Desabafo sobre o estado do material

Aqui me têm novamente agarrado à esferográfica. Estou novamente na vossa companhia. São dez horas da noite. Os dois furriéis ficaram entretidos a ler. Eu refugiei-me no gabinete.

Não voltei a ter notícias do pessoal que ficou na picada. O Rodrigues também não levou rádio. Continuamos com as baterias por carregar, o que não pode continuar a verificar-se. Vou ter de providenciar para que seja arranjado um sistema de carregamento das baterias. Na falta de um gerador de corrente, temos as baterias das viaturas. Poderão ser um recurso de remedeio para carregar as baterias dos aparelhos de transmissão. Não posso permitir que continuemos a andar na picada sem levarmos os pequenos aparelhos de transmissão, que fazem parte da dotação dos diferentes grupos. Admira-me só agora me ter lembrado da bateria das viaturas como fonte de energia. Deveria ir agora dar esta sugestão ao responsável pelas transmissões. Mas não o faço. Amanhã tenho tempo. Também não me posso esquecer de pôr este problema a nível superior. Começa a ser tempo mais que suficiente de pôr cobro a todo este «facilitismo». A tropa tem obrigação de andar devidamente equipada. Se não barafustamos, começam a pôr-nos a pata em cima, começam a deixar-nos andar sem os devidos meios de segurança e, no final, quem se lixa, são sempre os desgraçados dos soldados e dos oficiais milicianos.

Deixemos os desabafos. Agora não nos servem para nada. Vamos acabar a correspondência com o relato dos acontecimentos do dia 26, ou seja, de ontem, sexta feira.

Afinal, ainda não vou entrar no relato. Vou ter de o protelar por mais uns minutos. Porquê? Porque acaba de me chegar o homem mais comunicador do destacamento. Entrou o soldado de transmissões no gabinete com uma mensagem. Para cúmulo, vem cifrada. Vou ter de pegar no papel quadriculado e resolver estas palavras cruzadas em cifra. Devo também dizer que aproveitei a entrada do soldado de transmissões para lhe falar da ideia que tive há bocado para recarregar os acumuladores dos aparelhos portáteis de transmissão. Achou bem a ideia, mas lembrou-me que, na maior parte do tempo, as viaturas andam de um lado para o outro. Para carregar os acumuladores, são precisas várias horas seguidas. E teria de retirar a bateria de uma viatura. Significa isto que vou ter de pôr este problema ao capitão. Vou ter de requisitar uma bateria de unimogue nova, para instalar na sala de transmissões. Como ela também acaba por perder carga, com o tempo, poderá alternar com as baterias que andam em circulação nas viaturas. Quando começar a ficar com a carga relativamente baixa, será trocada pela que anda numa viatura, onde voltará a ficar carregada ao fim de algum tempo. Só espero que estas minhas ideias funcionem devidamente na prática.

Já cá canta a mensagem. Está devidamente decifrada. Estava com medo que fosse mais algum aborrecimento Mas não! Foi uma mensagem que teve origem na sede do sector. O comandante do batalhão foi informado que o soldado sinistrado que fiz evacuar não corria perigo de vida. Está devidamente assistido e regressará a esta casa dentro de alguns dias, logo que tenha alta. O comandante de batalhão mandou a mensagem para chegar até mim, a fim de nos tranquilizar. Embora nunca participe directamente nos acontecimentos — para isso existem os milicianos, para enfrentarem os perigos! — o comandante vai procurando estar sempre a par dos acontecimentos. No entanto, não deixo de estar espantado com esta preocupação.

É verdade, acabo de descobrir qual terá sido a origem desta preocupação do comandante. Deve ter calculado que o capelão já se encontra no Alto Zaza. Por isso, dignou-se informar o alferes. Só que teve azar. O capelão não ficará tão cedo a saber dos cuidados zelosos do comandante de batalhão, muito simplesmente porque ainda não conseguiu chegar ao fim da visita aos destacamentos. E daí, talvez a minha língua esteja a ser um pouco viperina. Se calhar a intenção do comandante foi boa e eu é que estou para aqui a fazer maus juízos acerca dele. Aceitemos os factos como eles decorrem, sem tirarmos conclusões apressadas, que podem ser incorrectas e injustas.

E o capelão? O que é que terá feito durante todo este tempo? Terá ido dormir ao Quitari? Ou terá ficado a fazer companhia ao pessoal que ficou na picada, a tomar conta da viatura?

Estou agora a pensar que, por um lado, a avaria da viatura durante a viagem do capelão acabou por ter um aspecto positivo. Não entendam nisto uma má vontade da minha parte. Pelo contrário, até simpatizo com o homem. É simpático e, mesmo que o não fosse, não gosto que nada de mal aconteça a quem quer que seja. Nem aos meus inimigos. Mas a verdade é que esta avaria da viatura até foi providencial.

Não! Não é isso que estão a pensar! Não é por me ter dado tempo para estar agora aqui a escrever-vos. Nada disto! Acho que a avaria durante a visita do capelão foi providencial para ele poder aperceber-se das maravilhosas viaturas em que temos de andar nas picadas. Algumas estão já mais velhas e gastas que a sé de Braga. Andamos sempre sobre rodas inseguras, cheias de remendos, frequentemente a empanarem e a deixarem-nos a meio dos percursos, quando não acontece passarmos dias inteiros sem rodas nos destacamentos, para efectuarmos o reabastecimento de água. São rodas com motores já demasiado gastos. Já era tempo de as viaturas, que estão fartas de fazer comissões, começarem a ser substituídas por outras mais recentes e de confiança. Se fossem os oficiais de carreira que tivessem de andar nelas, de certeza que não as deixariam chegar a tamanho estado de velhice e desgaste!

 

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