Os milagres do alferes

— Como é que vocês vão passar o domingo aqui no destacamento da Quimabaca?

— Apesar de ser domingo, capelão, temos trabalho para fazer. Durante a manhã, o pessoal está livre. Mas deve ter ouvido a ordem de serviço lida há pouco por um furriel ao meu pessoal. A seguir ao almoço, temos de efectuar o controlo de um povo. Embora o furriel não tenha dito qual, digo-lhe agora eu. Pelas catorze e trinta, temos de efectuar o controlo do povo de Indo-Quissula. Se o capelão quiser, pode acompanhar-nos. É um trabalho que não custa nada a fazer. Vai comigo, aliás, vai quase sempre comigo o soba da Quimabaca e o Joaquim, sem falar no pessoal escalado. É um trabalho fácil e agradável e que se faz com certa rapidez. Enquanto eu inicio a entrevista, geralmente começando pela pessoa mais importante, ou seja, pelo soba, os soldados e o condutor numeram as cubatas com tinta branca. Mas não lhe vou agora explicar. Depois verá com os seus próprios olhos. Além disto, o que pretende fazer?

— Vou convosco. Quero assistir a um recenseamento. Deste modo, se o comandante de batalhão me perguntar, saberei falar-lhe em pormenor do teu importante trabalho. E, ao fim da tarde, antes do jantar, gostaria de celebrar missa para todos vós.

— E onde, Capelão? Qual o local que mais lhe agrada?

— Qual te parece que seja o melhor local, Ulisses?

— Talvez junto ao refeitório. Parece-me ser este o melhor sítio, Capelão. É no centro da sanzala e onde o pessoal se reúne, não só para as refeições, mas também para conversar e até para jogar e escrever à família, aproveitando as mesas improvisadas e os bancos que construímos no primeiro dia que aqui chegámos.

— Sim! Penso que é uma boa ideia. Parece-me também que é o melhor local.

— É, Capelão. Pode ter a certeza! E a seguir ao almoço, com a ajuda dos soldados, transformamos o refeitório numa capela, tal como deve ser.

— O que pensas fazer?

— Deixe comigo. Mais logo, a seguir ao almoço e antes de sairmos para o recenseamento, vai ver os milagres que vamos operar. Agora temos o nosso pequeno-almoço. Começo a sentir um buraquito no estômago a dar-me sinal. Depois vamos aqui com o Joaquim fazer uma visita ao soba. Quero apresentá-lo à maior autoridade local e também convidá-lo para ir connosco a Indo-Quissula.

Depois de servido o pequeno-almoço pelo Joaquim, na tenda do comando, aos oficiais e furriéis, esperámos um pouco que o meu ajudante acabasse de arrumar as coisas para ir connosco. Atravessámos a sanzala e fomos até à cubata do soba, o simpático velhote com quem gostamos de conviver, geralmente a seguir ao jantar, quando não estamos agarrados às esferográficas a passar a limpo os recenseamentos.

— Capelão, reparou no que o soba estava a fazer quando aqui chegámos? — perguntei baixinho, sem que o soba nos ouvisse.

— Reparei.

— Como vê, o café da tropa não é só para os miúdos. Trazem a ração distribuída e repartem-na com os outros. Todos lucram com a nossa presença aqui. Joaquim, — disse, voltando-me para o meu precioso auxiliar e amigo — vais ajudar-me a explicar ao soba Cachela Bula o que pretendemos dele. Em primeiro lugar, dizes-lhe que o nosso Capelão o quer cumprimentar.

Apresentado o capelão e efectuados os cumprimentos, continuei a dar as minhas indicações ao Joaquim:

— Antes de mais, perguntas ao soba se quer dar-nos o prazer de nos acompanhar, a seguir ao almoço, ao povo de Indo-Quissula.

O Joaquim quase não precisou de traduzir. O soba percebera perfeitamente o que lhe estava a pedir. E percebia-se também perfeitamente que o convite tinha agradado, perante o ar de satisfação do velhote.

— E já agora, Joaquim, dizes ao soba que, em vez de o virmos buscar, deverá ir ter connosco à nossa tenda. Antes de partirmos, o soba Cachela vai dar-nos o prazer da companhia. Toma a bica e conversa connosco.

À medida que ia explicando, o Joaquim ajudava o soba a melhor entender as minhas palavras, que ele procurava captar ainda antes da tradução.

— Joaquim, dizes ao soba que está também convidado, bem como todas as pessoas da sanzala, para participar numa cerimónia religiosa com a tropa. Antes do jantar, o nosso capelão vai celebrar uma missa junto ao refeitório. Gostaríamos de ter a sua companhia durante a cerimónia.

