Convívio com camaradas

— Então, Ulisses, estás a aproveitar o resto da tarde para descansares...

— Não, capitão. Tenho estado a aproveitar o tempo para escrever aos meus velhotes. Estive uma semana sem lhes escrever.

— Quer dizer que viemos estragar-te o sossego e interromper o trabalho...

— De modo nenhum, Valério! Quando vos vi ao cimo da rua, estava eu a chegar ao fim da correspondência e a despedir-me dos meus pais.

— Aqui, o Ulisses, está farto de fazer turismo por terras de Angola. Livrou-se das acções no meio da mata!

— Talvez, capitão, mas não me parece que tenha tido menos trabalho do que nós. Se bem o conheço, não é capaz de estar parado por muito tempo. Não é verdade, Ulisses?

— Se tu o dizes, Valério, não sou eu que te vou contrariar. Estou farto de contactar populações e de moer as costas no banco duro da viatura.

— No banco duro? O banco de lona, ao lado do condutor, é assim tão duro, Ulisses?

— Qual banco ao lado do condutor! Tenho andado sempre atrás, em cima da caixa, ao lado dos soldados.

— Estás com medo que te ataquem?

— Não é isso, capitão. O meu lugar tem sido frequentemente ocupado pela maior entidade civil da região.

— Que autoridade?!

— No meu lugar vai sempre o soba da Quimabaca.

— O que é que anda um civil a fazer contigo, instalado em viatura militar?

— Anda a prestar-nos um valiosíssimo serviço, capitão. Anda feliz. Dá-nos prazer a sua companhia. E tem-nos aberto as portas. Sem ele, nunca o recenseamento correria com tanta rapidez e facilidade.

— E onde é que está ele, esse velhote? Não veio contigo para Quimbele?

— Não, capitão. Só costuma ir às povoações mais próximas. A última povoação que fizemos, esta manhã, é próxima de Quimbele e muito distante da Quimabaca. Era um esticão demasiado violento para o velhote. Só vai connosco quando a distância não é demasiada.

— Olhem quem ali vem. Temos o nosso capelão a chegar. Tem estado cá em Quimbele. Deve ter estado a dormir a sesta e vem-nos fazer companhia.

— A esta hora da tarde, capitão? Deve ter andado a passear pela vila...

Passados uns minutos, a roda alargou. Em vez de um alferes a matar saudades de casa, passou a estar um grupo de oficiais interessados em matar o tempo de uma maneira agradável.

— Então, Ulisses, estás aqui em Quimbele? Fazia-te lá muito longe!

— É como vê, capelão. Vim imprevistamente à civilização, graças às avarias frequentes das viaturas. Tenho o unimogue com problemas e precisa de ser visto, antes de regressarmos ao destacamento temporário.

— Estais a pensar sair daqui quando?

— Hoje já não! Fico cá. Sigo amanhã, logo a seguir ao almoço.

— Calha bem! Tenho tempo de preparar a mochila. Dás-me boleia. Levas-me contigo. E vais-me aturar durante uns dias. Não te importas?

— Como é que havia de me importar, capelão? A sua companhia é um prazer para todos nós!

— Ouve lá. Agora, que estamos aqui todos juntos, como é que tens andado? Conta-nos o que tens feito. Deves ter muitas coisas interessantes para nos dizer. E como, ultimamente, és bastante badalado, lá em Sanza, sempre fico com assunto para as conversas.

— Badalado a que propósito, capelão?

— A que propósito? Já te esqueceste do hino do batalhão que escreveste? Mas deixemos agora isto. Conta-nos o que tens feito.

— E será que o capitão e o Valério estão com disposição para me estar a ouvir?

— Claro que sim! Desembucha. Faz o que o capelão te está a pedir. Somos todos ouvidos.

— Bom, se o capitão acha isso e o Valério também não se aborrece, vou falar um pouco da minha experiência na Quimabaca. Querem saber tudo desde o princípio ou apenas os aspectos mais interessantes?

— Tu é que sabes, Ulisses. Até ao jantar, ainda temos muito tempo.

