Soldado queimado

Neste momento, são quase onze e meia da manhã. Tenho as cinco primeiras alíneas do meu sumário cumpridas. Consegui preencher um avultado número de aerogramas, quase sem interrupções. Só às oito da manhã é que suspendi a escrita durante cerca de meia hora, devido a um acidente grave ocorrido com um soldado. Ficou seriamente queimado com petróleo e tive de pedir a evacuação por meio de helicóptero. Como não posso fazer mais nada do que já fiz, retomei a escrita e continuo, neste momento, ainda à espera que chegue o helicóptero para evacuar o ferido.

Estão espantados com a minha frieza por retomar a escrita, estando um soldado gravemente queimado? O que é que queriam que eu fizesse? Já fiz tudo o que podia fazer, juntamente com o enfermeiro. Cobrimos a área queimada do corpo com gases esterilizadas, depois de termos desinfectado tudo muito bem e espalhado uma pomada antisséptica, para evitarmos qualquer inflamação. A superfície queimada é demasiado extensa para poder ser tratada por nós. A única solução é mandá-lo para um hospital devidamente apetrechado. Por isso pedi a evacuação urgente.

Como é que aconteceu um acidente deste tipo? Como é que um soldado apareceu completamente queimado?

Este acidente é o resultado da estupidez dos nossos soldados. O Martins, assim se chama o soldado acidentado, foi ajudar o camarada responsável pelo pão a acender o forno. E para maior rapidez, resolveu utilizar petróleo. Com a bocarra do forno aberta e já com madeira lá dentro a arder, achou que era mais eficaz mandar lá para dentro uma lata cheia de petróleo. E a brincadeira saiu-lhe cara. Devido à temperatura, que já devia estar elevada, o petróleo inflamou-se quase instantaneamente. Tiveram os camaradas que estavam perto de apagar o fogo, que se lhe pegou às roupas. Tiveram de utilizar terra e um casaco de um camuflado, com que um soldado teve a feliz ideia de o cobrir, abafando as chamas que o tinham envolvido. Foi um verdadeiro pandemónio durante cerca de meia hora. Com a gritaria, larguei a escrita e corri para a zona do forno. Quando lá cheguei, já as chamas tinham sido apagadas. Levámos o soldado para a enfermaria e tirámos-lhe cuidadosamente a roupa. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance, eu e o enfermeiro. Como nada mais podia fazer, depois de prestados os primeiros socorros e de ter pedido a evacuação urgente, retomei a escrita, para ver se me consigo pôr em dia e, ao mesmo tempo, reduzir o nervosismo com que fiquei.

E por falar em nervosismo, estou neste momento a lembrar-me do meu pessoal que saiu de madrugada com o capelão para o Quitari e a Camuanga. Começo a ficar apreensivo com mais este problema. É quase meio-dia e ainda não recebi nenhuma mensagem deles. Pedi ao furriel Teodoro que ligasse pela rádio assim que chegasse a cada um dos destacamentos. Ou ele se esqueceu das minhas recomendações ou borrifou-se para as ordens. Espero que não tenham problemas. Já me bastou a queimadura do Martins. E o pior é que já lá vão três horas e o helicóptero continua sem chegar

 

Acabo de ir às transmissões e de falar para Quimbele. Diz o capitão que tenha paciência, que me acalme, que já está o pedido feito. Que tenho de aguardar, que os helicópteros não são como as moscas. É preciso dar tempo ao tempo.

É tudo muito lindo de dizer. Gostava de ver como é que ele ficava se estivesse aqui na minha situação, à espera da evacuação de um doente. Mas a verdade é que não me adianta estar para aqui a magicar no problema. Vou ver se aproveito o pouco tempo que me resta antes de almoço, para continuar o relato interrompido. Sempre deve custar menos esta espera inútil.

Regressemos ao dia vinte e três de Janeiro. Neste dia, tudo correu da melhor maneira possível aqui no destacamento. Não tive imprevistos nem nada de especial a registar, a não ser o meu passeio pelos arredores. Passei uma grande parte do tempo com o administrador do Alto Zaza, a acompanhar a evolução dos trabalhos.

