Uma operação na mata

Estamos na manhã do dia 16 de Fevereiro. Tomei o pequeno-almoço com os furriéis à hora habitual. Tive a companhia dos dois furriéis. Talvez graças a alguma pulga importuna, desta vez o furriel Ramalho tomou o pequeno-almoço na companhia do alferes e do outro furriel. Eram sete e meia da manhã e já estávamos sentados à mesa, a ser servidos pelo Joaquim, o moço da sanzala que trabalha na messe dos graduados e a quem dou explicações, em troca do Quicongo, que ele me vai ensinando. Deve ter sido do raspanete dado ao Ramalho, ou talvez não! Às tantas, não deve ter gostado da maneira como rematei a discussão com ele. Sem querer, devo ter-lhe tocado nalguma corda mais sensível, que o fez meditar e corrigir. Terá sido mesmo a referência à lenga-lenga da viola, com que nos vinha moendo os ouvidos há já algum tempo? Seja como for, alguma coisa o deve ter feito reflectir acerca dos seus comportamentos. E hoje acompanhou-nos ao pequeno-almoço.

Deixemos o furriel, não vá ele ficar com as orelhas em brasa, e vamos ao que interessa. O pequeno-almoço estava tomado e já eu tinha dado as minhas voltas rotineiras pelo destacamento, quando ouvimos o barulho de viaturas.

— Alferes, vem lá pessoal. — diz-me um soldado que estava perto.

— Tem de ser a nossa malta. Quatro dias estão passados. E chegam cedo!

— Devem ter arrancado de madrugada, alferes. Devem vir com pressa para ver se chegam a tempo do pequeno-almoço.

— Para isso é já um pouco tarde! O pequeno-almoço já lá vai. São nove e meia da manhã. Não devem ter saído do Quitari sem comer.

— Tinham as rações de combate...

— Não me refiro a isso. Se passaram a noite no Quitari, como foi previsto na planificação, certamente que tomaram o pequeno-almoço com o pessoal do destacamento. Café com leite e pão com manteiga sempre é melhor que a bisnaga de leite condensado ou alguma lata de fruta da ração de combate.

Larguei a conversa com o soldado e fui para junto do portão de entrada esperar as viaturas. Segundos depois, saía a coluna da orla da mata e atravessava o campo de futebol em frente ao comando. Pouco depois, passava o portão de entrada e por entre a malta que viera à procura de novidades, para parar pouco depois na parada, junto à caserna do lado da pista de aviação.

O pessoal vem com ar respectivo de quem passou quatro dias fora do quartel. Os furriéis estão irreconhecíveis. A barba por fazer e o ar de quem não dorme há dias numa boa cama modificou-lhes a aparência. E para não ficarem sozinhos, os soldados não vêm melhor. Tudo com ar cansado! Quando estamos integrados no grupo, não prestamos atenção a estes pormenores. A nossa apresentação vai-se degradando lentamente. Vamo-nos habituando à mudança progressiva e só damos conta plena do estrago na nossa imagem quando nos barbeamos e tomamos um bom chuveiro. Como não acompanhei o grupo e só os vi nos momentos da partida e da chegada, o contraste é mais flagrante. A minha pena é ter ficado sem a máquina fotográfica. Não devia deixar de ser interessante fixar para a posteridade estes momentos da guerra, mais exactamente, o cansaço do pessoal, após uma operação de quatro dias no meio da mata.

Com todo o pessoal recolhido às casernas, venho com os dois furriéis para o nosso edifício.

— Então, Rodrigues, como correu a operação?

— Correu tudo bem, alferes. Correu tudo tal como planeámos.

— E os terroristas? Encontraram-se com eles?

— Eles são espertos! Se passaram na zona, tiveram o cuidado de não deixar marcas.

— A passagem por uma zona deixa sempre, por muito cuidado que se tenha, alguns vestígios. E aos olhos experientes dos GEs não passam despercebidos.

— Pois se entraram na zona, não foi pela área indicada pelo capitão.

— Bom, já vamos conversar um pouco sobre isso. Antes de elaborar o relatório para entregar ao capitão, vamos rever oralmente os factos. Mas agora vai-se pôr em melhor forma. Com a barba feita e um bom chuveiro, fica em melhores condições.

