Apalpados pelos terroristas?

Eram dez e meia quando chegou ao quartel um grupo do Quitari, comandado pelo furriel já nosso conhecido. Ouviram o barulho dos tiros e do rebentamento da granada. Vinham em nosso socorro, preparados para o que desse e viesse.

Embora a vida no aquartelamento tenha entrado novamente na rotina, todas as conversas giram em torno do mesmo. Há comentários de soldados e algumas críticas pertinentes, porque soldados houve que entraram em pânico e dispararam as armas quando estavam a sair das casernas. Apesar das recomendações do alferes, houve quem não seguisse rigorosamente as instruções recebidas. Alguns soldados queixavam-se, e com certa razão, que o maior perigo tinha estado dentro e não fora do quartel. Mas todos concordavam: alguma coisa tinha sucedido. Se tentativa de assalto ao quartel houve de facto, ficaram a saber que o pessoal está atento e não se deixa apanhar de surpresa. Por outro lado, os receios do alferes estavam certos: os abrigos melhorados são um factor importante de segurança para toda a gente. E os deslizes cometidos por alguns são desculpáveis, pois numa situação de medo nem todos se conseguem controlar devidamente.

Por volta do meio-dia, chegou ao Alto Zaza o Comandante de Companhia com o alferes Vieira. Foram avisados durante a madrugada pelo radiotelefonista que tinha havido uma tentativa de assalto e que estávamos todos nos abrigos.

No meio do sobressalto da madrugada, não me passou sequer pela cabeça que a máquina fotográfica poderia ter sido um excelente meio de registar os vestígios ainda frescos da tentativa de assalto. Agora, encontram-se misturados com as dezenas de pegadas do pessoal, que resolveu satisfazer a curiosidade e andou, também ele, a percorrer as zonas por onde andei com os dois soldados do meu abrigo. Fiquei sem uma boa prova, para contrapor às opiniões dos que chegaram de Quimbele e que, ainda por cima, querem gozar connosco, dizendo que andamos a sonhar com terroristas. Eventualmente, se tivesse tirado algumas fotografias, as marcas das solas de borracha poderiam servir para comparar com as das nossas botas. E talvez obtivéssemos alguns elementos com interesse. Mas num momento de aflição, quem é que se consegue lembrar de tudo?

Para recordação deste episódio, dei uma volta pelo exterior do destacamento na companhia do capitão Alberto e do alferes Vieira e levei comigo a máquina. Embora tardiamente, tirei uma fotografia que mostra o destacamento da zona onde encontrei, de madrugada, os vestígios das pegadas. Já dentro do destacamento, fomos até ao abrigo onde temos o morteiro pesado, o abrigo que eu identifiquei com o número 12 e que está encostado a outro. É um abrigo que está próximo do portão de entrada e cobre toda a área da pista e do campo de futebol, permitindo alcançar com o morteiro uma vasta zona em caso de ataque. Pois foi aqui mesmo que pedi a um furriel que nos tirasse uma fotografia para recordação. Estou eu à esquerda; ao meio, ficou o capitão, que não pαra de fazer festas à macaquita do soldado, que traz ao colo, e com quem tirei uma fotografia sentado à porta do edifício do comando; à direita, o alferes Vieira. E a dois ou três metros, dois soldados mirones, que se colocaram em posição para, também eles, ficarem para a posteridade.

Tiradas as fotografias, pergunta-me o furriel:

— Como é, Alferes, quanto ao pessoal do Quitari?

— Como é o quê?

— Está na hora do tacho...

— O pessoal que veio de Quimbele trouxe ração de combate. — responde o Capitão.

— Está certo! — acrescento eu. Mas o problema é com o grupo que veio do Quitari em nosso socorro. É uma secção. São poucos homens. O cozinheiro pode fazer esticar a comida para mais oito ou dez pessoas. E se não chegar, que mande alguém à cantina buscar ovos e salsichas. Não lhe deve ser difícil improvisar, com os ajudantes nativos, uma refeição decente para quem veio em nosso auxílio.

— Está certo, Alferes, vou já tratar do assunto.

Aproveitei a hora em que estava todo o pessoal reunido, no refeitório, para fazer um balanço da situação:

— Aqui o nosso Capitão pensa que andámos de noite a brincar às guerras, que foi tudo imaginação nossa...

Ouviu-se um «bruááá» de todos os soldados que estavam no refeitório e manifestavam assim, em uníssono, a sua discordância pela opinião do Capitão.

— Alferes, nós que estávamos de sentinela não sonhámos! — ouviu-se uma voz do meio do refeitório. Não fui só eu que disparei. Mais tarde, também os que estavam do lado oposto tiveram a mesma reacção que eu.

— Seja como for, concordo parcialmente com o nosso Capitão. Talvez não tenha sido um ataque terrorista, tanto mais que não tivemos resposta ao nosso fogo. Mas isto não significa que, àquela hora da madrugada, não tenhamos sido alvos de uma experiência de um grupo inimigo reduzido, para avaliarem como reagiríamos em caso de ataque. O que quer que tenha sido, foi mesmo real, porque eu próprio, durante o ataque, quando disparámos a granada, também vi um vulto a fugir. Fui um dos que disparou às cegas na direcção do vulto, e não fui o único. E de manhã, já com claridade e o Sol quase nado, tive a oportunidade de seguir, com dois soldados, os rastos bem marcados na areia húmida: na área em frente ao comando; e depois ao longo do trilho por onde vamos ao abastecimento da água.

Apesar de alguns soldados terem entrado em pânico e disparado ao saírem das casernas, o que é condenável e altamente perigoso, creio que toda a gente reagiu correctamente, comprovando a eficácia do plano de defesa e mostrando que o trabalho que vos fiz ter, para verificarem e melhorarem os abrigos, foi para interesse de todos.

Os soldados que dispararam tiros deverão levar os cartuchos vazios que recolheram do chão e ir requisitar munições, para terem os carregadores devidamente atestados. E uma vez mais lembro a necessidade de terem o vosso armamento impecavelmente limpo e operacional. Nunca se sabe quando será preciso utilizá-lo. As nossas vidas poderão depender disso! Bom apetite e obrigado por me terem prestado atenção.

— Não te imaginava tão bom falador! — disse-me o Capitão quando nos dirigíamos para o edifício do comando, para almoçarmos.

— Gosto pouco de falar e mais de escrever. Mas quando é preciso, sei inverter a situação. Se assim não fosse, como é que acha que eu podia enfrentar grupos de trinta ou mais miúdos ou adultos em aulas e reuniões de trabalho? É preciso é não gastar as palavras inutilmente.

— Tá bem, tá bem! Deixem-se de conversas e vamos ao tacho, — lembrou o alferes Vieira, interrompendo a nossa conversa que as palavras não nos enchem a barriga.

A meio da tarde, partiam os grupos de socorro: a secção do furriel, que viera do Quitari, num unimogue; o grupo de combate reforçado do Capitão, que viera de Quimbele, na berliet. E voltámos a ficar sós, entregues a nós próprios, mas com uma certeza: a partir de agora, o susto apanhado irá ter um aspecto positivo, na medida em que o pessoal não esquecerá facilmente que estamos em território estranho, onde tudo poderá acontecer quando menos se espera.

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