— Daqui até ao jantar, Valério, não nos dá para contar tudo. Se fosse relatar-vos todas as peripécias por que tenho passado, nunca mais daqui saíamos. E vocês apanhavam uma seca! Por isso, vou limitar-me aos factos desta semana. E, mesmo assim, não sei se o tempo dará para tudo!

— Anda lá. Começa e deixa-te de rodeios. Manda-se vir uma rodada de cerveja. Quando estiverem as cordas secas, dás uma golada.

Parte norte de Angola, mostrando a localização do Cuango, junto ao rio Cuango e à República do Zaire.

— Deixem-me tirar a agenda do bolso. Tenho os tópicos registados. É mais fácil situar-me no tempo. Ora vejamos: hoje é sexta, dia dezasseis. Andando uma semana para trás, onde é que ficamos? Cá está. Aqui está: «Mais um dia no Cuango. Às 14:30 fomos esperar chegada pardal com reab.»

— Tens tudo aí registado, Ulisses?

— Tudo, capitão. Tudo, isto é, os pontos principais, em letra miudinha e com abreviaturas. Senão, com dez linhas apenas por dia, não teria espaço para escrever.

— Aqui, o Ulisses, é como os marinheiros. Tem um livro de bordo para os registos. E o camarote onde guarda o livro é o bolso do camuflado.

— É isso mesmo, capelão!

— Vamos lá ao relato, Ulisses. O tempo não pára.

— Temos tempo, Valério. Vou começar pelo dia dez. Foi quando, finalmente, chegou o pessoal de Quimbele ao Cuango, para recuperarem a minha viatura e eu poder sair deste destacamento. Cheguei mesmo a pensar que o capitão me queria deixar desterrado no Cuango. Era para fazer companhia ao nosso camarada.

— O que é que querias que fizesse? Tinha o pessoal na mata. Estava aqui sem viaturas. Vocês julgam certamente que eu tenho de fazer milagres...

— Não vale a pena zangarem-se.

— Não nos estamos a zangar, capelão. Só que o Ulisses esquece-se que, além dele, temos outros grupos espalhados na região. E temos que lhes dar atenção.

— Eu sei disso, capitão. Está a esquecer-se que a zona com mais destacamentos é o Alto Zaza. E fui eu o primeiro da Companhia a conhecê-la. Só que o tempo que me deu para fazer os recenseamentos é demasiado curto. É demasiado curto para tantas povoações. Nem vinte dias me chegaram a dar. E, no final deste mês, temos que ter tudo pronto. Temos que estar de regresso à sede da Companhia.

— Afinal, era para ouvirmos o relato dos acontecimentos ou para estarmos para aqui a discutir?

— Não estamos a discutir, Valério. Isto é só um desabafo. Estamos só a falar. E é na frente que gosto de dizer as coisas, não é nas costas das pessoas.

— Deixa os comentários e as críticas. Limita-te aos factos.

— Foi no dia dez que chegou o grupo daqui ao Cuango. Foi ao fim do dia. Estávamos em cima da hora do jantar quando chegou o grupo com os mecânicos. E não perderam muito tempo. Logo a seguir ao jantar deitaram mãos à obra. À luz do petromax e da gambiarra, ligada à bateria de uma viatura, começaram a desmontar o bloco da tracção dianteira.

— Antes disso devem ter tirado as rodas, não?

— Claro que sim. E nem foi isso! Antes tiveram que colocar os macacos e levantar a frente da viatura. Mas querem todos os pormenores? Já agora, vejam lá se querem que vos diga o número de porcas e parafusos que tiveram de desapertar... Bom, começaram a desmontar o bloco dianteiro da tracção para substituir as peças partidas. Foi um trabalho que se prolongou pela noite. Às duas da madrugada, estava eu já ferrado no sono, fui acordado bruscamente, eu e o nosso camarada, por uma sentinela, que nos entrou pelo quarto:

— Alferes, alferes, estamos a ser invadidos!

— Invadidos? Quem é que nos está a invadir?

— É preciso avisar a malta, alferes. Temos de ocupar os abrigos.

— Mas o que é que se passa? Está tudo sossegado.

— Venham comigo.

— Mas vamos onde, rapaz?