— Há água para isso? Como é que resolveram o problema sem as viaturas?

— Temos tido sorte. Têm caído regularmente, todas as tardes, valentes cargas de água, que nos têm enchido os bidões. Ando de boas relações com o nosso patrão lá de cima e tem-me dado alguma ajuda. Para alguma coisa havia de ter servido a confissão colectiva do capelão. A propósito, já comeram? É preciso alguma coisa, Rodrigues?

— Não, alferes. Tomámos o pequeno-almoço com o pessoal do Quitari.

— Fizeram bem! Tal e qual como previ há bocado, antes da vossa chegada, quando conversei com um soldado! Vão lá recuperar a vossa boa aparência física. Daqui por meia hora conversamos. É suficiente meia hora?

— Mais do que suficiente, alferes.

— Então vão lá arranjar-se. Entretanto peço ao Joaquim para trazer umas bebidas frescas para misturarmos com uísque e uns pacotes de bolacha torrada ou Maria... ou talvez baunilha... o que tivermos na cantina. Entretanto passo pelas transmissões. Vou ver se há mensagens para decifrar.

Quando regressei ao edifício, já a mesa tinha sido posta pelo Joaquim. Garrafas de Coca Cola e Seven Up geladas, cinco copos e diversos pacotes de bolachas. Só faltava a garrafa de uísque. Os furriéis estavam em animada conversa, a ouvir os relatos da operação.

— Alferes, fui ao seu gabinete buscar uma folha de papel e uma esferográfica para o relatório. — disse o Rodrigues, mal me viu entrar. — Mas preciso da sua ajuda. Como é que faço o relatório?

— Não se preocupe. Antes vou ao gabinete buscar uma garrafa de uísque e depois falamos.

Colocada a garrafa na mesa, puxei uma cadeira e sentei-me. Olhei os furriéis e verifiquei que estavam todos. Pensei com os meus botões: «desta vez, o Ramalho não se deixou ficar esticado na cama. Pudera! A curiosidade é mais forte que a preguiça! E com umas bebidas a acompanhar, sempre é melhor que ficar estendido sem fazer nada!». Agitei a garrafa de uísque, desapertei a tampa alta metálica e utilizei-a como medida, distribuindo uma ou duas tampas pelos cinco copos, conforme o gosto de cada um, que os furriéis acabaram de encher com as bebidas frescas, trazidas da arca frigorífica da cantina pelo Joaquim. Abri os pacotes de bolachas e dei início à conversa:

— Então, Rodrigues, como foi o primeiro dia da operação?

— Correu tudo normalmente. As viaturas portaram-se bem. Chegámos cedo à Camuanga. Antes de iniciarmos o passeio pela mata, revimos o itinerário com o chefe Simão. A região é acidentada e difícil, mas cheia de cursos de água.

— O mais difícil é a saída da Camuanga, pelo único trilho íngreme e perigoso.

— Como é que o alferes sabe que é íngreme e perigoso, se não foi connosco?

— Conheço já a área envolvente. A descida até à linha de água que contorna a base da elevação onde está a sanzala é das zonas piores. É um trilho íngreme e lixado, com uma zona entre rochas, um sítio ideal para tramar a malta com umas minas anti-pessoal. Espero que os turras nunca se lembrem disto!

— Como é que o alferes sabe isso? Não foi connosco! — repetiu espantado o furriel Rodrigues.

— Vocês estão a esquecer-se do dia em que se recusaram ir socorrer a Camuanga. Toda a área envolvente foi batida por mim e pelo reduzido grupo que não teve medo em me acompanhar. Ocupou-nos uma boa parte da tarde. Demos a volta a toda a zona envolvente. Descemos cuidadosamente por esse trilho, sempre à espera de surpresas desagradáveis, e contornámos toda a elevação até chegarmos à picada da Camuanga. Mas isto agora não nos interessa. Portanto, reviram a operação com o chefe Simão antes de saírem. E depois?

— Andámos cerca de duas horas, antes de pararmos para comer.

— Porque não almoçaram primeiro na Camuanga?

