A magia das palavras

Quimabaca, 2 de Março de 1973

 

 

São neste momento quinze horas. Como podem verificar pela data, encontro-me já instalado no destacamento temporário da Quimabaca. Chegámos às dez e quarenta e, às treze horas, tínhamos quase tudo montado.

Estou a escrever-vos bem instalado numa mobília tosca feita pelos nativos. O soba da sanzala, um velhote simpático com quem já estabeleci boas relações de amizade, veio há pouco na companhia do professor da escola cá da região, ajudado pelos miúdos, trazer-me uma mesa e três cadeiras, para o alferes ficar com mais conforto e poder trabalhar e escrever-vos.Pedi há pouco licença aos meus anfitriões para interromper o convívio com eles. Expliquei-lhes que tinha que dar notícias aos meus pais, de quem estava cheio de saudades. Para ser mais exacto, tenho que dizer-vos que tive a ajuda do Joaquim e do professor, que fala razoavelmente bem o Português. Explicámos ao soba que eu estou há muitos meses longe de vós e que ia matar saudades conversando convosco. O velhote ficou intrigado! Como é que eu podia ir conversar convosco, se vós estais tão longe e eu aqui nesta zona de Angola?! Explicámos-lhe que eu ia utilizar esta forma de comunicação à distância. Acabou por compreender perfeitamente a situação. E deu-me razão. As pessoas mais velhas, especialmente os nossos pais, devem ser respeitados pelos filhos. Compreendeu tão bem a situação, que falou com os miúdos que nos rodeavam, dizendo-lhes para deixarem o alferes sozinho. Deve ter-lhes explicado o que o alferes ia fazer, aproveitando talvez para lhes dar uma pequena lição: também o nosso “alféris” respeitava as pessoas mais velhas. Respeitava os pais. E ia ficar recolhido, na conversa com eles, utilizando a magia das palavras escritas. As palavras escritas, bem agarradas à superfície do papel amarelo, não se perdem no ar, como as faladas. Conseguem voar até junto daqueles que amamos. Os miúdos afastaram-se e fiquei relativamente isolado, com algum silêncio, na vossa companhia.

Vou começar por fazer um balanço do que ficou por dizer, na correspondência anterior, e das novidades deste dia. Vou também reflectir um pouco acerca da melhor maneira de gerir o tempo disponível, não só para poder cumprir a missão que me foi atribuída, mas também para poder conviver com a população local e, evidentemente, convosco.

Em relação aos aerogramas anteriores, deixei vários aspectos por abordar. Tenho na frente a folha de rascunho, onde anotei os tópicos que pretendia desenvolver. Ficaram vários por tratar. Os ponteiros do relógio, se ainda se lembram, ficaram malucos e encurtaram-me o tempo de escrita.

Tenho a pergunta da mãe por responder. Tenho os tópicos acerca dos meus últimos passatempos por tratar: as leituras dos livros da colecção RTP, que recebemos, e as ondas curtas. Tenho o relato dos acontecimentos, desde a saída do Alto Zaza até aos minutos que antecederam o início desta correspondência.

Estou agora com sérias dúvidas, dúvidas que estou a passar para o papel, para que possam mais facilmente meter-se na minha pele. Em vez de reflectir passivamente, deixando que o fluxo das ideias corra à desfilada, procuro fazer com que a mão e a ponta da esferográfica funcionem como um sismógrafo. À medida que as ideias vão brotando como um imenso e silencioso rio, a ponta da esferográfica vai registando na folha aquilo que penso e sinto. E estou com dúvidas! Por onde começar? Qual será mais importante? Qual será mais interessante? Importante é tudo quanto se passa à minha volta. Importante é também aquilo que sinto e aquilo em que medito. As reflexões são importantes, porque transmitem quanto sinto e quanto penso. Mas o relato dos acontecimentos, com as peripécias por que tenho passado, certamente serão mais interessantes. É capaz de ser mais agradável para vós o acompanhamento dos acontecimentos, à medida que eles vão sendo vividos. É capaz de ser mais interessante para vós a participação em directo nos diálogos com o meu pessoal, ouvindo o que me dizem e ficando a saber como resolvo as situações.

— Não te esqueças de responder às minhas perguntas e de satisfazer aquilo que te pedi. — está a mãe a pensar neste momento.

Esteja descansada, que não me esqueço. Não reparou que a sua pergunta foi a primeira coisa que registei há pouco?

Vou começar pelo que me parece ser mais interessante: os acontecimentos das últimas horas.

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