Regresso ao Alto Zaza

O ter de passar a noite na Camuanga não estava nos meus planos. Tinha previsto, na véspera, uma viagem com ida e volta no mesmo dia. Por isso, nenhum de nós viera prevenido com material para dormir: nem cobertor, nem tenda! Se, de manhã cedo, estivesse a chover, ainda teria trazido a capa impermeável do camuflado. Embora seja para a chuva, talvez ajudasse a manter o calor do corpo durante a noite. Mas nem esta peça do vestuário, que raramente utilizo, veio comigo.

Depois do jantar, no final do dia, resolvi passar a noite na conversa com o furriel Amândio e o Francisco, o chefe dos milícias. Até à uma da manhã, o tempo passou depressa. O Francisco aproveitou a minha presença para recordar o tempo de tropa. Fizera parte de uma Companhia que passou por Quimbele e pelo Cuango, no princípio da década de mil novecentos e sessenta. No final da comissão, resolveu ficar por Angola. Regressou a Quimbele e passou de cabo a chefe dos milícias. Não há área nenhuma desta zona de Angola onde ainda não tenha estado e que não conheça como as suas mãos. Apesar de branco, assimilou alguns costumes nativos. Além de efectuar diferentes patrulhamentos na zona, é também responsável por vários grupos de milícias, civis nativos devidamente treinados e armados para defesa das povoações, no caso de ataques terroristas. Foi uma sorte ter coincidido o ataque à Camuanga com a presença dele na Cabaca, onde viera, segundo depreendi, controlar as milícias e dar assistência à miúda nativa que tem na sanzala. Talvez por isso o Francisco nunca tenha pensado em casar, pois prefere ir dando assistência às várias mulheres que tem nas diferentes zonas por onde periodicamente vai rodando.

— E da terra onde nasceu, não tem saudades? — perguntei-lhe a certa altura da conversa.

Lá ter saudades, evidentemente que tem. Mas aqui é alguém importante, com ordenado certo ao fim do mês, conhecido e com alguém que o ama em vários pontos por onde vai tendo de passar, para cumprir a sua missão como chefe dos milícias e como homem. E se miúda havia na Metrópole, há muito o terá esquecido e constituído família. A família dele, agora, são todos os elementos desta vasta região, onde se sente perfeitamente integrado.

Por volta da uma da manhã, depois de ter passado algumas rondas, sentei-me junto do meu pessoal, próximo do lume onde se cozinha.

Afagado pelo calor da fogueira, os meus olhos estavam a querer fechar, quando fui assaltado por um burburinho proveniente das sentinelas.

— Alferes, estamos a ser atacados. Anda gente à volta da Camuanga.

— Como assim?

— Anda gente. Vêem-se umas luzes esquisitas a apagar e a acender. São turras a darem sinal uns aos outros.

— Mas que disparate! Se fossem turras, não andavam a acender luzes de maneira a serem vistos pelas sentinelas.

— É verdade, alferes. Eu próprio vi as luzes a apagarem e a acenderem.

Levantei-me contrariado e reuni uns soldados, para irmos ver o que se passava:

— Malta, vamos ver o que é. Há algo fora do normal. Venham daí e não façam barulho. Onde é que viste as luzes?

— Ali daquele lado, alferes.

— Vamos lá. Com cuidado e em silêncio.

Aproximámo-nos do local com a maior precaução e sem qualquer ruído. Quando lá cheguei, verifiquei que havia uma luzes estranhas. Também eu as estava a ver. Lá estavam elas, mas... A sua frequência era bastante cadenciada. E havia luzes que desapareciam dum local e surgiam depois noutro, um pouco mais adiante. Achei estranhíssimo. Nenhum terrorista, por muito estúpido que fosse, faria sinais de luzes tão visíveis e cadenciados como aqueles. Fui-me aproximando devagar. Cada vez mais perto e as luzes cada vez mais distintas, a flutuarem no ar.

— Malta, podem aproximar-se sem receio. Não há qualquer perigo. Venham admirar os terroristas que vos assustaram.

E admirámos com um certo encanto aqueles terroristas que piscavam de um lado para o outro, junto dos arbustos. Eram pirilampos. Eram pirilampos de um tamanho descomunal, muito maiores do que aqueles que observamos na Metrópole, nas nossas aldeias, nas noites quentes de Verão. Uma punhado deles, dentro de um frasco de vidro, seria uma óptima fonte natural de iluminação. Seria uma fonte de luz fosforescente, capaz de iluminar o bastante para vermos quase perfeitamente à nossa volta.

Regressei ao afago do calor da fogueira. E adormeci finalmente, para um curtíssimo mas profundo sono. Quando abri os olhos, observei os ponteiros fosforescentes do relógio Caunymatic, que comprei na messe do quartel, em Mafra, durante a especialidade. Marcavam cinco da madrugada. Levantei-me e passei uma nova ronda. Conversei um pouco com as sentinelas. As estrelas começavam a desvanecer-se, à medida que o manto da noite começava a ceder o lugar a uma claridade cada vez mais esbranquiçada. Em breve, teríamos o astro-rei a surgir por cima das elevações que rodeavam a Camuanga. Já não valia a pena voltar a adormecer.

Alguns soldados da Camuanga andavam já a pé. Com a proximidade do dia, as sentinelas rendidas ficaram na conversa connosco. A noite estava fria. Resolvemos aproveitar a fogueira para fazermos café, para nos espevitar e aquecer. Por volta das seis da manhã, já era dia. Estava todo o pessoal levantado. A enorme tachada de café, que fizemos para todo o pessoal, ajudou a espantar os últimos vestígios de sono. A minha máquina de café continuava dentro da mochila, em cima da viatura, sem qualquer utilidade. Fora derrotada pela grande capacidade de um tacho colocado ao lume.

Embora o café não fique tão saboroso como na pequena máquina, a verdade é que soube igualmente bem e foi bebido por todos com satisfação. Antigamente, em Portugal, se ainda se recordam desses tempos, a mãe costumava fazer o café deitando o pó numa cafeteira com água a ferver. E depois passava-o por um coador de pano. E tínhamos café para alguns pequenos almoços e lanches. Aqui, o sistema utilizado foi idêntico. Fervemos a água num tacho enorme, deitámos-lhe a «olhómetro» cerca de metade de um pacote de café moído e mexemos com a concha da sopa. Esperámos uns minutos que o pó assentasse. E tivemos um café razoável e bem quente, para nos acordar e servir de pequeno-almoço. Todos bebemos e não houve ninguém que recusasse a bebida.

Passava pouco das seis da manhã quando nos despedimos do pessoal da Camuanga e arrancámos para o Alto Zaza.

 

Página anterior Home Capítulo seguinte