— Vamos ao sítio onde o alferes toma o pequeno-almoço.

Contrariados e um tanto incrédulos, saímos do quarto e fomos para a zona em frente ao quarto, debaixo do alpendre, onde os graduados tomam as refeições.

— Olhem lá para baixo. Ali, na zona do rio. Estão a ver? Lá andam eles. Estão terroristas a entrar no nosso território.

De facto, lá embaixo, na encosta do lado zairense, junto ao rio, viam-se luzes, que se distinguiam perfeitamente na escuridão da noite.

— O que é que tu achas? — perguntou-me o Raul.

— Sinceramente, acho que não é nada!

— Bem, alguma coisa tem de ser. Nada é que não é. As luzes vêem-se bem.

— Precisamente por isso, Raul. Acho que não é nada de especial.

— Nada de especial?!

— Sim, nada de especial. Sinceramente, não acho que sejam turras. Ouve lá, se tu tivesses de entrar num território inimigo, fazia-lo daquela maneira?

— Claro que não! Nunca com luzes acesas. Nunca de maneira a ser visto à distância.

— Aí está! Estás a dar-me razão. É fácil de ver do que se trata...

— É fácil de ver? Não estou a ver nada! Afinal, é o quê?

— Está-se mesmo a ver! Com aquelas luzes bem acesas e a deslocarem-se de um lado para o outro, com tanta rapidez, só pode ser uma coisa. Ou ainda não estás a ver o que é?

— Uma caçada?

— Claro! Estão a fazer aquilo que nós também costumamos fazer. Andam à caça com farolins. Ou achas que só tu é que gostas de trincar uns bons nacos de carne assada? O melhor que tens a fazer, Raul, é mandar reforçar as sentinelas, por uma questão de precaução, e irmos dormir. Mas, antes disso, ainda vou dar uma volta. Vou ver se os mecânicos ainda estão agarrados à viatura.

— A esta hora? A esta hora já devem estar a dormir há muito!

— Não importa. Mesmo assim, vou confirmar se a viatura já está pronta, para arrancarmos a seguir ao almoço.

— Já te vais? Não passas cá o domingo connosco?

— Não! Já cá estou desde quarta. Já lá vão quatro dias! Tenho ainda muitas povoações para recensear. Aguenta mais um pouco. Anda daí comigo. Vamos ver se os mecânicos ainda estão a trabalhar. Já ficas a saber.

Àquela hora da madrugada, mais perto das três que das duas, tirando a breve excitação provocada pelo alarme da sentinela, o destacamento estava mergulhado em profundo silêncio. A viatura continuava com a frente levantada, apoiada sobre dois macacos. O rodado dianteiro estava pendurado e com um dos lados sem roda e sem eixo de transmissão.

— Olha para isto, Ulisses. Não é hoje que regressas à Quimabaca. Vais passar o domingo connosco. Com sorte, arrancas daqui na segunda.

— Afinal, quem acertou? Tu ou o Raul?

— Quem acha que terá sido, capelão?

— O Raul.

— Claro! Os mecânicos passaram quase todo o domingo agarrados à viatura. E não estiveram sós! Tiveram a ajuda dos condutores. E o apoio da malta. Foram também o meu passatempo. Ocupei uma boa parte do domingo na companhia deles. Não percebo nada de mecânica, mas fui-lhes fazendo perguntas e ouvindo as explicações...

— Estiveste foi a empatá-los.

— Não, capitão. Estive a dar-lhes apoio. Quer maior estímulo para o trabalho de alguém do que interessarmo-nos por aquilo que se está a fazer? Conversando com eles, interessando-nos por aquilo que fazem e elogiando, de vez em quando, a habilidade deles, o trabalho faz-se com muito mais agrado e eficiência. E, além disso, custo muito menos! O tempo passa melhor e o esforço parece ficar reduzido. E sempre fui aprendendo também alguma coisa. A verdade é que o trabalho rendeu. A meio da tarde, estava a viatura pronta, completamente montada e a andar. Fizemos-lhe todos os testes. E os mecânicos estavam de tal modo vaidosos com o trabalho desenvolvido, que me desafiaram:

— O alferes não quer dar uma voltinha na viatura? Vai ver que ela lhe obedece em tudo...

