Sexta feira bem preenchida

Será que é agora que vou acabar com esta colecção de aerogramas?

Estamos, então, no dia 26. E com esta, é a segunda vez que digo o mesmo. A minha máquina do tempo está a andar aos soluços. Será que o Olrik sabotou a cronosfera? Mas foi mesmo Olrik, ou terá sido o cientista maluco que procura tramar Mortimer e lhe preparou a armadilha? Estou a precisar de fazer as minhas revisões de literatura em banda desenhada. Já não me recordo muito bem quem foi que procurou tramar o capitão Mortimer naquela aventura que li há já umas boas dezenas de anos. Boas dezenas de anos? Calma lá! Ainda não sou assim tão velho como isso, para poder falar em dezenas de anos. Ainda só vou na casa dos vinte. E as leituras de banda desenhada foram por mim feitas no tempo da escola primária.

Estas digressões estão a ser piores que a Armadilha Diabólica de ... Fantástico! Acabo de me lembrar agora, de repente, do nome do autor que escreveu estas bandas desenhadas. Chama-se Edgar Pierre Jacobs, se a memória não me está a atraiçoar.

Acabo de ir perguntar aos furriéis se conhecem este autor e os livros de banda desenhada por ele escritos. Disseram-me que não. Nunca ouviram falar dele!

Acabemos com esta incríveis digressões. Estou mesmo a ver que, neste momento, estão a ser a minha perdição. Acabemos com elas! Voltemos ao dia 26. E vão três! É a terceira vez que digo o mesmo. Costuma-se dizer que à terceira é de vez. Pois então não façamos agora nenhuma excepção. Vamos ao relato do dia de ontem.

  Momento de descanso no Alto Zaza. Angola (Sector de Uíje), em Janeiro de 1973.

Lembram-se da planificação que tinha feito e que me levou a redigir um convite ao administrador, digo, ao Ex.mo Senhor Administrador do Alto Zaza?

Passei a manhã de sexta a pintar o banco que os soldados construíram. Na arrecadação havia latas de tinta verde em bom estado e pincéis e trinchas de várias larguras. Foi um trabalho diferente do habitual, que me deu um enorme gozo, aumentado pelo apoio do capelão e ditos engraçados de alguns soldados, que acompanharam interessados as habilidades do alferes com o pincel. Não posso deixar aqui de referir que tive a supervisão e apoio técnico do soldado corneteiro, o Artur Dias, que é ajudante de pintor na vida civil, e do soldado atirador Joaquim Pinto da Silva, que é pintor da construção civil. Sem a supervisão técnica destes dois elementos, teria certamente borrado toda a pintura.

Enquanto procedi a este trabalho altamente artístico de pintar bancos, andaram vários grupos de soldados a efectuar a limpeza ao destacamento. A missa ia ser celebrada numa das casernas e era necessário ter tudo impecável.

Como estive ocupado com a pintura, que me ocupou boa parte da manhã, não tive hipóteses de fazer uma inspecção ao trabalho dos cozinheiros. Também não foi necessário, como se comprovou a seguir à missa do meio-dia, durante o almoço. Os leitões estavam excelentes, a avaliar não só pelo meu paladar, mas sobretudo pelo número de vezes que o capelão repetiu as doses. Ainda estive para brincar com ele, por causa do leitão à moda da Bairrada. Mas as repetições com prazer foram suficientemente elucidativas para adivinhar que ele deveria estar de acordo com a minha opinião da véspera, acerca da qualificação dos nossos cozinheiros.

A meio da tarde, já demasiadamente tarde para apreciar a habilidade culinária dos nossos especialistas na arte do tacho, surgiu-nos no destacamento o Padre Fidelis. Vinha com problemas no Land-Rover. Veio pedir-nos ajuda, na esperança dos nossos mecânicos lhe resolverem o problema. Foi o passatempo dos mecânicos durante o resto da tarde. Infelizmente, a avaria era pior do que pensávamos. De modo que a solução foi mandar instalar no meu gabinete mais um colchão, ao lado do do capelão, para aqui passar a noite no Alto Zaza.

Parte da tarde desta sexta feira acabou por ser passada a passear pelo destacamento e arredores na companhia de dois padres. Com um padre de cada lado, andei perfeitamente em segurança, livre do ataque de qualquer diabo que andasse a pairar por estes lados. Tivemos uns momentos de amena conversa e confraternização nas instalações provisórias do Senhor Administrador, que nos acompanhou no passeio. Beberam-se uns uisques com Coca-Cola e Seven-Up e falou-se da região e dos problemas que temos frequentemente de enfrentar.

 

Para que o meu relatório ficasse completo, teria de aqui registar a conversa que tive, a sós, com o capelão, durante a qual desabafei acerca de umas estranhas sensações que me têm assaltado por mais de uma vez, quando me encontro no meio do mato, em situações de eventual perigo.

O que é que acham? Devo aqui registar a conversa a sós com o capelão, na orla da mata, ou considerá-la irrelevante ou como uma espécie de confissão e, como tal, secreta?

