A Primeira caneta

Alto Zaza, 31 de Janeiro de 1973

 

Estamos no último dia de Janeiro e eu sem vos dar notícias há já uns dias. Depois da última colecção de aerogramas, que deverão estar a receber, fiquei com aversão à caneta. Andei durante uns tempos com uma impressão desagradável na extremidade dos dedos. Devido à força que tenho de fazer, para que os duplicados a químico dos aerogramas fiquem legíveis, andei durante horas com as marcas da caneta nos dedos. Mesmo assim, não me consegui libertar totalmente dela. É que a caneta, além do melhor meio de passar o tempo na conversa convosco, é também um instrumento de trabalho. Como penso que já vos disse várias vezes (como a memória é curta, nunca é demais repetir!), tenho as escalas e as ordens de serviço, a rotina diária de cifrar e decifrar mensagens, em suma, muitas actividades rotineiras em que a esferográfica é indispensável.

Está-me cá a parecer que o tema da nossa conversa de hoje é o papel da esferográfica num destacamento. E, pensando bem, até nem deixa de ser um tema interessante. Já repararam que uma simples esferográfica pode ser uma arma de guerra e de paz? Foi um dos instrumentos mais simples e mais importantes que o Homem inventou, para estabelecer a comunicação no mundo em que vive.

Já pensaram o que seria destes momentos de conversa entre nós, se a esferográfica não tivesse sido inventada? E o pai já pensou que a sua profissão deixaria de ter sentido, se este instrumento de escrita não tivesse sido criado? Para que serviria a sua profissão de professor primário se não existissem as canetas? Sem elas, não se poderia escrever. E não se podendo escrever, não haveria que ler. E não havendo que ler, estaria o pai no desemprego, porque não teria de ensinar os miúdos a ler e a escrever.

De facto, a caneta é uma invenção tão importante como a roda. Embora não se ande em cima de uma caneta como andamos em cima das rodas, a verdade é que sem a caneta o mundo deixaria de rodar em muitos aspectos. Como é que as notícias poderiam ser escritas, sem a ajuda de uma caneta? Como é que os livros poderiam existir, sem a invenção da caneta? Como é que os namorados poderiam escrever aquelas ridículas mas tão gostosas cartas de amor?

Por falar em canetas, estou agora a viajar no tempo, até à minha infância, até à altura em que era um miudito cheio de sorte, com três longos meses de férias grandes, passadas em Celorico da Beira, em casa dos avós maternos.

Já não tenho as datas rigorosamente marcadas na mente. Deveria ter acabado de fazer a segunda classe. Logo, estaria com uns sete anos de idade, o que dá o ano de 1952.

Por esta altura, usávamos na escola primária umas canetas de madeira, na extremidade das quais era colocado um aparo de aço, que nós mergulhávamos nos tinteiros de porcelana, enfiados nos respectivos buracos das nossas carteiras. O pai lembra-se ainda desse tempo?

Todas as manhãs, ou quase todas, uma das rotinas do pai antes das aulas ou no intervalo, era o enchimento dos tinteiros. O pai comprava regularmente uns frascos com vários litros de tinta azul. E eu fui muitas vezes o seu ajudante. Eu e mais alguns colegas, porque era uma actividade que gostávamos de fazer e não havia nenhum puto que não gostasse do pai. Antes de começar a lição, todos os tinteiros das carteiras eram enchidos, o que dava para uns dois ou três dias.

E lembro-me perfeitamente do primeiro dia em que o pai nos iniciou, na primeira classe, na aprendizagem da escrita. Depois de ter distribuído a cada um de nós canetas de madeira, novinhas em folha, de várias cores, e um aparo igualmente novo, cujo aço lhe dava uns brilhos de objecto precioso, explicou-nos como fazer:

«Cuidadosamente, para não se aleijarem, introduzem esta parte do aparo (e mostrava a extremidade comprida oposta à extremidade de escrita) na peça metálica existente numa das extremidades da haste de madeira.» E, segurando cada um dos objectos, caneta e aparo, em cada mão, explicou-nos como fazer. Em seguida, verificou, um a um, se todos os miúdos tinham conseguido executar o trabalho. Elogiou-nos a todos, por termos seguido rigorosamente o exemplo do professor, e passou à fase seguinte.

— Meninos, isto agora é muito importante, para que o aparo escreva bem e não pingue na folha. Antes de molharem a caneta no tinteiro, com cuidado, para não se aleijarem, metem o aparo na boca, para o molharem com saliva.