— Deste uma volta? Fizeste-lhes a vontade? Pegaste na viatura?

— Sim, capitão. Fiz-lhes a vontade. Sentei-me ao volante e arranquei. Dei uma volta ao Cuango. Como já há algum tempo não pegava numa viatura, fiz o gosto ao dedo. Subi toda a avenida. Dei umas voltas às frondosas mangueiras, aproveitando o amplo círculo de sombra das enormes copas, que não me brindaram com nenhuma manga na cabeça. E entrei na parada do destacamento.

— Que tal, alferes, puxa bem?

— Está impecável. Vocês estão de parabéns. Fizeram um excelente trabalho! Está como nova.

— É a mesma viatura em que vieste para Quimbele? — perguntou o capitão.

— A mesma. De momento não tenho mais nenhuma. O capitão tirou-me a berliet...

— Não ta tirei. Mandei um grupo ir buscá-la à Quimabaca, para levar o pessoal para as operações na zona do Alto Zaza.

— Eu sei. Já soube disso. Só que me deixou os furriéis sem nenhuma viatura durante algum tempo. Fartaram-se de barafustar comigo, como se eu tivesse alguma culpa. Queriam ir buscar água e lenha para a cozinha e não tinham meios. Foi a primeira queixa que me fizeram, quando regressei à Quimabaca.

— Alarguem a roda. Está a chegar o Graça Marques. Deve vir do hospital.

Ficámos com a conversa suspensa por uns momentos. Demos um jeito às cadeiras e arranjámos espaço para mais um. O médico sentou-se e...

— Tu aqui, Ulisses?

— É verdade, Graça Marques. Cheguei por volta das três da tarde. Uma avaria numa sanzala entre a Quimabaca e Quimbele fez-me vir à sede da Companhia.

— A confraternização vai animada, a julgar pela quantidade de copos em cima da mesa.

— Vens mesmo a tempo de alinhares connosco. — disse o capitão. Estamos aqui a ouvir a odisseia do Ulisses por terras da Quimabaca.

— O Ulisses está a fazer um bom trabalho. E já me tem dado também algum. Ainda há dias me trouxe uma miudita, que precisava de assistência médica. Está a fazer-me forte concorrência na sanzala. Qualquer dia monta lá um consultório.

Depois de uns minutos de franca risada com o humor clínico do médico, o capelão reatou a conversa:

— Aqui o Ulisses é pau para toda a colher. Todos os dias ouvimos, em Sanza Pombo, na abertura do programa da rádio, as palavras do hino que ele escreveu para os Tigres de Sanza. Por falar nisto, é necessário que me arranjes uma foto tua. Já ta pedi, em tempos, mas deves ter-te esquecido. O hino vai ser publicado num dos próximos boletins do Batalhão e o comandante quer que saia com a tua imagem.

— E o relato dos acontecimentos? Já acabou? — perguntou o Valério.

— Ainda não. Ainda nem a procissão saiu do adro! Mas antes disso é preciso pedir mais uma rodada. Está o Graça Marques com a garganta seca. E eu também preciso de molhar as cordas. Claro está, se querem que eu continue a conversa.

— Quer dizer que a minha chegada veio perturbar...

— Qual quê! Não perturbou nada! Vamos já reatá-la. E vamos ter de aproveitar bem o tempo, se quisermos o resto antes do jantar. Onde é que eu ia?

— Tinhas experimentado a viatura. Tinhas dado umas voltas na avenida do Cuango...

