Das descrições e da rotação

 

Acabo de dar uma volta pelo destacamento, na companhia do meu substituto. Durante o curto passeio, reflecti acerca do problema da descrição. Vieram-me à lembrança várias descrições magistrais de escritores conhecidos. Lembrei-me de Júlio Dinis e revi mentalmente as descrições da cidade do Porto, com os seus três bairros tradicionais, dos dois irmãos da família inglesa, da figura simpática e gentil por quem Carlos se apaixonou, durante o baile de máscaras, e de muitas outras descrições. E por falar em baile de máscaras, acabo de me lembrar também que, e de acordo com a minha agenda, falta menos de um mês para o Carnaval. Calha este ano na primeira semana de Março. Vai ser um Carnaval magnífico! Até já estamos disfarçados de militares! Será que vai haver algum baile de máscaras em alguma sanzala das redondezas? Por onde a imaginação já anda! Das descrições, passei para o Carnaval e para os bailes de máscaras. Voltemos às descrições. Revi mentalmente muitas descrições. Mas nenhum esquema se encaixa com aquilo que pretendo. Nem tão pouco me parece que tenham interesse. Melhor dizendo, os esquemas têm interesse. O que acontece é que um simples aparelho de rádio não merece o trabalho de uma descrição como as que me vieram à lembrança. Aliás, Júlio Dinis não foi o único que me acompanhou durante o passeio com o alferes Vieira. Lembrei-me também do célebre conselheiro Acácio, de Eça de Queirós, e de muitos outros textos descritivos.

Como o aparelho não merece uma descrição elaborada, vou-me limitar a fornecer ao pai os elementos mais importantes, que irão ocupar o próximo parágrafo.

Sem FM, vocacionado essencialmente para as ondas curtas, a faixa de captação vai de 1.6 Mhz a 28.0 Mhz. O problema da sobreposição de duas emissoras em frequências sobrepostas ou próximas praticamente não existe. Há um botão que as afasta e outro de sintonia fina. Em dias sem trovoadas, como hoje, ouvem-se as estações de todo o mundo com uma clareza assombrosa. Perante tamanha variedade de emissoras, muitas das quais com programas em língua portuguesa, torna-se difícil a escolha. Para minha facilidade, comecei já a organizar um pequeno livro em papel quadriculado, onde registo vários elementos relativos a cada emissora: nome, comprimento de onda, horas e frequências alternativas de emissão, e a intensidade do sinal captado, que me é fornecido por um vuímetro específico de grande sensibilidade, cuja agulha serve também para indicar a carga das baterias, quando não trabalho com o aparelho ligado à corrente de sector. Este modelo, apesar do grande tamanho, vem preparado para funcionar como rádio de automóvel, desde que lhe construamos uma gaveta onde o inserir. Por isso, apresenta o quadrante amplo, com cinco faixas, quatro para ondas curtas e uma para ondas médias, e todos os botões de selecção de frequência e sintonia na parte superior. Na parte de trás, possui uma entrada para antena externa de automóvel e, para deslocação habitual, uma pega articulada de metal e plástico permite transportá-lo de um lado para o outro como se fosse uma pequena mala.

Deixemos o aparelho de rádio, cujo interesse é mínimo neste momento, e voltemos ao relato dos acontecimentos.

À hora do almoço do domingo em que comprei o rádio, o tema das conversas girou à volta do doente, tendo-nos o médico fornecido o seu estado de saúde, da minha recente aquisição e do problema da rotação do meu pessoal. Procurei averiguar se o capitão já tinha decidido qual o alferes que me vai substituir.

— Vais ser substituído pelo Vieira. É o mais graduado e o meu substituto na minha ausência.

— Então não seria melhor ir o Raul ou o Valério?

— Não! Levantaste ontem o problema da cifra. E o problema está resolvido com o Vieira. Aqui o Vieira é quem me substitui frequentemente no trabalho de cifrar e decifrar as mensagens. Não vais precisar de o ensinar. Tens o problema resolvido. E ele não se importa de ir substituir-te. Pois não, Vieira?

— Claro que não! Mesmo que não concordasse, quem manda é o capitão. Teria de acatar as decisões.

— E o capitão? Quem é que lhe vai aqui fazer o serviço das mensagens cifradas?

— Faço-o eu, enquanto o Raul e o Valério não aprenderem. Não te preocupes com isso. Eu cá me arranjo e sei o que estou a fazer. Como está prevista a deslocação da sede da Companhia para o Alto Zaza, passando Quimbele a ficar apenas com um destacamento, é bom que o Vieira vá começando a contactar com a zona, para me substituir quando eu for de férias à Metrópole.

— E o problema das viaturas? Já pensou nisso?

— Vais na segunda-feira para cima, a seguir ao almoço. Amanhã de manhã estudamos a melhor maneira de fazeres a rotação. És tu que vais ter de a fazer, substituindo aos poucos o teu pessoal, em levas de dez homens. Amanhã falamos melhor sobre isso. Agora, mostra-nos a tua aquisição.

A seguir ao almoço, antes de irmos para o café, estivemos um pouco a apreciar as qualidades do aparelho japonês de rádio. Parte da tarde, foi ocupada a disputar as bicas ao póquer e a conversar. Pouco antes do jantar, fui com o médico para o quarto. Fomo-nos esticar um pouco na cama. Estivemos a experimentar a captação do aparelho e a ouvir um pouco de música. À noite, fomos ao cinema, ver o filme “Canhões para Córdoba”.

Antes de fechar o relato deste dia, tenho a dizer ao pai que, como militar, não preciso de pagar as licenças de rádio, de televisão e de isqueiro. Logo, à excepção das pilhas, porque no destacamento o gerador continua avariado, não tenho mais despesas com o rádio.

  

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