— Era ainda muito cedo. Também pensámos nisso. Mas achámos que era melhor andar o máximo antes de pararmos para comer. Quisemos garantir a chegada, ainda de dia, ao local previsto para a pernoita. E segui os conselhos do chefe Simão.

— Nisso fizeram muitíssimo bem. A terra é deles, não é nossa. Nada melhor que o pessoal da casa para lhe conhecer os recantos. Confio mais neles do que nas bússolas e cartas topográficas. E tenho aprendido bastante com eles a observá-los. E depois?

— Efectuámos a primeira paragem para comermos junto de uma linha de água. Estivemos aí uns trinta minutos. O mais difícil do percurso foram os mosquitos e o calor.

— Não teve problemas com as rações de combate, como da outra vez? Não apanhou nenhuma lata estragada?

— Não, alferes. Sentimo-nos todos muito bem. O problema da diarreia, da outra vez, deve ter sido mesmo isso que o alferes disse: alguma lata estragada. Penso que terá sido dalguma lata de fruta em conserva, que foi o que eu mais comi da primeira vez que fizemos uma operação de grande envergadura.

— Ainda bem que teve o problema!

— Como assim? O alferes queria ver-me doente?

— Não, Rodrigues. Não está a perceber. Não vê que a sua diarreia foi providencial? Sem ela, não teria sido evacuado de helicóptero comigo. E não tínhamos passado alguns momentos agradáveis em Sanza Pombo. Ou já se esqueceu do tratamento que o médico nos receitou para aviarmos no restaurante do Clube de Sanza Pombo?

— Tem razão! Não estava a ver o problema por esse prisma. Desta vez não apanhámos rações estragadas. Estava tudo em óptimas condições. Montámos o acampamento para pernoita bastante cedo, como o alferes já deve ter calculado. Quando comunicámos consigo pela rádio, a informar que tudo estava a correr normalmente, estávamos nós a montar o acampamento. Jantámos ainda de dia.

— Quem é que ficou convosco na tenda? Tiveram de ficar com outros elementos, para poderem ter uma tenda completa.

— Ficámos com o chefe Simão e o enfermeiro. — disse o Teodoro, procurando também intervir na conversa, praticamente monopolizada por mim e pelo Rodrigues.

— E o dia seguinte?

— Levantámos cedo o acampamento... — disseram o Rodrigues e o Teodoro, logo interrompidos por mim.

— Os dois ao mesmo tempo, não. Deve falar um só de cada vez. Até parece que estão sintonizados na mesma frequência. Até parece que estudaram o discurso em conjunto. Teodoro, deixe falar o Rodrigues. É ele que vai ter de efectuar o relato escrito para entregar ao capitão. Mas, se houver alguma coisa importante que esteja a ser esquecida, pode intervir. Então, Rodrigues? Levantaram cedo o acampamento. E depois?

— O segundo dia foi quase como o primeiro. Mas andámos mais. Achámos preferível progredir o máximo possível antes do maior calor e seguir o mesmo esquema no dia seguinte, de maneira a alcançarmos os locais previstos para a pernoita o mais cedo possível. Chegámos aos locais muito cedo. Como ficámos sempre perto de linhas de água, isto serviu-nos para, depois de distribuídas as sentinelas e montado o acampamento, tomarmos um banho refrescante nos riachos. Foi uma boa estratégia, aliás sugerida pelo chefe Simão.

— Estou a ver! Preferiram andar o máximo, sem procurarem averiguar se havia vestígios ou não da passagem de terroristas!

— Não senhor! Nada disso! Durante os percursos, os GEs e o pessoal tivemos sempre o cuidado de vermos atentamente por onde íamos. Atravessámos zonas de difícil progressão, onde as catanas tiveram de funcionar para abrir caminho. Se vestígios houvessem, teríamo-los encontrado de certeza.

— Quer dizer que os restantes dias foram idênticos...

— Não! O terceiro dia foi diferente dos dois primeiros. Levantámos o acampamento mal começou a clarear. A meio da tarde, estávamos nós a chegar ao Quitari. E só não viemos logo para o Alto Zaza porque não tínhamos as viaturas. Mandei ligar para aqui para dizer que tínhamos chegado ao Quitari, como o alferes teve conhecimento, e para a Camuanga, para as viaturas irem na mesma altura para junto de nós. Chegaram ao anoitecer, escoltadas por uma secção da Camuanga.