— É isso mesmo, capelão. Tínhamos ficado na experiência do unimogue. E já que estamos na viatura, aceleremos. Temos que terminar a conversa. Com a viatura reparada, marcámos o regresso para a manhã de segunda-feira. Saímos bem cedo do Cuango para a Quimabaca. A chegada aqui foi como a visita de um ministro. Quando cheguei, tive uma recepção inesperada! Assim que a população ouviu, ao longe, o barulho das viaturas, começou a juntar-se. Quando entrámos no largo onde estamos acampados, parecia mesmo a recepção a um ministro! A um ministro?! Muito melhor que a um ministro! Toda a população, com o soba, o professor e a miudagem, rodearam todos as viaturas. O primeiro a vir cumprimentar-me foi o soba, seguido do professor. Os miúdos com quem costumo brincar um pouco rodearam-me também. E nem me deixavam andar. A custo, o furriel Rodrigues conseguiu aproximar-se para me falar:

— Alferes, a população e o soba não paravam de me moer a paciência! Andavam sempre a perguntar-me pelo alferes. Estranharam a sua ausência. Estavam com medo que lhe tivesse acontecido alguma coisa. Tem aqui grandes amigos! Até o velhote sentiu a sua falta.

— Qual velhote?

— O soba. Quem é que havia de ser, alferes? O seu companheiro de viagens.

A conversa com o furriel foi bruscamente interrompida com a chegada do soldado de transmissões.

— Meu alferes, liguei há pouco para a sede da Companhia. O nosso capitão já sabe que o alferes saiu do Cuango e que chegou à Quimabaca. Quer que o alferes siga de tarde para Quimbele com o resto do pessoal que o foi socorrer. Deve ser para lhe fazer o relatório dos acontecimentos.

— Obrigado. Quando voltares a ligar, diz-lhe que recebi e seguirei para lá.

Como o meu pessoal estava há dias sem viatura, aproveitámos para ir à água e tomar um banho antes do almoço. E, depois, a companhia do grupo que me foi desempanar ao Cuango, para virmos para aqui, cumprindo assim as ordens recebidas. Uma vez chegado, aqui o nosso capitão aproveitou a minha vinda cá abaixo para me cravar: «Ulisses, já que vieste a Quimbele, dormes cá e regressas amanhã. É necessário levar o reabastecimento ao pessoal do Cuango. Voltas a fazer nova visita ao Raul.»

— Isso é verdade, sim senhor. E até refilaste comigo.

— Claro, capitão. Mas não me interrompa. Deixe-me continuar, a menos que eu não fale verdade. Onde é que eu ia? Ah, é verdade! O capitão cravou-me para voltar ao Cuango. E eu reagi: Como? Porquê? Porque estava a pensar na minha situação concreta. E reagi muito bem. Voltei-me aqui para o nosso capitão e disse-lhe:

— Como, capitão? Como é que eu posso ir levar o reab. ao Cuango? Só com um unimogue? Se com um unimogue mal tenho espaço para levar o reabastecimento para o meu pessoal, como é que vou levar também o do Cuango? A viatura é pequena para isso. Onde meto a comida e os soldados que me acompanham? E logo o nosso capitão me respondeu:

— Levas também a berliet. Amanhã, de manhã, o pessoal carrega a viatura na cantina. Segues depois do almoço para cima.

— É impossível fazer a viagem ao Cuango num só dia e muito menos numa tarde!

— Não vais directo. Amanhã segues para o teu acampamento. No dia seguinte, vais ao Cuango.

— E os recenseamentos?

— Estás a ser complicado, Ulisses. Não tens ainda inquéritos para fazer na região do Cuango? Fazes os inquéritos e levas o reabastecimento ao Raul. Dormes no Cuango. Regressas depois no dia seguinte.

Os três dias seguintes decorreram exactamente da maneira indicada aqui pelo nosso capitão. Na terça-feira, a seguir ao almoço, arranquei para a Quimabaca. Ainda chegámos a tempo de descarregar o nosso reabastecimento e irmos ao rio. Na quarta-feira, segui com um pequeno grupo para o Cuango, para lhes levar o reabastecimento.

Pequeno-almoço no destacamento do Cuango, em Angola (1973).

O dia quinze foi altamente preenchido e muito bem aproveitado. Correu rigorosamente de acordo com a planificação da véspera, feita no Cuango na companhia do Raul e do furriel Rodrigues:

«6:30 — Reunião do grupo pelo furriel para o pequeno-almoço.

7:30 — Saída do Cuango para recenseamento dos povos de Macuma, Mavonde e Bumba.

16:30 — Regresso à Quimabaca.»