— Ulisses, por que não convidas o soba para almoçar connosco?

— É uma boa ideia, Capelão. E já agora, janta também connosco a seguir à missa. Será um prazer tê-lo connosco durante as refeições. Joaquim, pergunta-lhe se quer almoçar e jantar connosco.

— Sim, meu alféris. O soba diz que sim, meu alféris.

— Diz-lhe então que, à hora de almoço, que vá ter connosco. Pergunta-lhe se quer dar uma volta... Aliás, não perguntes nada. Não é preciso incomodá-lo. Estava a tomar o pequeno-almoço... Nós vamos dar uma volta pela sanzala. Ele que acabe o pequeno-almoço. Eu conheço bem a sanzala e as pessoas...

Deixámos o soba em sossego. O Joaquim regressou ao acampamento militar, para fazer as tarefas rotineiras. Eu aproveitei para mostrar a sanzala ao capelão. Durante o passeio, surgiu-me uma ideia agradável, que comecei a expor:

— Durante quanto tempo vai ficar aqui connosco, Capelão?

— Hoje é domingo... Só mais um dia.

— Amanhã não sai de cá. Passa o dia aqui. Vai na terça, se quiser. Mas amanhã é que não pode ir.

— Não posso? Porquê?

— Em primeiro lugar, quero ter o prazer da sua companhia durante, pelo menos, um dia completo. Não me vai negar esse prazer, pois não?

— Se a minha presença te agrada, claro que não te irei tirar esse prazer. Mas depois tenho que ir a outros locais. Há outros...

— Claro que sim. Em segundo lugar, amanhã, durante a manhã, acompanha-me ao recenseamento de dois povos. É uma maneira de ficar a conhecer melhor a realidade local. Ao almoço, teremos uma refeição especial.

— O que pensas fazer?

— Uma pequena festa. Uma festa na Quimabaca, para assinalar a visita do capelão e marcar condignamente a nossa breve passagem por estas paragens.

— E o que estás a pensar fazer concretamente, Ulisses?

— Negociar, logo ao almoço, com o soba, a compra de uns leitões. Bem conversados, ele vai convencer a população a vender alguns bichos ao alferes.

— Estás a querer repetir a dose de leitão, tal como fizeste quando estive contigo no Alto Zaza?

— Precisamente!

— A tarde de segunda vai ser de descanso. Teremos uma boa leitoada. E convidamos para a festa as autoridades locais.

— Que autoridades?

— O soba da Quimabaca e o professor primário. Almoçamos todos no refeitório, com os soldados. Será um dia diferente. E se o soba conseguir que adquiramos animais em quantidade, também a população terá o seu quinhão na festança. A nossa curta estadia aqui ficará na memória destas gentes.

— Tu tinhas um certo jeito para a diplomacia, Ulisses. Sabes como conquistar a simpatia das pessoas.

— Falta saber é se o soba irá concordar ou se conseguirá convencer a população. Mas creio que vai concordar, quase de certeza absoluta!

— É assim tão difícil convencer as pessoas?

— Não sabe que sim? Não deve saber, porque se o soubesse, não perguntava. A riqueza destas gentes mede-se pelo número de animais e de mulheres que possuem. Quantos mais, mais importantes são. E o número de mulheres não é problema, nem para os mais velhotes! Eles têm recursos que nós desconhecemos. Eles têm meios para as poderem satisfazer.

Durante a hora do almoço, na companhia do soba, que não foi pontual, porque chegou muito antes da hora e com isso lucrou, acompanhando-nos, a mim e ao capelão, juntamente com os furriéis, na bebida de umas cervejas com um frasco de castanha caju, que esvaziámos completamente, abordámos o problema da festa no dia seguinte. O soba concordou em falar à população. Pensámos em três ou quatro leitões, para chegarem para toda a gente, contando com a população. Chamámos à nossa presença os cozinheiros, para sabermos da viabilidade do projecto. Alinharam imediatamente, coadjuvados pelo furriel vagomestre, que não deveria haver problemas, viessem eles os leitões. Mas como fazer, foi a minha dúvida, uma vez que aqui não temos o forno do Alto Zaza construído pelo velho Manel. O Rodrigues disse logo que isso não era problema, que amanhã de manhã, enquanto o alferes anda nos recenseamentos, nós nos encarregaremos de assar os bichos. Umas boas fogueiras, com estacas de cada lado e os bichos enfiados numa vara, ao fim da manhã, estão assados. Considerei a sugestão do furriel aceitável, viável, e surgiu-me outra questão. Antes de serem assados no espeto, os bichos têm de ser mortos e amanhados. Logo os cozinheiros que não senhor, que os leitões não se amanham, que não são peixe, que têm de ser mortos, chamuscados e preparados e que eu não me preocupasse, que de cozinha não percebia nada, que me preocupasse, isso sim, era em arranjar os bichos, que eles lá estariam para os preparar. E com a ajuda de outros camaradas, viessem eles, os bichos, a festa não faltaria no dia seguinte.

