Na zona onde nos abastecemos
de água, e não volto a descrever o local, porque já vos falei
dele por mais de uma vez, costumam encontrar-se mulheres nativas a
lavar a roupa. E pessoal a tomar banho em pelota e mulheres a lavar
descontraidamente a roupa, com os filhos à volta, sem se
preocuparem se estamos ou não vestidos, podem ser excelentes temas
para fotografias.
Aceitei o convite do pessoal
que ia buscar água. Sempre é mais agradável uma banhoca no riacho
que debaixo dos bidões dos nossos chuveiros improvisados. Além da
arma e cartucheiras, que nunca largamos, peguei na máquina fotográfica,
na qual meti um rolo novo. Nada melhor do que uma banhoca e umas
fotografias, para uma tarde bem passada em convívio com o pessoal!
Eram dezasseis horas e trinta
minutos, mais minuto, menos minuto, quando sofri um choque
imprevisto. Tinha uma cena espantosa perfeitamente enquadrada, que
daria uma excelente fotografia! Carrego no disparador e... nada de
nada! Carrego várias vezes, cada vez com mais força e desespero. O
botão de disparo desce até baixo, mas o disparo do obturador não
se ouve! Uma pancada qualquer ou algum grão de poeira que se
introduziu no mecanismo do obturador não permite que a fotografia
seja obtida. Fiquei com uma cachola maior que um melão! Só não
lancei a máquina para o meio da selva envolvente, porque me lembrei
do preço que me custou. Até os soldados se aperceberam da minha
decepção e procuraram animar-me:
— Deixe lá, alferes. Era
pior se tivesse partido uma perna ou um braço ou se tivéssemos
sido atacados. As máquinas têm conserto. Não lhe há- de faltar
oportunidades, alferes!
De facto, não me hão-de
faltar oportunidades para outras fotografias. Mas que foi uma
valente decepção, lá isso foi!
Deixemo-nos de tristezas e
continuemos a nossa conversa.
São neste momento quase
dezoito horas. Esta nova colecção de aerogramas não foi o começo
da minha correspondência habitual. Antes de começar esta conversa
convosco, ocupei uns momentos a escrever a camaradas de infortúnio.
Eram dezassete horas, já nós tínhamos chegado do banho e já eu
estava sentado a responder ao aerograma de um camarada de Coimbra,
que faz parte do nosso Batalhão, embora esteja noutra Companhia.
Não sei se ainda se lembram
deste meu camarada. Era o meu companheiro de viagem entre Tomar e
Coimbra. Era um dos três que aproveitavam semanalmente a minha
boleia, ajudando a suportar as despesas da gasolina. E dos três,
era e continua a ser aquele que se revelou o melhor camarada. Tive
provas disso quando, já em Santa Margarida, poucas semanas antes de
embarcarmos para Angola, fiquei com o Taunus avariado, por causa da
bomba da água. Na altura da avaria, à saída de Santa Margarida,
os outros deixaram-me e aproveitaram o comboio. Ele não! Manteve-se
sempre ao meu lado e procurou dar-me apoio. Enquanto um ficou a
tomar conta do carro, o outro foi à boleia até ao Rossio de
Abrantes. Foi nesta localidade que encontrámos uma oficina com
reboque que se prestou a efectuar a reparação da viatura.
Estivemos mais de uma hora à
espera de sair do local. Quando o reboque chegou, como o único
problema do carro era o de não poder andar pelos próprios meios,
atou-se uma corda ao reboque. Com todo o cuidado, sempre em reduzida
velocidade, a viagem fez-se sem problemas quase até à entrada do
Rossio de Abrantes. A minha preocupação durante a viagem era a de
manter sempre a corda esticada, para evitar puxões bruscos. Quando
era preciso travar, tinha de prestar a maior atenção às luzes de
travões do reboque, para não embater na viatura que me puxava.
Tudo se manteve sempre
perfeitamente sincronizado, até chegarmos às primeiras casas da
povoação para onde nos dirigíamos. Existem várias vivendas
luxuosas de cada lado da estrada e o movimento era relativamente
reduzido. Numa vivenda com um belo jardim na frente e com os portões
de ferro escancarados, porque se encontravam dois carros parados a
prepararem-se para entrar, haveria de surgir o imprevisto, para
acabar de estragar aquela tarde de fim de semana. De repente, sem
que os donos o pudessem impedir, sai a correr para o meio da rua um
cão dálmata, ainda novo e na idade das correrias e brincadeiras.
Como uma seta, vem-se enfiar na minha frente, entre o reboque e o
meu carro. Tentei ainda travar, para evitar atropelar aquele magnífico
animal. Mas o carro da frente, que não tivera a possibilidade de
ver o cão sair do jardim, manteve o andamento. Apesar de ter o
pedal do travão carregado até baixo, a corda continuou a puxar-me
e fui arrastado, passando por cima do animal. Só parámos uns
metros mais à frente, quando o condutor do reboque se apercebeu que
havia alguma coisa de anormal, pela dificuldade que sentiu em puxar
o carro.
Quando saímos para socorrer o
animal, foi um espectáculo verdadeiramente triste. No chão, dava
pena ver aquele magnífico animal a uivar e a torcer-se com dores;
à volta dele, duas raparigas, com uns dezoito anos, choravam já
antecipadamente a perda do jovem companheiro de quatro patas.
Quando me dirigi ao dono da
casa, também abalado por aquela lamentosa cena, para lhe explicar o
que se tinha passado, o casal pediu-me desculpa pelo ocorrido.
Tinham assistido a tudo sem terem tido tempo de reter o animal.
Assim que apanhou os portões do jardim abertos, o cão, ainda muito
jovem e inexperiente, saiu a correr para o meio da rua, indo
enfiar-se entre as duas viaturas que vinham ligadas pela corda de
reboque.
Foi o que se pode considerar
uma tarde de fim de semana azarada! Primeiro, com a avaria da bomba
da água, que obrigou a rebocar o carro até à oficina; depois, com
o atropelamento lamentável daquele jovem e magnífico animal de raça
dálmata.
Chegámos a Coimbra a altas
horas da noite. Dois dias depois, regressámos os dois de comboio a
Santa Margarida. E, durante a semana em que o carro esteve na
oficina, foi o camarada Bettencourt quem me acompanhou todos os dias
ao Rossio de Abrantes, onde parávamos para ir ver o andamento da
reparação, antes de seguirmos para a cidade de Abrantes, onde
costumávamos passar o resto das tardes e jantar, quando não tínhamos
exercícios nocturnos ou estávamos de serviço de oficial de dia.
Na altura da entrega do carro,
este camarada insistiu em dividir as despesas da reparação a
meias. E só não pagou parte delas, porque eu me recusei a
receber-lhe o dinheiro. Com ou sem a companhia dele, a avaria nunca
deixaria de ocorrer. Logo, não era culpa dele nem de ninguém, pelo
que entendi que não tinha nada que comparticipar nas despesas.
Será que depois disto já
conseguem recordar-se deste meu camarada? Ainda não? Também não
é problema. Quer se lembrem dele, quer não, não altera nada! Aliás,
estou agora a lembrar-me que estiveram mais de uma vez com ele.
Houve mesmo uma tarde de Sábado que esteve em nossa casa. A mãe não
se lembra que, nesse dia, até nos arranjou uma merenda com uns
batidos feitos na máquina? Na altura, tinha saído um L.P. do Zeca
Afonso, que tinha sido mandado pela editora discográfica para o
programa «Presença Coimbrã». Como o gravei antes de começar a
ser passado na rádio, ocupámos essa tarde de Sábado a ouvi-lo.