— E conseguiste fazer o recenseamento desses três povos num só dia? Tinhas-me dito que um dia não chegava para cada um...

— E geralmente não chega, capitão. Neste caso eram três povos muito pequenos, com reduzido número de pessoas. E o de Bumba não o chegámos a fazer. Não conseguimos descobri-lo. Desconfio mesmo que este povo já não deve existir. As populações contactadas não o conhecem.

— Não interrompa o Ulisses, capitão. Deixe-o falar. Tiveste alguma experiência interessante? Alguma coisa diferente?

— As experiências são sempre interessantes, capelão. Cada dia traz-nos novas experiências e novos conhecimentos. E o dia quinze, espero, vai deixar-me com recordações para o futuro.

— Mas porquê? Alguma coisa de especial?

— Não, Graça Marques.

— Então não te estou a entender. Como é que te vai deixar recordações para o futuro?

— Todas as experiências nos deixam recordações para o futuro, se tivermos a sorte de não se apagarem da memória. Mas, como esta é volátil, apaga-se facilmente, geralmente pouco nos fica. Só guardamos, como estás farto de saber, e deves sabê-lo muito melhor do que eu, só guardamos o mais importante, quando o guardamos. E o resto cai definitivamente no esquecimento. Só que, desta vez, fomos registando fotograficamente alguns factos, para os preservarmos para a posteridade.

— Já tens a máquina arranjada?

— Ainda não. Mas o furriel Rodrigues levou a Instamatic dele. E foi-me registando várias imagens, que espero não se esqueça de me fornecer. Mas, retomemos os factos. Às seis e meia da manhã, já tinha o pessoal preparado para o regresso. No momento do pequeno-almoço, o furriel começou o registo para a posteridade. Tirou-me a primeira fotografia. Estava eu a servir-me, na companhia do guarda da PSP, destacado no Cuango...

— Afinal estavas no quartel ou na polícia?

— No quartel, no destacamento. Onde é que eu havia de estar?

— Estás a dizer-nos que estavas na companhia de um guarda da PSP...

— Claro, Graça Marques. No Cuango há um destacamento da Polícia de Segurança Pública, constituído por um único elemento. Este elemento, como está sozinho, vai tomar as refeições ao destacamento. É a companhia dos graduados, fora das horas de serviço. Só não dorme no quartel.

— Mas há edifício da polícia?

— Edifício separado, não! Mas têm instalações próprias, isto é, têm uma secção no edifício da Administração. O Cuango é uma povoação evoluída, apesar de ter, segundo creio, apenas uma meia dúzia de casas, sem contar com os edifícios do nosso destacamento. Além das casas dos comerciantes, possui um edifício que é a casa do administrador, um pré-fabricado no estilo dos do Alto Zaza, onde está a Administração e a PSP e uma enfermaria, com enfermeiro civil, e, ao cimo da larguíssima avenida com mangueiras, mesmo à esquerda de quem chega, uma escola primária de pedra e cal.

— Tens fotografias do Cuango, Ulisses?

— Ainda não, capelão. A minha máquina está avariada, Deve estar no Japão a ser reparada. E, nos poucos dias que lá estive, o furriel Rodrigues ficou na Quimabaca. Por isso, nem com a máquina dele pude contar.

— Tu compras máquinas sofisticadas, Ulisses, e depois avariam-se. Mais te valia ter comprado uma dessas máquinas baratuchas. Avariava-se, deitava-la fora e compravas uma nova...

— Por acaso já pensei nisso, capitão. Mas, agora, espero mais uns tempos pela minha máquina. É certo que estou a perder óptimas fotografias, mas... Outras hão de vir.

— Bom, ficámos parados nas máquinas, Ulisses? E depois? Como é que foi esse dia que planificaste com o Raul?

Sanzala de Macuma, perto do Cuango, em Angola (1973).

