Saída e regresso imediato a Quimbele para tratamento

Depois do balanço feito no parágrafo anterior, não fiz mais nada. Decidi aproveitar o balanço do balanço para ir balancear-me um pouco pelo destacamento, antes do almoço. Como estava com as calças do camuflado e com as botas, que vesti desnecessariamente logo pela manhã e agora me incomodavam, devido ao calor, fui enfiar os calções com que ando habitualmente no destacamento e uns sapatos, muito mais leves que as botas de couro e as de lona. É certo que os sapatos são bons demais para andar aqui nesta terra solta do destacamento. Se fosse dar a minha volta pelos arredores, levaria as botas, que são mais seguras, especialmente as de couro. As botas de lona, que alguns soldados preferem levar nas operações, são mais leves e agarram-se melhor ao terreno, mas não protegem o tornozelo, se tivermos o azar de colocar mal um pé. As de sola de borracha e cano alto, embora mais pesadas, têm a vantagem de proteger mais. Além de se sentir menos o terreno, porque são mais duras, o cano alto dá mais firmeza aos pés, evitando possíveis entorses. Em plena operação na mata, permitem que as calças do camuflado fiquem firmemente apertadas na extremidade, à volta do cano alto de cabedal, o que dificulta a entrada de insectos, especialmente das formigas, quando temos o azar de calcar um carreiro.

Pois andava deambulando pelo destacamento quando encontrei o furriel. Aproveitou logo o meu aparecimento para tirar uma fotografia.

— Esta vai ficar para mostrar a elegância do alferes. — disse o furriel na brincadeira. De calções, sapatos e meias pretas, fica mesmo a matar. Ainda bem que não sou uma miúda. Corria o risco de me apaixonar pelo alferes.

No Alto Zaza (Quimbele, Sector de Uíje, Angola) em Janeiro de 1973.

— Vá brincando, vá. Olhe que a sua figura não é melhor, com essas mamas à mostra. Qualquer dia ofereço-lhe um soutient. Então, já tirou muitas fotografias?

— Algumas. É para mostrar o destacamento à minha mãe, quando lhas mandar para Lisboa. Pode ser que ela faça uma exposição no corredor da pensão.

— Estou a ver. Fixa-as na parede com fita adesiva e escreve uma legenda: «Destacamento do Alto Zaza, em Angola, onde se encontra o meu filho».

— Então o alferes deixou as escritas

— Acabei com um balanço do que tenho de escrever. E resolvi vir balancear um pouco o corpo antes do almoço.

— Fez bem. Não pode estar sempre agarrado à caneta...

Não vou falar mais da minha passeata com o furriel para abrir o apetite. Depois do almoço, também não voltei a pegar na caneta. Permiti que me mexessem na cabeça.

Nada de mal entendidos! Na minha cabeça não mexe ninguém, a não ser a minha pessoa. Mas, de vez em quando, temos de fazer concessões. Aqui, no destacamento, só há uma pessoa a quem deixo mexer, periodicamente, na minha cabeça. Nunca tive jeito com a tesoura. Quando fiz a experiência, em miúdo, a mãe deu-me uma valente tareia e teve de me levar ao barbeiro. E foi com muita dificuldade que ele conseguiu disfarçar as tesouradas que dei no cabelo. Aqui, só a um elemento permito que mexa na minha cabeça: é o soldado que é barbeiro na vida civil e que trata de nos desbastar, de tempos a tempos, o capim capilar.

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Só hoje, dia 17 de Janeiro, já de madrugada, retomei a conversa convosco. Decidi recomeçar pela correspondência. Como neste período de tempo só recebi uma carta, foi por ela que retomei a minha actividade com a caneta. Desta vez, não efectuo qualquer transcrição. Receberão em breve um duplicado a químico dos dois aerogramas que escrevi. Foram duas folhas para a mesma pessoa, em que falei, entre outras coisas, da habilidade dos miúdos nativos, assunto que penso retomar quando entrar no relato dos acontecimentos. E, por falar em acontecimentos, é altura de dar um salto no tempo e recuar até ao dia 6 deste mês. Ainda se lembram do que fiz nesse dia?

Seguramente já deverão ter esquecido que foi na madrugada desse dia que escrevi a maior parte da carta anterior. Passei a noite inteira agarrado à caneta, para passagem mais rápida do tempo.

Foi na manhã desse sábado que iniciei o tratamento, com uma injecção diária. Eram dez e meia da manhã quando o enfermeiro encheu a seringa com uma dose dupla de antibiótico e me espetou a agulha, para banir a infecção. Foi o que se pode considerar uma dose cavalar, para liquidação rápida dos gonococos.

Durante o almoço, o capitão procurou inteirar-se melhor do meu problema. Pela abordagem, deduzi que já na véspera, antes do jantar, conversara com o médico a meu respeito. Mas o médico limitou-se a dizer que se tratava de uma infecção nas vias urinárias, não lhe tendo especificado as causas. E, durante o jantar, também não se tocou no assunto, talvez por verem as dificuldades em que me encontrava. Agora, como o médico pouco adiantara, procurou ver se eu me descaia e falava no assunto. Escusado será dizer que pouco ou nada adiantei. Limitei-me a dizer que, durante a madrugada, sentira umas fortes dores na bexiga. E como elas me surgiam periodicamente cada vez mais fortes, vim a toda a pressa para Quimbele à procura do médico.

Na hora da bica, aproveitei uns momentos a sós com o médico para lhe agradecer o sigilo.

