar uns nove ou dez dias sem vos dar notícias. Felizmente, a última remessa de aerogramas era elevada. Devem ter dado para este longo hiato temporal.

Afinal, quais as razões que me impediram de estar convosco durante tanto tempo?

As razões são muitas. Mas posso dispensar-me de as indicar todas, limitando-me apenas a três. Qual delas a mais importante?

O tempo de terminar a operação de recenseamento começou a fugir-me, qual areia finíssima, por entre os interstícios digitais. Não queria deixar a zona e ficar com povos por recensear e conhecer.

O facto do tempo começar a fugir e eu ser cada vez mais conhecido, fez com que as populações da região começassem a afluir em maior número à Quimabaca. Nos últimos dias, havia sempre grandes bichas junto à tenda da enfermaria. Não davam descanso ao enfermeiro, que várias vezes me pediu ajuda, nos momentos em que me encontrava disponível no acampamento. E tenho pensado que escolhi mal a profissão. Se tivesse seguido Medicina, talvez pudesse ser mais útil aos meus semelhantes. O que me valeu, nestes momentos, foi ter tudo registado em verbetes. A experiência e os contactos eventuais via rádio com o médico da Companhia permitiram-me obter alguns conhecimentos, suficientes para as situações menos delicadas.

A terceira razão que me fez estar frequentemente agarrado à esferográfica, porque esta tem sido a minha companheira de sempre, foi a necessidade de passar a limpo todos os recenseamentos efectuados. Não podia mandar para a sede de Batalhão o material tal como o obtivemos. Foi uma trabalheira que nem imaginam! Mas teve uma grande compensação: vou ficar com um duplicado em meu poder de todo o trabalho realizado. E espero que a minha guerra se mantenha sempre nos moldes actuais. Embora a espingarda esteja sempre em bom estado e ande sempre comigo, porque o seguro morreu de velhice, espero nunca vir a precisar dela. As melhores armas que podemos utilizar são a amizade, o carinho e a atenção dados aos que nos rodeiam, bem como o conhecimento dos outros e o convívio com pessoas afáveis, sociáveis, com conhecimentos diferentes dos nossos.

Depois deste já longo preâmbulo justificativo da minha ausência de quase dez dias, começo a ouvir as vossas perguntas. Já me apercebi, pelos aerogramas que me têm escrito, que seguem interessados os relatos das minhas vivências. Continuo a verificar que o pai tem uma certa relutância em pegar na caneta. Vou recebendo as suas mensagens e opiniões sempre através da mãe. E verifico que ela segue entusiasmada as evocações das minhas aventuras e que até as dá a ler às pessoas amigas. Agradeço as saudações que me enviam através da mãe e passo ao cumprimento da promessa. Tenho a manhã toda para me pôr em dia, se não aparecerem por aqui os meus camaradas.

Durante o pequeno-almoço, tive o convite do médico para sair logo pela manhã. Queria que o acompanhasse à visita aos doentes, no hospital, antes de ir dar uma volta pela zona, utilizando o jipe do capitão. Só não aceitei o convite porque senti necessidade de aproveitar a manhã para conversar convosco.

Tenho de confessar que estou com uma certa dificuldade em retomar as minhas evocações. Olho à minha volta e sinto a falta do ambiente da Quimabaca. Não há a bicharada doméstica da sanzala a vaguear por aqui e por ali, pelo largo em que montámos o acampamento. Também não há o ruído alegre dos miúdos e a conversa dos nativos, que faziam bicha em frente à tenda do enfermeiro. Falta-me também a branda aragem morna que me levantava, de vez em quando, as folhas dos aerogramas. Falta-me a largueza de horizontes, com as cubatas na periferia, recortando-se com as palmeiras e as árvores de fruto contra o azul forte do céu.

Se olho para cima, para a minha esquerda, vejo a rua alcatroada de Quimbele, com as casas dos comerciantes a impedirem-me de ver as sanzalas distantes que rodeiam a vila. Se olho para baixo, para a direita, vejo o outro café, na curva, e, mais adiante, o campo de futebol.

Gostaria que os meus olhos pudessem atravessar os obstáculos, que conseguissem vencer a distância e me mostrassem novamente a sanzala onde permaneci durante quase um mês. Diz-me a minha agenda que parti para a Quimabaca no dia dois de Março. Despedi-me das gentes locais no dia trinta. Isto dá um total de vinte e oito dias apenas. Ainda só abandonei a povoação há dois dias e sinto já uma certa nostalgia pelos momentos felizes ali passados. E é talvez por isto que me está a custar recuar no tempo. Será isto uma defesa natural da minha mente, para que esqueça este breve lapso de tempo?

Parece-me que já sinto o cheiro característico da fuba a secar, na orla da povoação, trazido pela aragem. E começo a ouvir vozes que se aproximam. Mas... Estas vozes não são de gente nativa! Estão a aproximar-se cada vez mais.

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