— Foi um dia lucrativo e bem passado, Valério. Já vais ver como. Fizemos dois recenseamentos. O primeiro povo era reduzido. Não nos levou mais do que meia hora. Mas, o segundo, esse ocupou-nos várias horas. Macuma é uma sanzala bastante grande, com dezasseis cubatas mais ou menos alinhadas ao longo de um eixo central. Fica situada num planalto, ao lado da picada para o Cuango, entre dois cursos de água que alimentam, segundo creio, o rio Cuango. É um povo de gente acolhedora, de gente simpática. Assim que lá cheguei, e note-se que não levava comigo o soba da Quimabaca, devido à distância e a ter sido obrigado a pernoitar no Cuango, fui rodeado pela população. O Joaquim, o meu intérprete, ajudou-me a explicar ao soba o que eu pretendia fazer. E este foi de uma solicitude impressionante. Levou-me para junto da cubata dele e fez-me instalar ali. Para eu me sentir confortável, como se estivesse em casa, foi buscar uma mesa e cadeiras para nos sentarmos. Tudo mobília artesanal, fabricada na própria povoação. Não podia estar melhor! O local era tão agradável, que o meu pessoal assentou ali arraiais. Numerámos as cubata todas e fui registando e conhecendo, um a um, os habitantes da sanzala.

Na sanzala de Macuma, em Angola (1973).

— Como é, alferes? Temos os recenseamentos feitos e é quase uma da tarde.

— Como é o quê, Rodrigues? Agora é distribuir as rações de combate pela malta. Almoçamos aqui, na companhia do soba.

— E depois? Seguimos logo para a Quimabaca?

— Claro que não. Queria seguir debaixo deste sol abrasador? Almoçamos aqui e fazemos uma sesta. O pessoal não trouxe os colchões pneumáticos para a pernoita no Cuango? Podem agora aproveitá-los. Enchem-nos e põem-nos aqui à sombra das cubatas. Fazemos uma sesta e damos também umas voltas pela sanzala. Não quer ficar a conhecer melhor a povoação e tirar umas fotos? Se sairmos daqui pelas três horas, às cinco estamos no acampamento. Almoçamos aqui, bem instalados. E depois do almoço, faz-me companhia no passeio pela sanzala, tendo o soba como nosso guia. Faz-me companhia, não faz?

— Quer dizer que aproveitaste a estadia em Macuma para fazer turismo, Ulisses?

— Quase, capitão. Se o recenseamento estava feito, faltava ainda a coisa mais importante, capitão.

— Que coisa mais importante? Não te estou a perceber.

— Conviver com as pessoas. Isto é o que há de mais importante. Temos que conviver com as pessoas e conhecer-lhes os hábitos, a sua forma de vida. É esta a melhor guerra que nós podemos fazer, capitão.

— E o que é que aprendeste de significativo?

— Muita coisa. Durante o passeio, no meio do capim, na orla da sanzala, fiz uma descoberta acidental. Tropecei num objecto duro e escuro. Quando o levantei do chão, verifiquei que se tratava de uma velha espada de ferro, ainda em estado razoável, apenas lhe faltando um cabo, que deveria ter sido de madeira. Peguei no objecto e trouxe-o comigo. Enfiei esta espada, com uns sessenta centímetros de comprimento, no cinto. Se fosse mais comprida e pesada, faria concorrência ao D. Afonso Henriques. Durante o passeio, para não cair e não me impedir de andar, trouxe este troféu na mão. Mas a espada não foi a única descoberta. Até ao momento, ainda não tinha conhecido uma plantação tão rica de tabaco. Na orla da povoação, os habitantes possuem viçosas plantações. Têm-nas guardadas por cercas de pau a pique e fibras. Nunca tinha visto plantas tão altas e tão graciosas. Algumas, com folhas de um verde brilhante, deviam ter mais de dois metros de altura. Foi o local que escolhemos para tirar algumas fotografias.

Na sanzala de Macuma, em Angola. (1973), junto a uma plantação de tabaco.

Em Macuma (Angola, 1973) junto a uma plantação de tabaco.

Depois do passeio, a espada foi o motivo para algumas brincadeiras. Quando chegámos ao local onde fizemos o recenseamento, alguns soldados roncavam, estendidos nos colchões pneumáticos, à sombra das cubatas e das papaias. A espada foi passando de mão em mão, para satisfação da curiosidade de todos. E um dos soldados, para nos fazer rir um bocado, resolveu acordar os camaradas carregando-lhes com a ponta da espada na barriga. Quando sentiam a pressão de tão insólito objecto, acordavam com um grande susto, que nos fazia rir às gargalhadas.

