Recepção de correspondência

Quimbele, 16 de Março de 1973

 

Faz hoje precisamente uma semana que vos mandei uma longa carta do Cuango. Sete dias sem pegar na caneta e nos aerogramas.

Como explicar um tão longo hiato temporal? Terá sido desleixo do vosso filho? Saturação por tanta escrita? Esquecimento da família?

A última hipótese é o maior dos disparates. Como é possível esquecer as pessoas de quem se gosta? A penúltima já me faz reflectir um pouco. Nos últimos tempos, as canetas têm sido as nossas ferramentas de trabalho. Sem elas, não haveria recenseamentos! E temos apanhado valentes secas, valentes fretes, geralmente aos serões, a passar a limpo os resultados dos nossos inquéritos e registos das populações.

A hipótese do desleixo também não passa de um enorme disparate! Alguma vez seria isso possível? Só se estivesse já apanhado pelo clima do país! E, que eu saiba, a época do cacimbo ainda não chegou a Angola. Já não deve estar longe. Mas ainda nem sei como é, quanto mais ficar cacimbado!

O que aconteceu, desde que me foram socorrer ao Cuango, é que não tenho tido tempo para nada. Tenho passado a semana a andar de um lado para o outro. Tenho moído bem o corpo, na maior parte das vezes, no banco duro de madeira da viatura, porque o meu lugar, ao lado do condutor, tenho-o cedido ao velhote que me tem acompanhado nos recenseamentos. O soba tem andado feliz, com as deslocações às várias sanzalas, na companhia do alferes. Nunca se deve ter sentido tão importante na vida! Nunca se tinha visto a visitar os sobas das outras sanzalas bem instalado em viatura militar, ocupando o lugar geralmente reservado aos oficiais. Anda radiante! E o que é mais interessante é que o seu ar de felicidade é contagioso. Gostamos da companhia deste simpático velhote! Até os soldados já me perguntam, antes de sairmos para os recenseamentos, se ele vem connosco. E, a verdade seja dita, a sua presença ajuda-nos a abrir portas. Quando chegamos às sanzalas, somos imediatamente rodeados por pessoas afáveis, dispostas a colaborar e...

Não entremos no relato dos acontecimentos. Sem querer, já me estava a ver na sanzala, já estava a ver as pessoas à minha volta e as conversas estavam já a vir à lembrança. Deixemos os relatos. Procuremos manter o início desta carta dentro dos parâmetros normais. Mantenhamos a carta na sua forma tradicional, tal como devem ser e são as cartas de toda a gente.

Como certamente já repararam, logo no início da leitura, estou a escrever-vos de Quimbele. Cheguei aqui ao começo da tarde, mais rigorosamente, por volta das três horas. Tive uma manhã ocupada em Quibuca e Quipembe, os dois povos que recenseei, antes de vir à sede da Companhia. A viatura começou a dar-nos problemas. Deve estar agora a ser vista pelos mecânicos. Como a situação é mais grave do que inicialmente pensara, só amanhã vou poder regressar ao acampamento da Quimabaca. Uma vez mais, a avaria teve um aspecto positivo. Fez-me vir a Quimbele. E foi uma sorte, porque tinha aqui dois aerogramas vossos acabados de chegar.

Estou sentado na esplanada de um café. Estou só. Estou na companhia das vossas palavras, que acabo de reler.

A esplanada está praticamente às moscas. E nem às moscas está, porque, felizmente, não anda aqui nenhuma a moer-me a paciência. Nem moscas, nem soldados, nem civis! Também não tenho a companhia de nenhum oficial. A única pessoa mais próxima de mim é o dono do café, que me trouxe um fino e um prato de ginguba. E, ao contrário do habitual, não dei corda ao dono do café, para poder ficar sossegadamente na vossa companhia.

Estou neste preciso momento a reflectir um pouco acerca do que acabei de ler. Estou a rever o imenso prazer que a leitura dos dois aerogramas me proporcionou. E, dos dois, o que mais gozo me deu foi precisamente o segundo, por verificar não só a boa disposição com que estavam, na altura em que me escreviam, mas, sobretudo, pelo vosso excelente sentido de humor.

Com que então a mãe acha-me uma brasa, com um aspecto cinéfilo, à Errol Flyn?! Para já, tenho de vos confessar uma coisa: não me estou a recordar deste artista de cinema. Não me lembro minimamente dele! Se calhar é algum galã do cinema do tempo em que a mãe era solteira! E dizem que me acham demasiado magro nas fotografias que vos mandei, mas com um excelente aspecto! E, com que então, o bigode fica-me bem!

É verdade! Esta nova excrescência decorativa começou a nascer a partir do primeiro dia em que fui para a Quimabaca. Talvez para ganhar um bocado de tempo, durante o barbear, deixei de passar a lâmina da gilete pela zona entre o nariz e o lábio superior. E o resultado está à vista! O resultado foi o aparecimento, nos primeiros dias, de uma lixa picante que, com o crescimento, se transformou num elemento distractivo, que espero não se transforme em tique, porque, neste momento, já dá para puxar e começar a retorcer com a ponta dos dedos.

O mais curioso é que, quando cheguei a Quimbele, as pessoas começaram a olhar para mim com um ar esquisito. Diziam-me que me achavam diferente, que não era o mesmo, mas não sabiam porquê. Só depois de prestarem um pouco mais de atenção e de reflectirem é que descobriram que era do bigode.

Ora bolas! Vou ter de largar a escrita. Vem lá pessoal conhecido. Vêm ao cimo da rua, a seguir à curva, o capitão e um alferes. Saíram de uma loja e vêm na minha direcção. Vêm seguramente aqui para o café! Já me viram e devem vir ter comigo! Vou ter de parar e arrumar a minha papelada, antes que aqui cheguem. Mais logo, depois da bica, a seguir ao jantar, se não for para casa de nenhum civil jogar às cartas ou conversar, refugio-me no meu quarto e retomo a conversa.

Até mais logo.

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