E, para que todos fizessem bem, exemplificou e acrescentou:

— Se não molharmos o aparo com a saliva, da primeira vez que utilizamos a caneta, a tinta não se agarra ao metal e suja-nos as folhas do caderno.

Na altura não tinha conseguido perceber a razão disto. Só muito mais tarde, já como aluno do Liceu, vim a descobrir a verdadeira razão deste fenómeno. Não sei se o pai alguma vez terá reflectido sobre a razão da saliva contribuir para uma boa escrita dos aparos. Alguma vez reflectiu sobre este fenómeno físico?

Se nunca pensou nisto, embora soubesse empiricamente as vantagens da saliva sobre o aparo de metal, vou agora explicar-lhe o que realmente descobri nessa altura. Invertamos por momentos a situação. Vou deixar de ser o seu aluno para me tornar o seu mestre momentâneo.

Aprendi, na aula de Ciências Naturais, quando estudei o corpo humano, que a saliva contém uma substância química altamente eficaz na dissolução das gorduras. Um dos elementos da saliva, além da água fundamental de que somos feitos, é a chamada ptialina ou salivina, que transforma o amido em maltose e dextrina e que é frequentemente utilizada, sem as mulheres saberem o porquê, na limpeza dos vidros das janelas. Uns borrifos de saliva sobre os vidros ajudam a dissolver as gorduras. E as folhas de jornais velhos ajudam a pô-los a brilhar. Pois é verdade! O segredo para os aparos escreverem bem estava na ptialina. E se tem dúvidas acerca do que lhe estou agora aqui a dizer, a solução é fácil. Faça como eu há pouco fiz, para lhe poder dar com mais rigor a informação anterior. Consulte um simples dicionário da língua portuguesa. Vai ver que encontra lá a ptialina com a mesma definição que há pouco lhe forneci. Mas voltemos à nossa caneta e ao nosso aparo da escola primária. Quando o aparo era introduzido na ponta da caneta, estava novo. O seu manuseamento com os dedos fazia com que ficasse cheio de gordura. E esta impedia a tinta de se agarrar ao metal. Formava-se uma gotícula de tinta que, com a força da gravidade, escorria pelo aparo e vinha deixar um enorme borrão na folha de papel. Ao molharmos o aparo na boca cheia de saliva e ao puxá-lo com os lábios fechados, o que nós fazíamos era remover a película de gordura que cobria o aparo novo. E, depois desta operação tão simples mas tão importante, podíamos mergulhar o aparo nos tinteiros sem o risco de borrarmos as folhas dos cadernos.

Mas o que tem a minha evocação dos tempos de férias em Celorico com o aparo das canetas com que aprendemos a escrever?

Antes dessas férias de Verão, as nossas canetas eram rudimentares. Necessitavam de uma vareta de madeira, um aparo de metal e um tinteiro onde mergulhar o aparo. Nesse Verão, o avô Chico ofereceu-me, numa bela tarde, à hora da merenda, um objecto caríssimo e de luxo, que veio revolucionar a escrita. Na loja do Senhor Osório, na praça onde se faziam os mercados e onde hoje existe o edifício do Palácio da Justiça, apareceu como novidade a esferográfica. Era um objecto nunca visto e que vinha revolucionar a escrita, facilitando-a. E o avô Chico, quando viu pela primeira vez este novo instrumento de escrita, comprou um exemplar para oferecer ao neto.

Lembro-me como se fosse hoje! Era uma caneta de corpo prismático de plástico, idêntico ao das canetas Bic que aqui temos no destacamento, mas todo de cor azul. Na extremidade, num cone azulado também de plástico, uma pequeníssima esfera brilhava e deslizava sobre o papel com grande facilidade, deixando um linha regular de cor azul. Foi a primeira esferográfica que vi e com que estreei, à distância de tantos anos, estas linhas de escrita que agora me permitem comunicar convosco, que me permitem sentir-me uns momentos na vossa companhia, apesar dos vários milhares de quilómetros que nos separam.

Com a reflexão acerca das esferográficas, consegui fazer voar o azedume e a tristeza em que me encontrava. Não sei se um acidente com algum soldado me teria provocado maior indisposição do que aquela com que fiquei hoje à tarde, quando fui com o pessoal ao rio para nos abastecermos de água e tomarmos uma banhoca.

 

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