Melancolia e tristeza eliminadas por um disparo

Alto Zaza, 16 de Janeiro de 1973

 

Espero bem que a minha última carta tenha levado vários dias a ler, compensando este largo espaço de tempo que estive sem pegar na caneta, para vos dar notícias. Como é que se explica um espaço de dez dias sem notícias?

Estive uns minutos parado a pensar na resposta à pergunta. Encontrei, não uma resposta, mas várias, todas elas pertinentes e explicativas desta pausa na escrita.

Estes dez últimos dias foram repletos de acontecimentos. Vi-me envolvido, em primeiro lugar, no problema que me levou de urgência para Quimbele. Foi uma gaita de um problema por causa do problema da gaita, que teve de ser reparada e afinada, para me poder proporcionar futuros concertos. Foi o que se pode considerar um conserto para futuros concertos. Com a gaita desconsertada, não pode haver consertação social. E, como elemento eminentemente social que sou, quero poder dar, mais tarde, quando me vir livre destes trabalhos forçados por terras angolanas, o meu contributo social para o País em que tive a felicidade de nascer. Não quero que a minha árvore genealógica se interrompa por causa de um desconserto na gaita. Espero vir a encontrar uma rosa em condições, sem espinhos aguçados, com quem possa formar um bom dueto para concertos amorosos. Como bom cidadão, espero poder contribuir para o aumento populacional do meu Portugal pequenino. Só com uma gaita bem afinada é possível dar bons concertos. Daí que, durante alguns dias, me vi confrontado com este problema da gaita e com pouca vontade para pegar na caneta.

Mas esta não é a única resposta à pergunta. Encontrei outras tão válidas como a primeira e quase tão importantes. Vi-me envolvido em frequentes viagens entre Quimbele e o destacamento, tendo permanecido a maior parte do tempo na sede da Companhia, facto que se revelou incompatível com a caneta.

O contacto com meios sociais mais evoluídos que a mata, onde tenho passado estes últimos meses, é inimigo das minhas conversas convosco. O excesso de companhias e os convívios uns com os outros são inimigos da escrita. Longe do sossego do destacamento, as ideias e a necessidade destas conversas tornam-se arredias. Se o grande e único épico da nossa literatura não tivesse andado isolado e distante da terra pátria por terras do Oriente, se não estivesse desterrado e enterrado numa gruta na companhia de um criado indígena, nunca teria sentido os espinhos da saudade, nunca teria tido a possibilidade de nos deixar aquelas magníficas estâncias d’ Os Lusíadas.

É preciso estarmos isolados e longe de familiares e amigos para que as ideias comecem a fluir abundantemente. As saudades da vossa companhia começam a picar-nos como espinhos aguçados. E não temos outra solução senão procurarmos o lenitivo para a dor na conversa, através deste modesto recurso, que nos é proporcionado pela caneta e pelas folhas dos aerogramas, sobre as quais ficam registadas as nossas palavras, que depois voam até junto de vós. E vão com elas as nossas mágoas, as nossas saudades, os nossos desabafos, e este registo escrito dos acontecimentos e das minhas reflexões.

O mais interessante disto tudo é que, quando estou concentrado na escrita, tenho a sensação de ouvir as palavras e os pensamentos dos pais. Ouço muitas vezes as vossas palavras e pensamentos, quando estou isolado neste planalto do Alto Zaza. Será que, nesses momentos, o pai e a mãe estarão a pensar e a falar de mim? Seguramente, não passam de ilusões geradas pela imaginação, que deste modo procura colmatar e minorar a necessidade da vossa presença, que esta ausência e isolamento mais aumentam.

Escola Primária Nº 1 de Espinho, em 8 de Setembro de 1963.

A necessidade da vossa companhia e do contacto com as terras em que vivi e passei a minha infância é tão forte, que tenho, por vezes, a sensação de ouvir o barulho do mar, aquele barulho que ouvia, em miúdo, quando vivíamos em Espinho, e que me chegava, nas noites tempestuosas de Inverno, pelo postigo do telhado. Era um postigo rectangular de diminutas dimensões, que permitia a entrada de luz e ar naquele quarto em que dormia, situado entre o tecto da sala de aula e o telhado. Era um quarto pequeno, simétrico de outro existente na residência ao lado da nossa. Eram dois quartos que ficavam situados nas partes laterais do edifício central, por cima das salas de aulas contíguas, entre estas e o telhado, para aumento do espaço habitável das duas residências dos professores, no corpo central do edifício da Escola Primária N.º 1 de Espinho. Até desta casa, onde vivi os meus primeiros dezasseis anos de vida, sinto saudades!