— Essa foi uma brincadeira pouco sensata, Ulisses. Com um movimento brusco do susto, podiam ter-se ferido!

— Qual ferido, capelão! Acha-me algum inconsciente? A extremidade da espada estava rombuda e sem qualquer fio cortante. Se alguma vez foi penetrante, a ferrugem encarregou-se de a tornar totalmente inofensiva. Não tinha qualquer perigo. Se o tivesse, seria o primeiro a impedir que a brincadeira se fizesse. Até eu brinquei com um soldado, que estava estendido ao lado da minha cadeira e que estava sempre a meter-se com o alferes...

— E o que fizeste à espada? Ainda a tens?

— Não, capitão. O velhote namorou-a. Acabei por lha oferecer. Para que é que eu queria uma espada velha?

— Era um troféu. Recuperava-la e punhas-lhe um cabo de madeira e ficavas com essa recordação.

— Não fiquei. Achei mais sensato oferecê-la ao soba da sanzala. Foi de tal modo simpático que mereceu ficar com ela.

— Experimentaste fumar com os nativos?

— Experimentar como? Temos os nossos maços de tabaco. Não precisamos do tabaco nativo. Além disso, dá menos trabalho. Os cigarros já vêm feitos. Mas fumar com os nativos é normal. Geralmente damos-lhes dos nossos cigarros.

— Então para que é que os nativos têm as plantações? Não é todos os dias que te podes dar ao luxo de fumar tabaco nativo! Sempre deve ter um paladar diferente dos nossos cigarros...

— Talvez seja diferente, Valério. Os nativos têm as plantações para venderem o tabaco e, sobretudo, para o fumarem. Os homens enrolam as folhas secas e fazem uma espécie de charutos. Mas as mulheres, que fumam mais que os homens, especialmente as velhotas, utilizam cachimbos. E são cachimbos que enriqueceriam um museu etnográfico.

— Já tens alguns?

Cachimbo angolano, da região do Cuango (1973).

— Por acaso já tenho alguns, capelão. O primeiro da colecção foi-me oferecido. Fui obrigado a aceitá-lo. Deu-mo uma velhota, no povo de Quimariela, precisamente o mesmo povo onde a viatura avariou, obrigando-me a pedir ajuda ao Cuango. Depois do recenseamento, prestei assistência médico-sanitária à população. Tive bastante tempo para isso, enquanto aguardei a chegada do grupo de socorro. Tratei uma velhota que fumava cachimbo e me pediu ajuda. No final, quis oferecer-me o cachimbo com que estava a fumar. Tentei recusar a oferta, para não a privar do prazer do tabaco. Mas tive de seguir os conselhos do Joaquim: «O meu alféris não pode recusar. Tem de aceitar. A mulher pode ficar ofendida com o meu alféris por o alféris recusar a oferta da mulher.» Segui os conselhos do meu ajudante e intérprete e acabei por aceitar a oferta da velhota. Agradeci-lhe. No bolso do camuflado tinha um maço de cigarros novo, por abrir. Tirei-o do bolso e dei-lho.

— E como é esse cachimbo?

— É uma peça interessante, uma das mais originais da minha colecção, que está ainda no princípio. É formada por dois elementos. O corpo principal é de cana avermelhada, tapada numa das extremidades e reforçada por dois aros metálicos. A parte que vai aos lábios é uma peça de marfim furada ao centro. A parte superior é de madeira maciça. O recipiente para o tabaco é um autêntico cálice de madeira rudimentarmente trabalhado no rebordo e na parte exterior. Esta peça, em forma de cálice, encaixa num orifício situado no meio do corpo cilíndrico de cana, sendo amovível para limpeza quando necessário.

— Pessoal, já repararam que horas são? É preciso pagar a despesa e andar para a messe. O jantar não pode esperar. E, antes de ires para cima, Valério, passas pelo refeitório dos soldados, para ver se está tudo nos conformes.

— Está certo, capitão. 

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