Que não? Não a devo registar? Não é isto? Estão a querer dizer-me que não a devo considerar secreta? Ah, estou a entender! Não secreta. Portanto, que a devo aqui registar. É isso? Que sim? Estão interessados em saber qual foi a conversa com o capelão?

Vamos lá, então, à conversinha. Não vou aqui relatar tudo. Só o mais importante. São mais umas páginas. Ainda não é desta que me vou deitar e apago o petromax. Também ainda não é tarde.

A dita conversa com o capelão ocorreu após ter acabado de pintar o banco. Para ser mais exacto, ainda o banco não estava totalmente pintado, mas isso é o menos. Ainda a manhã ia a meio e a missa era só ao meio-dia. Tinha-me esquecido que o capelão chegara na véspera, ao fim do dia, e que ainda não tinha visitado o destacamento. De modo que, quando o meu trabalho de pintura já estava próximo de ficar concluído, o capelão pediu-me:

— Ulisses, desculpa interromper-te a pintura. Não podias deixar o acabamento do banco aos cuidados do teu pessoal? Ainda não conheço o destacamento e gostava que mo mostrasses.

— Tem toda a razão! Peço-lhe desculpa deste meu lapso. Estava tão preocupado em cumprir a planificação, que me esqueci que o capelão está aqui pela primeira vez. Vamos já resolver isto. Vamos dar uma volta pelo destacamento e arredores. Vou mostrar-lhe as nossas instalações e apresentar-lhe o administrador do Alto Zaza.

Entreguei o pincel a um dos meus supervisores e fui dar uma volta pelo destacamento. Na visita às casernas e diferentes secções, encontrámos o velho Manel. Estava próximo do forno, todo satisfeito a rever a sua obra e a deliciar-se já com o cheiro dos leitões a assar. Fiz as devidas apresentações:

— Capelão, apresento-lhe o tropa civil com mais experiência do batalhão. O velho Manel é o maior especialista da região na construção de fornos. É graças a ele que hoje nos vamos deliciar com leitão assado.

— Vive aqui há muito tempo com a tropa? — perguntou-lhe o capelão.

— São a minha família. Já aqui conheci muitas Companhias, antes da do nosso alferes Ulisses.

Satisfeito pela importância que lhe estávamos a dar, o velho Manel relatou-nos em poucos minutos a história da sua vida.

Na extremidade do destacamento, do lado da pista, o capelão achou estranho o canto irregular da cerca do quartel. Lembrei-me da visita de um civil de cor, que tive há dias, a quem ofereci umas bebidas e com quem conversei durante um longo bocado. Vieram-me à memória fragmentos da conversa e relatei este episódio ao capelão.

— Neste sítio, segundo me contaram, estão enterrados vários pretos, massacrados e mortos por um alferes que passou por aqui há alguns anos.

— Como é que sabes?

— Há tempos, apareceu-me aqui um indivíduo de cor, de óculos escuros e muito bem vestido. É um indivíduo que nunca cá tinha visto e que não deve ser de cá. Pediu licença para entrar e disse que queria conhecer e falar com o comandante do destacamento do Alto Zaza. Mandei-o entrar para a sala onde comemos e dormem os furriéis, e servi umas bebidas. Pela conversa, estava muito bem informado a meu respeito. Disse-me que já era muito conhecido e estimado na região, que era muito diferente de outros alferes que tinham passado por aqui. Como eu o refutasse, dizendo que todos os alferes eram como eu, que todos nós procuramos ser úteis a toda a gente, disse-me que não, que havia alferes que eram uns sacanas e uns autênticos assassinos. Como tivesse verificado que eu não estava a concordar com ele, perguntou-me se eu conhecia bem toda a área do destacamento, se nunca tinha reparado na irregularidade desta extremidade. Disse-lhe que conhecia bem todo o destacamento, que tinha, inclusive, elaborado um plano rigoroso e à escala de todo o quartel. E, achando estranha esta conversa, pensando mesmo na eventualidade de se tratar de algum terrorista a procurar informações, acrescentei que tinha, inclusive, construído sistemas de detecção de pessoas, para maior defesa do quartel durante a noite. Não deixei, em parte, de faltar à verdade, mas também não me alarguei em explicações. A certa altura, para melhor me convencer, perguntou-me se eu não me importava de o acompanhar até este local, onde agora nos encontramos. Aceitei. Fui com ele. Com receio que a sua intenção fosse espiar-nos, saímos do destacamento e viemos ao longo da pista de aviação. Quando aqui chegámos a esta extremidade, parou e apontou para a zona mais elevada de areia, ali naquele sítio, que forma uma espécie de proa isolada com dupla vedação, sobre a qual não nos é possível andar. Neste local, e apontou com o dedo, estão camaradas meus que um alferes interrogou, massacrou, matou e acabou por enterrar. Devo dizer que fiquei vivamente impressionado com as palavras dele. E estou convencido que este indivíduo não é um preto qualquer. Estava mais bem vestido que qualquer um de nós. Diria mais: estava impecavelmente vestido, como nunca encontrei aqui em nenhuma das sanzalas. De óculos escuros, parecia um senhor. E expressava-se num Português bastante correcto. Criticou antigos oficiais que passaram por aqui e acabou por me fazer, em certa medida, um elogio, dizendo que eu não era como os outros. Conseguiu impressionar-me. Acabei por acreditar nas palavras dele. Estou convencido que se trata de um elemento terrorista.