— Porque não ligaram no dia anterior para a Camuanga a pedirem para ter as viaturas à vossa espera?

— Não podíamos fazer isso, alferes. Se o fizéssemos e a nossa conversa pela rádio fosse escutada por ouvidos inimigos, dávamos a conhecer a nossa posição e podíamos ter alguma surpresa desagradável. Assim, tal como fizemos, ainda que a nossa comunicação fosse ouvida, nunca daria tempo a que nos preparassem alguma emboscada, porque ninguém podia adivinhar onde as viaturas nos iam recolher.

— Tem toda a razão, Rodrigues. Não estava agora a pensar nesse problema. E depois, o resto do tempo no Quitari? Jantaram com o pessoal deste destacamento?

Clareira do Quitari, vista da picada para a Camuanga-Angola 1973.

— Não, alferes. Não estavam a contar connosco. Mas jantámos juntos. Reunimos o resto das rações de combate e segui o exemplo do alferes. Tivemos um convívio com o pessoal militar e civil. Fizemos uma funjada colectiva. Os nativos arranjaram-nos galinha e fuba. Em troca, ficaram com todas as nossas latas de feijoada e conservas. Eles gostam disto mais do que nós. Alguns, nem guardaram as latas para outra ocasião. Abriram-nas logo e aqueceram-nas directamente nas fogueiras. Foi um serão agradável.

— Fizeram muitíssimo bem. Tropa e nativos civis têm de confraternizar sempre que houver oportunidades. É a melhor guerra que podemos fazer. Precisamos todos uns dos outros. E, no dia seguinte, fizeram o que eu imaginei. Tomaram o pequeno-almoço com o pessoal do Quitari.

— Claro, alferes. Sempre é melhor que as rações de combate.

— O seu relatório está praticamente feito. Agora, na calmas, depois do almoço, porque está já na hora dele, passa para o papel tudo quanto acabou de me dizer. Depois cá estarei eu para os retoques no seu rascunho. E o Teodoro poderá dar-lhe uma ajuda.

— Não deve ser preciso. Eu cá me arranjo. Se tiver problemas, venho ter consigo. Ah, é verdade, já me esquecia de dizer: o condutor queixou-se de uma das viaturas.

— Isso é o habitual. Não terem ficado no meio do caminho já foi uma sorte!

— A vedação do quartel já está terminada, alferes?

— Como é que podia ser terminada sem viaturas durante quatro dias no Alto Zaza? Isso é trabalho a ser retomado na próxima segunda-feira. Além das viaturas, faltou-me cá o Rodrigues, para me ajudar a orientar os trabalhos. Mais quatro ou cinco dias e fica o serviço completo e o destacamento completamente reforçado.

Da parte da tarde, enquanto o Rodrigues ocupou o tempo a redigir o relatório, acabei eu por regressar à picada, após quatro dias de relativo descanso sem as viaturas. Pouco depois do almoço, recebemos uma mensagem rádio do Quitari. Quando iam abastecer-se à linha de água, ficaram a meio do percurso. O motor parou e não conseguiram voltar a pô-lo a trabalhar. Em conclusão, fui com uma secção ao Quitari. O nosso mecânico também não foi mais afortunado. A solução foi esticar o cabo do guincho e prendê-lo à nossa viatura. Decidimos trazê-la a reboque. Mas fomos mal sucedidos. Quando estávamos próximos do Alto Zaza, a nossa viatura aborreceu-se com o esforço e começou aos soluços, recusando-se teimosamente a rebocar a outra. Tivemos de a deixar na sanzala dos GEs. E conseguimos fazer os restantes cinco quilómetros com o Credo na boca. Afinal, a guerra pior com que temos de nos defrontar não é com o Zé turra, é com o material. Pelos vistos, não somos só nós a ficar frequentemente avariados no meio das picadas. Infelizmente, é mal geral, que atinge toda a gente. Os outros grupos estão na mesma situação que nós. Material cansado, há muito tempo a pedir reforma.

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