Imagens de Espinho em 1952.

O mais interessante é que chego a ter a sensação de ouvir o barulho do mar. E este som tão apetecido chega-me juntamente com o cheiro característico da maresia. Como é isto possível, se estou a uns oitocentos quilómetros de Luanda, tão longe do mar? Como é isto possível, se me separam do mar montes e matas cerradas, que mal nos deixam espraiar os olhos por horizontes distantes? Só pode ser fruto da imaginação e da saudade!

 

Ó montes erguidos,
Ó serras e matas,
Contra mim unidos,
Deixai-vos sumir,
Deixai-vos cair.

 

Deixai-me voar,
Deixai-me voltar,
Para assim matar
Saudades do lar
Onde fui criado.

... ... ... ... ....

 

Estava a cair num estado esquisito de melancolia e tristeza, que me fez escrever os versos anteriores, quando fui bruscamente despertado por um disparo, a meio desta manhã em que retomei a correspondência interrompida nestes últimos dez dias. O furriel Rodrigues disparou a máquina fotográfica sem eu dar conta. Foi o disparo da máquina que me interrompeu os versos, que estavam a fluir naturalmente na minha cabeça. Fiquei sem as restantes quintilhas, mas tirou-me de uma sensação estranha de melancolia, fazendo-me voltar à realidade envolvente.

Dando notícias, no Alto Zaza (Sector de Uíje-Nordeste de Angola) em Janeiro de 1973.

Estou a escrever-vos ao ar livre, junto ao edifício do comando, onde tenho o meu gabinete e quarto. Estou a escrever-vos sentado a uma mesa construída com as aduelas das pipas em que aqui recebemos o vinho da Metrópole. Esta mesa foi-me oferecida há dias por dois soldados. Um deles é carpinteiro na vida civil. Fizeram-me uma surpresa, quando cheguei de Quimbele. Está pintada de verde, uma cor a condizer com as paredes metálicas dos nossos pré-fabricados, e assinada pelos autores. Num dos lados, escreveram, em maiúsculas, os nomes dos construtores; do outro, indicaram o ano da construção: 1973.

Em breve, o espaço em frente ao comando vai sofrer alterações. Tenho entre mim soldados que são especialistas a trabalhar a madeira. Para ocuparem o tempo, andam neste momento a desmontar as várias pipas de vinho vazias, para aproveitamento das aduelas. Vão construir um banco comprido, para colocarmos junto ao comando, e diversas mesas e bancos, para os soldados terem onde jogar as cartas e tomar umas bebidas. Aos poucos, estamos a introduzir algumas comodidades no destacamento.

Com a interrupção provocada pelo disparo da máquina, o furriel acabou por me alterar completamente o curso das ideias. Foram-se as respostas à pergunta, foram-se os versos que me estavam a sair da caneta; mas, mais importante que tudo isto, a verdade é que regressei bruscamente à realidade do destacamento. Contribuiu para isso não só o disparo da máquina, mas sobretudo o diálogo com o furriel, que me interrompeu, por uns minutos, a conversa convosco:

— O alferes estava tão concentrado na escrita, tão absorto, que nem deu pela minha aproximação.

— De facto, Rodrigues, estava muito distante daqui.

— Como assim?

— Só cá estavam o meu corpo, esta mesa e os objectos de escrita. Estava muito longe daqui. Muito longe no espaço e no tempo!

— Não o estou a perceber, alferes. Explique lá isso, para ver se o entendo.

— Estava a fazer aquilo que todos nós mais apreciamos. Estava a escrever aos meus pais. E estava tão concentrado nos meus pensamentos, que me sentia como se estivesse junto deles.

— Pois! Isso eu entendo. Sucede a todos nós. Por momentos, temos a sensação de estarmos com os velhotes, com as miúdas que deixámos na terra, com os amigos. Mas o alferes disse que estava longe, longe no tempo.