— Já contaste isto a alguém?

— Não. Foi a primeira vez que abordei este assunto. E peço-lhe que esta conversa fique entre nós.

Atravessámos todo o destacamento ao longo da pista. Atravessámos o portão de entrada e seguimos ao longo da picada para Quimbele, em direcção à orla da floresta. Parámos no local onde se está a erguer o posto administrativo. Durante este breve percurso, o capelão perguntou-me:

— Como é que te estás a dar aqui na região?

— Estou a dar-me bem. Tirando os problemas imprevistos, tudo está a correr dentro da normalidade.

— E que tal as povoações envolventes?

— Já deve ter reparado, ontem, como me entendo perfeitamente com toda a gente. Tenho confiança nas pessoas das sanzalas e elas correspondem-me. Quando têm problemas, é comigo que vêm ter. Actualmente, já não sou apenas o comandante do destacamento. Acabei naturalmente por me tornar médico sem qualquer curso, «emprestador» de dinheiro ao GEs, quando estão atrapalhados, conselheiro, transportador de nativos, quando me pedem boleia, explicador de várias disciplinas, em suma, faço de tudo um pouco. Chego por vezes a efectuar passeios pela mata dos arredores, completamente só e desarmado, sem qualquer receio.

— Estou a ver. Estás perfeitamente integrado. E penso que estás a fazer aquilo que todos deviam fazer.

— É verdade. Sinto-me integrado e sem qualquer receio. Mas há uma coisa muito estranha, que gostaria de partilhar consigo. Ando com isto há muito tempo dentro de mim, e não sei como explicar.

— Diz lá o que se passa. Estás perfeitamente à vontade comigo. E estás também a deixar-me intrigado e curioso.

— É uma sensação muito estranha, que ultrapassa os limites da lógica. Nem sei mesmo se deva falar disto.

— Sim. Deves falar. Sou todo ouvidos. O que quer que me queiras dizer, podes estar certo que fica comigo. Sou padre. Não divulgo as confissões e os segredos.

— Quando ando isolado na mata ou ando em operações, tenho a nítida sensação de nunca estar só. É como se andasse alguém invisível ao meu lado.

— Isso é muito estranho. E acontece-te frequentemente?

— Sempre que ando isolado no meio da mata ou quando estou em operações. É como se alguém me andasse a espiar. Alguém que nunca ninguém consegue ver. E, curiosamente, mesmo nas situações de maior tensão, sinto-me como que protegido, como se nada de mal me pudesse acontecer.

— Estás a ter uma sensação dessas, agora, que andas aqui comigo?

— Não! Não há qualquer sensação. Estamos aqui os dois, na companhia um do outro... E mais nada.

— Se calhar é o teu Anjo da Guarda, que te acompanha.

— Será?! Mas que disparate! Está a fazer-me lembrar os meus tempos de miúdo. Recordo-me de me terem ensinado isso, na catequese. E a minha mãe, quando era pequeno, fazia-me, ao deitar, rezar sempre ao Anjo da Guarda. Há muito tempo que deixei de pensar nesses disparates. E também não sou muito dado a superstições e crendices, apesar de já as ter estudado, nos meus inquéritos linguísticos.

— Não são superstições nem crendices, e muito menos disparates. Há algo que nos transcende e que não compreendemos. E, certamente, quando estás sozinho, no silêncio da floresta, em comunhão com a natureza, deverás certamente ter alguma percepção de algo que nos rodeia e nos transcende, a quem devemos tudo quanto somos e quanto nos rodeia.

— Será! Mas se o diz, não vamos agora entrar em discussões de natureza metafísica. Até porque estamos a chegar. Aqui, está a erguer-se o futuro posto administrativo. Ali, do outro lado da picada, junto à orla da floresta, estão as instalações provisórias do administrador. Uma vez que só aqui estão os trabalhadores, vamos até lá, para lhe apresentar o administrador. Vai ter oportunidade de o conhecer melhor, logo, durante o almoço.

 

Creio que já transcrevi mais do que devia relativamente à conversa tida com o capelão. Não referi aqui a confissão feita, que ele não quis ouvir, por achar que não era necessário. Ficará talvez para o próximo aerograma. Por agora, creio que a vossa curiosidade já ficou devidamente satisfeita. Vai sendo altura de dar por concluída esta colecção de aerogramas. Amanhã, ou depois, assim que tiver uns momentos livres, recomeço nova série.

Beijos para os dois e cumprimentos a todas as pessoas amigas. Enquanto continuarem a receber relatórios como este, podem estar seguros de que me encontro de perfeita saúde e sempre com a melhor das disposições.

 

 

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