Os alicerces do posto administrativo já estão construídos, de acordo com o projecto. O mesmo se pode dizer da fossa séptica, ao lado do edifício. Os trabalhos decorrem num bom ritmo. Em breve, teremos o edifício concluído.

No dia vinte e quatro de Janeiro, decifrei, da parte da manhã, uma mensagem do capitão, que dizia:

 

«CAPELÃO NA SEDE. AGUARDA VINDA VIATURA CÁ PARA SEGUIR PARA ESSA. NÃO É URGENTE.»

 

Como a mensagem diz que não é urgente e não temos de ir a Quimbele, não precisei de me preocupar. Se o capelão tiver muita pressa de vir para cima, poderá utilizar a boleia do administrador. Ele vai frequentemente a Quimbele e tem sido ele, nos últimos tempos, quem nos faz o favor de levar e trazer os sacos da correspondência. Com a sua ajuda, tem-nos poupado muitas horas na picada. Uma das coisas, além do reabastecimento, que nos fazia ir frequentemente a Quimbele, era o correio. Como isto está garantido por ele, tem-nos dado uma ajuda valiosa, sem falar na companhia que nos tem proporcionado, especialmente a mim. Tenho aproveitado alguns momentos de ócio, quando não me apetece escrever, para sair um pouco do ambiente do destacamento. Umas vezes, é ele que vem até ao destacamento. Tomamos umas bebidas e conversamos um pouco. Outras, sou eu que saio e vou passar um bocado com ele. E a lanterna eléctrica, que comprei em Quimbele, quando cá cheguei, ultimamente tem-me feito um grande jeito para as deslocações nocturnas entre as instalações provisórias do administrador e o destacamento.

 

 

Vou agora interromper novamente a escrita. Tenho o almoço e quero também ir ver como está o Martins. Vou também procurar ligar para os destacamentos, para ver se consigo saber alguma coisa do meu pessoal. Estou há já seis horas sem receber notícias do grupo e do capelão. O furriel Teodoro vai ter de me ouvir, quando regressar. Não está a cumprir as ordens que lhe dei. Pedi-lhe que ligasse pela rádio à medida que fosse passando pelos destacamentos, às horas em que costumamos estabelecer as ligações. Até ao momento ainda não se dignou comunicar. Como se já não bastasse o acidente com o soldado, ainda tenho de aturar esta incerteza por causa do furriel!

 

 

São agora dezassete horas do dia vinte e sete. Aqui estou novamente a retomar a escrita. Isto, hoje, quase que parece uma reportagem em directo! Este sábado está-se-me a revelar um dia do «caraças»! Às seis da manhã, saiu o capelão com o furriel Teodoro. Pouco depois, agarrei-me com garra à esferográfica, para pôr a correspondência em dia. Às oito horas, fui sobressaltado pelo acidente com o soldado Martins. A manhã passei-a repartido entre a escrita e o sobressalto por falta de mensagens do grupo que saiu para o Quitari e Camuanga. Finalmente, por volta das quinze horas, chegou o helicóptero para evacuar o soldado queimado. O helicóptero aterrou perfeitamente no campo de futebol em frente ao edifício do comando, sem qualquer problema. O pior foi o que veio a seguir. Enquanto estávamos a colocar o doente na maca, para o levarmos para o heli, desabou uma violenta trovoada e carga de água sobre o destacamento. Com tamanha tempestade, tivemos de suspender a evacuação. O helicóptero não podia levantar. Só pelas dezasseis e trinta o tempo clareou e a tempestade passou. Entretanto, tive que dar ordem aos cozinheiros para preparar uma refeição decente para os dois pilotos. Como não havia helicópteros no Negage, o heli veio directamente de Luanda. Os pilotos saíram pouco tempo depois de terem recebido o meu pedido de evacuação. Só que de Luanda ao Alto Zaza são, talvez, em linha recta, uns oitocentos quilómetros. Necessitaram de umas boas horas de voo. E estavam ainda com os estômagos por abastecer. O ferido irá directamente para o hospital mais próximo, possivelmente para Carmona. E só amanhã os pilotos deverão regressar a Luanda.