— É verdade! Estava mentalmente na Metrópole. Mas estava situado numa realidade já muito distante. Regressei, por momentos, aos meus tempos de infância. Era o miúdo desaparecido que permanece sempre dentro de nós. Era o miúdo que estava a regressar à minha pessoa. E vi-me na minha primeira casa, num período bem preciso no tempo. Estava a sentir o barulho e o cheiro do mar, numa noite tempestuosa de Inverno.

— Parece-me é que o alferes começa já a ficar cacimbado, como diz o pessoal da região. E o pior é que ainda nem sequer experimentámos essa estação. Se o alferes ao fim de três meses já está assim, quando chegarmos à época do cacimbo deve estar arrumado.

— O Rodrigues não é nada pessimista!

— É verdade, alferes. O alferes nem parecia estar aqui. Já viu que me aproximei de si, falei-lhe, procurei uma boa posição, tirei-lhe uma fotografia... E o alferes só levantou a cabeça quando ouviu o clique da máquina!

— Nunca lhe aconteceu estar concentrado numa actividade e abstrair-se de tudo quanto o rodeia?

— Já! Mas nunca dessa maneira, ao ponto de não ter dado pela presença de alguém.

— O Rodrigues está a aproveitar esta magnífica manhã para acabar com o rolo...

— Vou-me entreter um pouco. Quero ficar com imagens do destacamento. Vou ver se recupero o atraso em relação ao alferes. Não quer vir comigo?

— Não, Rodrigues. Preciso de escrever para casa. Há dez dias que estou sem dar notícias. Vai oferecer-me a fotografia que me tirou?

— Claro, alferes. Quando as tiver, o alferes poderá também ficar com elas. É só mandar tirar as cópias que quisermos. E já que o alferes não me quer acompanhar, vou-o deixar até ao almoço.

— Até já, Rodrigues. Boas fotografias.

 

Foi esta a conversa que tive com o furriel e que procurei reproduzir o mais fielmente possível, enquanto as palavras não se afastaram demasiado, levadas pela aragem.

Quanto a mim, agora, vou ter de reler os oito aerogramas já preenchidos, para ver se retomo o fio à meada. Estou a sentir uma certa dificuldade em retomar a escrita. O motor arrefeceu. É preciso que volte a aquecer, para que o carro das ideias comece a rolar com facilidade e fluidez.

Há muita coisa para dizer! Dez dias é muito tempo! Vou ter de escolher uma estratégia: posso dar um corte nas ideias e saltar os acontecimentos, o que será cómodo e económico no combustível da caneta e esforço físico; posso limitar-me a uma breve síntese dos factos, o que será talvez melhor hipótese que a anterior; posso elaborar um roteiro, um esquema de trabalho, e ir seguindo-o, para não me perder, tornando-me mais rigoroso nesta minha missão voluntária e aprazível de conviver convosco. O que acham que deverei fazer?

Está a mãe a dizer-me que devo deixar correr as ideias. É sugestão aceitável.

Não? Que não? O pai está a dizer-me que não? Qual é então a sua opinião avisada de professor? Devo fazer um balanço das ideias, um esquema daquilo que devo abordar e, depois, à medida que o tempo me for permitindo, desenvolvo as ideias? É isto que acha melhor? É isto que está a querer lembrar-me?

Estou a ver! Estou a lembrar-me perfeitamente dos seus conselhos, quando tínhamos, na terceira e quarta classe, os trabalhos de redacção sobre temas propostos. Creio que está cheio de razão! É preciso ter método. É preciso elaborar previamente um esquema de desenvolvimento, antes de expor as ideias. Estou plenamente de acordo consigo! É isso mesmo que vou fazer! Vou procurar ser metódico. Vou aplicar os conselhos que nos dava, quando era nosso professor. Digo nosso, porque estou a ver-me na sala de aula, na companhia dos meus companheiros. Os seus conselhos eram para todos nós, embora mais para uns que para outros. Os mais atentos, deverão tê-los guardado para o resto da vida, como foi o meu caso; os mais aéreos, esses, há muito deverão ter esquecido os seus conselhos, se lhes entraram por um ouvido e saíram pelo outro.

Fazendo um balanço dos últimos dias, tenho: as permanências prolongadas em Quimbele; as viagens frequentes entre a sede da Companhia e o destacamento; a correspondência recebida neste período de tempo. 

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