O velhote, o soba Cachela Bula, foi ouvindo as nossas conversas, sempre auxiliado pelo Joaquim, que lhe ia explicando o que quer que ele não entendesse. E, de palavra em palavra, tudo ficou devidamente concertado, ajustado, com funções distribuídas, tendo ficado o furriel vagomestre de ir com o soba efectuar a compra dos bichos, sendo a despesa por conta do alferes.

Acabada a refeição com o café feito pelo Joaquim, que todos saboreámos, foi cada um para o seu lado, tratar da missão que lhe fora distribuída. Eu saí com o capelão e fui falar com alguns dos meus soldados. Em breve, reinava uma certa azáfama no acampamento, apesar de ser domingo.

— É este o milagre de que tinhas falado?

— Qual milagre?

— Disseste-me que eu ia ver os milagres que ias operar.

— Exacto. Tem toda a razão. Penso que até já está em curso. Se tudo correr bem, e espero que sim, amanhã teremos festa. E daqui a pouco, temos também o refeitório transformado em capela. Vai ser trabalho rápido. Ali em cima, dois paus, bem direitos e limpos, formam a cruz. Vai ser uma cruz sem pregos. Nada de pregos, nem pregação, ou melhor, pregação talvez haja. Mas essa depende de si. Mas a cruz vai ser feita sem pregos. Um bocado de corda vai servir para unir a vara horizontal mais pequena à maior, que ficará na vertical. Para altar, creio que o Capelão poderá usar o tampo da mesa. Será um altar tosco, mas um altar. O Capelão fica dentro do refeitório. Nós ficamos fora, no largo. Há muito espaço para todos nós e não me parece que tenhamos chuva. Com ela ou sem ela, também não era isso que alterava a situação, porque o refeitório é ao ar livre, isto é, não tem telhado. Nós e a população, se ela também quiser participar na cerimónia, ficamos cá fora.

Ao fim da tarde, decorreu a missa tal como prevíramos. À excepção dos cozinheiros, que tratavam da janta, não faltou nenhum militar. Não faltaram também nem o soba, nem o professor primário. Tivemos à nossa volta vários elementos da população e a catraida toda, que veio munida dos recipientes, adiantando trabalho para depois do jantar.

Ao serão, tive a oportunidade de visitar com o capelão alguns elementos da população, com quem conversámos, desta vez ajudados pelo professor. A noite passou depressa e a manhã do dia seguinte acordou cheia de actividade, logo a seguir ao pequeno-almoço. Chegado o unimogue da linha de água com os bidões cheios, o grupo seleccionado arrancou para o recenseamento. Visitei os povos de Quibange e Quitubo. Levei comigo o capelão e o ajudante. Quando regressámos à Quimabaca, estavam já as mesas postas para a festa. O pessoal aguardava apenas a chegada do alferes para iniciar o banquete.

Foi uma festa de arromba! Em vez do vinho habitual, como a despesa principal ficara por conta do alferes, o vagomestre lembrou-se de o substituir por cerveja. Tirando algumas raras excepções, que preferiram um copo de vinho, cada um recebeu uma cerveja Cuca para acompanhar o leitão. Bem que me apeteceu ter aqui uma garrafita de espumante tinto bruto, para acompanhar a refeição. Na falta dela, tive de me contentar com uma cerveja. Tirando este apetite súbito, que não pôde ser satisfeito, o banquete não podia ter corrido melhor. A população, que veio levantar também uma dose de comida, ficou igualmente satisfeita.

O resto da tarde foi ocupado com um jogo de futebol organizado, desta vez, não pela tropa, mas pelo professor primário. A equipa militar jogou bem contra a juventude local. E o resultado final não poderia ter sido melhor para ambas as partes, porque ninguém ganhou. Acabámos empatados a uma bola. No final da partida, cada jogador recebeu uma bojeca, isto, é, uma garrafa de cerveja, para recuperação do esforço. Houve apenas um pequeno imprevisto. A meio do jogo, tivemos de fazer um intervalo forçado. Umas nuvens carregadas resolveram aliviar em cima de nós. Durante uns minutos, foi uma carga de água imprevista, que nos obrigou a parar a partida. Retomámo-la um pouco mais tarde, logo que o sol voltou a brilhar. Foi a segunda parte, num campo molhado, um pouco escorregadio, ao princípio, mas sem poeira.

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