Finalmente, pelas dezasseis horas, enquanto aguardávamos que passasse a tempestade para reabastecermos o helicóptero e levar o sinistrado na maca, recebi a primeira mensagem do furriel. O silêncio dele está parcialmente justificado. Estiveram toda a manhã no Quitari, onde o capelão celebrou uma missa e conviveu com o pessoal. Deveria ter-me ligado assim que chegou, mas esqueceu-se. Depois do almoço, seguiram para a Camuanga. Mas tiveram uma avaria a meio da viagem. Ficou metade do pessoal junto da viatura e o furriel regressou a pé ao Quitari com a outra metade. Foi quando me ligou pela rádio, a pedir ajuda.

Há pouco, seguiu o furriel Rodrigues com um grupo, para ir socorrer o pessoal. Como não temos meios de rebocar a viatura e a hora do dia vai avançada, levaram rações de combate e vão ter de lá permanecer até amanhã. O helicóptero foi devidamente abastecido. Levámos um bidão de duzentos litros para o campo de futebol e enchemos os depósitos, orientados pelo piloto e pelo mecânico que o acompanhou. Acabou de levantar pouco depois de ter saído o grupo de apoio.

Acabei há pouco de comunicar para a sede da Companhia, a pedir ajuda, porque ficámos sem viaturas no destacamento e não temos meios de socorrer o grupo. Segundo o capitão, amanhã, domingo, dia 28 de Janeiro de 1973, sairão dois unimogues, de madrugada, em direcção ao Alto Zaza, para irem resolver o problema. E eu, agora, uma vez que nada posso fazer, vou aproveitar o resto do tempo para continuar a minha conversa convosco, depois de reflectir um pouco sobre o que terei de fazer amanhã.

Qual foi o resultado da minha reflexão?

Estão com curiosidade em saber o que acabei de planificar para amanhã? Pois então aqui vai o que acabo de equacionar.

Amanhã é domingo. Vai ser um domingo diferente. Pela primeira vez, ao fim de muitas semanas, vamos ter um domingo com missa e tudo. O capelão tinha pensado celebrar uma missa com todo o pessoal da parte da manhã. Mas como estão avariados, a missa não vai ser possível tal como ele a previu. Quando muito, terá de ser feita da parte da tarde. Com o novo forno, remodelado e bastante ampliado, vou amanhã de manhã, bem cedo, a uma sanzala com alguns soldados. A Cabaca é aqui perto. Dá para lá ir perfeitamente a pé. Vou outra vez comprar ou trocar uns leitões com os nativos. Se não os quiserem vender, tenho a certeza que não vão resistir a um garrafão de vinho e um pacote de sal. Vai ser outra almoçarada de leitão. E, antes disso, ainda me vou divertir mais uma vez com os meus soldados. Como os leitões andam à solta no meio das sanzalas, é preciso correr e cercá-los, para os conseguirmos agarrar. Ainda nos vamos divertir um bocado para apanharmos os animais roncantes. E ganharão uma cerveja os soldados que os conseguirem apanhar. Vai ser mais divertido do que ir ao cinema ou participar num desafio de futebol. Até porque o jogo de futebol, que eu tinha planeado para amanhã, entre os soldados e a equipa da sanzala de Peto Bangamba, de Quingange, não vai poder realizar-se. Vou ter de adiar para o domingo seguinte.

Se os jogadores aparecerem amanhã, uns três ou quatro leitões deverão dar para toda a gente. Até pode ser que, depois de um domingo bem passado, com uma missa ao fim da tarde e com todo o pessoal benzido pelo capelão, eu consiga a inspiração lá do alto para o ansiado hino. Quem sabe se, depois de um domingo com missa, não irei sonhar com um coro de anjinhos papudos, a cantarem hinos celestiais, que me inspirem para um hino terrestre aos Tigres de Sanza!

Agora, que acabo de vos revelar os meus projectos para amanhã e que já transmiti as minhas ideias aos dois furriéis, que ficaram comigo, vou reatar o relato interrompido.

Onde é que tínhamos ficado?

É verdade, foi na transcrição da mensagem recebida no dia 24 e da maneira como tenho passado o tempo, graças à presença do Senhor Administrador do Alto Zaza.

 

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