— Não tens nada que agradecer. Como médico, a minha obrigação é não falar dos problemas dos meus doentes.

— Ainda bem! Agradeço esse cuidado. Já viste o que seria se eles soubessem a verdadeira razão da minha infecção? E para mais tendo tido todas as precauções?! Não faltariam brincadeiras desagradáveis com uma situação grave como esta!

— Também não exageres! Não é assim uma situação tão grave como isso! Acontece a qualquer um. É a coisa mais banal entre a malta jovem. E agora quando pensas voltar ao destacamento?

— Estou a pensar regressar ainda hoje, a meio da tarde.

— Hoje não! Disse ao capitão que queria acompanhar a evolução do tratamento.

— Então quando? Amanhã, na pior das hipóteses tenho de regressar. Não posso deixar o meu pessoal sozinho.

— Se ainda hoje deixares de sentir dores, é sinal que a dose reforçada de antibiótico começou a produzir efeito. Ficas mais um dia e depois abalas para cima.

— Não dá. Se ainda hoje deixar de sentir dores, arranco amanhã. As injecções também podem ser tomadas no destacamento. Também lá temos enfermeiros.

À hora do jantar, tomei uma decisão definitiva:

— Amanhã, a meio da manhã, regresso ao destacamento. Durante a parte da tarde, as dores quase desapareceram.

— Mas o médico disse que tinhas de ficar cá dois ou três dias, para seguir a evolução. — disse o capitão.

— Tenho de regressar. Não posso deixar o meu pessoal sozinho. Continuo o tratamento no destacamento. Faço um relatório diário para o médico pela rádio, se for preciso.

— Tu é que sabes.

A meio da manhã do dia seguinte, arranquei com o meu pessoal para o Alto Zaza. Quando lá cheguei, tinha uma mensagem urgente do capitão:

 

«COMANDANTE DESSA DEVE REGRESSAR IMEDIATAMENTE ESTA. TRAZER DUAS TESTEMUNHAS CAUSA JOÃO RAMOS E BAMBI. FICARÁ CÁ TRÊS DIAS.»

 

Que concluir desta mensagem? Perante a insistência do médico, que queria seguir de perto o tratamento, o capitão terá resolvido não correr riscos? Terá aproveitado o facto de estar a correr um processo motivado pelos dois GEs, o João Ramos e o Bambi, e precisar das duas testemunhas para me fazer regressar no mesmo dia à sede da Companhia?

São perguntas para as quais não tenho quaisquer respostas. Não passam de meras suposições. E também não procurei inteirar-me da verdadeira razão de me terem feito regressar ao ponto de onde saíra de manhã. Limitei-me a cumprir as ordens e a aproveitar a situação.

 

Durante os três dias que permaneci em Quimbele, não surgiram oportunidades nem vontade de pegar na caneta. Além de um agradável convívio com os meus camaradas e os civis, andei entretido a acompanhar os últimos retoques na construção da sala de cinema de Quimbele.

Um grupo de civis decidiu que a localidade era uma povoação suficientemente importante e populosa para aguentar uma sala de cinema. E se bem o pensaram, melhor o fizeram. Em poucas semanas, construíram, próximo do campo de jogos e do gerador de abastecimento de energia eléctrica, mesmo no centro da terra, uma sala de cinema. Acompanhei com interesse os últimos arranjos, para inauguração no próximo domingo.

Na sexta feira, saí de Quimbele para o destacamento, logo pela manhã, bem cedo, para seguir depois do almoço com um reabastecimento para a Camuanga. O dia doze foi praticamente passado na picada, o que me deixou com o corpo completamente moído e sem vontade para mais nada, a não ser dormir.

No dia seguinte, às dez da manhã, arranjei um pretexto de reabastecimento do Alto Zaza para regressar a Quimbele e aqui passar o fim de semana. No domingo, era a inauguração do cinema. De modo nenhum queria estar ausente. Queria ver em funcionamento a máquina de projectar de 35 milímetros, um modelo um tanto antiquado e em segunda mão, mas ainda em bom estado de funcionamento. E, sobretudo, queria assistir a uma sessão de cinema, espectáculo que não via há muitos meses e que nos trazia a todos, militares e civis, numa grande expectativa.

O fim de semana em Quimbele foi para mim um curto período de descontracção, muito bem passado, quase sempre na companhia do Dr. Graça Marques, o que me vai obrigar a um relato minucioso nos próximos momentos de escrita. Por agora, vou ter de interromper a conversa. O sol já vai alto. Os furriéis já tomaram o pequeno almoço sem a minha companhia. Tenho as rotinas da manhã no destacamento.

— E a Rosa? — estão vocês a perguntar-me. Ainda continua no destacamento? Não foi com ela que os furriéis tomaram o pequeno almoço? O médico não tinha dito para a fazer sair do destacamento, depois de tratada por ele?

Têm toda a razão. No meu relato só falei de mim e esqueci-me completamente da rapariga. Terá sido intencional ou simples lapso de memória? Será que fiquei de tal modo traumatizado que a varri completamente da memória?

Peço muita desculpa, mas vou ter mesmo de interromper a carta. As obrigações estão em primeiro lugar. Sou responsável por quarenta homens. É um fardo de grande peso. Logo à noite ou amanhã retomo a conversa. E prometo relatar o fim de semana com o médico e responder às perguntas, ainda que isso me vá obrigar a saltos no tempo e a tapar hiatos.

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