Fazendo de médico

Pois é verdade! Da parte da tarde, atendi, com a ajuda do enfermeiro, quase uma dúzia de adultos da Quimabaca e dos arredores. Foram quase todas situações já habituais, à excepção de uma miudita que me inspirou cuidados. Quando lhe inspeccionei os olhos, fiquei assustado. Nunca tinha observado o interior de uma pálpebra tão esbranquiçada, com uma cor que mais parecia de um cadáver do que de uma pessoa viva! E de mais a mais numa rapariguita tão nova, que devia estar cheia de vida!

— Olhe-me para esta falta de cor. — disse para o enfermeiro. O que é que isto lhe parece?

— Não sei, alferes. Nunca vi umas pálpebras tão esbranquiçadas. Parece quase um defunto!

— Isto parece-me o sintoma de uma grande anemia. Há aqui uma grandessíssima falta de glóbulos vermelhos. Isto aqui requer a consulta de um médico, e não de amadores como nós!

— O que é que o alferes quer fazer?

— Nós não lhe podemos valer. A solução é irmos amanhã de manhã a Quimbele. Levamos a miúda ao hospital. Temos lá o médico da Companhia, o doutor Graça Marques. Ele confirmará ou não a minha hipótese.

— O alferes não tem os recenseamentos para fazer?

— A saúde de uma pessoa é mais importante que os recenseamentos. Se formos de madrugada, no começo da tarde já cá estamos. Ainda teremos tempo de fazer um recenseamento. Até podemos aproveitar o regresso para fazer uma ou duas sanzalas que fiquem entre Quimbele e a Quimabaca. Logo, não haverá grande perda de tempo.

O dia seguinte decorreu de acordo com as minhas ideias. Saímos para Quimbele mal o sol acabara de raiar. Levámos a miúda na companhia da mãe. Ficou no hospital, porque o médico não a deixou regressar connosco.

— Então, Graça Marques, vai quando para cima?

— Fica aqui uns três ou quatro dias, os que for preciso.

— E a mãe da miúda?

— Fica cá com ela. Tem onde dormir.

— E as refeições?

— Não te preocupes, que aqui ninguém passa fome. Vão as duas para cima no vosso próximo reabastecimento. Ou a levam vocês, ou vai com o pessoal de cá.

— Que medicamentos é que vou levar da enfermaria para o destacamento?

— O que é que vos falta?

— O que é que nos falta? — remeti a pergunta para o meu enfermeiro.

— Falta-nos quase tudo, alferes. Temos as nossas dotações quase esgotadas.

— É verdade, Graça Marques. Todos os dias temos bichas enormes de pessoas, da parte da manhã, junto à tenda onde temos a nossa enfermaria. Tenho deparado com uma enorme pobreza material e, sobretudo, com uma elevada quantidade de crianças com sarna. A única riqueza local é a grande afabilidade das pessoas.

— Tenho a impressão de que não te vou dar grande ajuda, pelo menos em relação às crianças, Ulisses.

— Então porquê?

— O que tu me dizes não é mal só dessa zona, é um mal geral! E o pior é que não te posso valer, porque neste momento não temos os medicamentos adequados.

— Quais medicamentos?

— Os medicamentos para a sarna. Estou farto de os pedir. Estou farto de fazer requisições e ainda não me mandaram o que é preciso. Por isso, nada te posso fazer.

— Assim não dá. Como é que podemos prestar assistência médica às populações se não nos dão o que é preciso?

— Que queres que te faça? Não sou eu que mando. Refila. Faz tu, também, requisições de medicamentos. Pressiona o capitão e o comandante de batalhão. Pode ser que, todos a pressionarem, a situação se resolva mais depressa.

— E como é que fazemos para o material de que necessitamos?

— O teu enfermeiro está farto de saber o que é preciso. Passam pela enfermaria da Companhia e requisitam o que precisam. O que lá houver em quantidade, é levar, desde que não nos deixem sem medicamentos para o nosso pessoal.

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