Papel e prazer da correspondência

Alto Zaza, 29 de Novembro de 1972

Depois de quatro dias em que não peguei na caneta para vos escrever, retomo a escrita. Neste momento os meus dedos já recuperaram. E não só eles, mas a minha vontade de escrever. Há quatro dias, foi com grande alívio que dei por terminada a longa carta, que formou o maior maço de aerogramas escrito por uma só pessoa a circular pelos serviços postais militares. Nem sei mesmo se o avião terá aguentado com tamanho peso de aerogramas. Neste momento deverão estar aí a recebê-los na metrópole. Será que vão conseguir lê-los todos de uma só vez? Tenho fortes dúvidas! Mas como há lá alguns episódios com interesse, talvez a curiosidade vos espicace e os leiam de um só fôlego.

Quanto a mim, foi com grande alívio que os colei e reuni numa pilha cintada. Além de ter batido o meu recorde de escrita e de resistência digital, fiquei satisfeito por ter conseguido pôr em dia o relato dos acontecimentos. Para recuperação, estive quatro dias com fastio à caneta.

Vamos ao que importa. Tive há três dias o grande prazer de receber mais uma carta vossa. É este, sem dúvida, um dos maiores prazeres que podemos aqui ter. À nossa volta só há mata e sanzalas. Tirando as rotinas normais de quem está numa situação como a nossa, do mundo distante só nos chegam alguns ecos através da Rádio Oficial de Angola e das emissões em língua portuguesa de várias estações espalhadas por esse mundo. As ondas curtas encurtam a distância que nos separa do mundo e permitem-nos saber, com mais ou menos verdade, o que se passa noutros locais. Isto também nos ajuda a passar o tempo, especialmente as noites longas e intermináveis em que Morfeu não nos fornece o seu ópio embala-dor. E já que o sono não vem, entretemo-nos a ler, a escrever ou a ouvir as estações espalhadas pelos quatro cantos do mundo. De modo que as melhores notícias que podemos ter não são as da rádio, mas aquelas que os familiares nos mandam da casa onde gostaríamos de poder estar.

A vossa carta tem a data de 21 de Novembro de 1972. Como a recebi há três dias, isto significa que ela apenas necessitou de cinco para percorrer o vasto espaço que nos separa. Significa também que os serviços postais civis e militares trabalham com grande eficiência e rapidez, se nos lembrarmos de todo o percurso por que a carta teve de passar.

Diz-me a mãe que os meus vizinhos, o Raul e o Aurélio, escrevem todos os dias para casa. Não digo que não! Mas a verdade também é que eles não estão nas mesmas condições que eu. Além de estarem colocados na cidade, onde se limitam a fazer o que lhes mandam, escrevem cartas que se lêem em dois ou três minutos. Eu tenho sobre os meus ombros uma enormíssima responsabilidade. Não são apenas os homens que estão comigo no destacamento; é uma vasta região envolvente, com diversas tropas, todas elas dependentes de mim. Deste modo, a disponibilidade não é muita. Mas mesmo assim, não se podem queixar de não receber cartas diárias. Quando recebem correspondência minha, com intervalos que até são bastante reduzidos, têm leitura para muitas horas, se não for para mais do que um dia. Praticamente podem acompanhar a par e passo todos os acontecimentos através das minhas palavras, tal como se os estivessem aqui a viver comigo. Logo, não têm qualquer razão em me falarem na escrita diária desses vizinhos. Não é de admirar que escrevam todos os dias! São uns felizardos! Estão numa situação quase idêntica ou melhor até que a dos meus furrieis. Sobra-lhes tempo para lerem, escreverem, falarem, jogarem e ressonarem! Não são eles que têm as preocupações da segurança e da manutenção das actividades. Têm o alferes Ulisses para pensar e preocupar-se por eles, mantendo tudo em acção!

Perguntam-me também se eu preciso de aerogramas? Esta pergunta faz-me pensar que ou andam com amnésia ou não leram ainda os aerogramas anteriores que vos mandei. Logo nas primeiras páginas escritas referi que a distribuição dos aerogramas por toda a Companhia foi feita por mim. Não se lembram que fui eu quem os foi buscar ao S.P.M. de Luanda, na companhia de um soldado condutor do Grafanil, com quem almocei num posto da Shell por duas vezes? Aerogramas é coisa que não falta aqui no destacamento. Se assim não fosse, como é que eu poderia efectuar-vos estes longos relatos?

Se não preciso de aerogramas, em contrapartida preciso muito das vossas palavras. O maior prazer que me podem dar é escrever-me com assiduidade. Sempre que distribuo a correspondência pelo pessoal e a mim não me calha nada, resta-me a alegria que vejo nos olhos dos outros quando leio os nomes e saem do grupo para virem receber a correspondência. Mas já que me perguntam se preciso de alguma coisa, aproveito para dizer que, se os aerogramas não me faltam, falta-me a vossa companhia! E já agora, se além das vossas cartas me puderem mandar umas tabletes de chocolate, não seria nada mau. Chocolates é coisa rara por estas paragens. E fazem jeito quando nos deslocamos. Ocupam pouco espaço nos bolsos do camuflado e mesmo amolecidos pelo calor ajudam a recuperar as energias, durante as deslocações nas picadas e quando andamos em operações no meio do mato. Os poucos que trouxe comigo da metrópole eclipsaram-se num instante. Devo ter comido um ou dois. Os restantes foram distribuídos pelos meus dois jovens amigos, dois miúdos nativos que tenho aqui no quartel a trabalhar na messe. Estes dois jovens são o João e o Zé Manel. São dois rapazitos de cor que estão a viver connosco e a quem dou uma mesada de cem escudos. Por enquanto, o dinheiro tem saído do meu bolso. Já pus o problema ao Comandante de Companhia para que lhes seja atribuída uma verba fixa de duzentos escudos mensais. É uma quantia considerável, mas eles merecem-na. E faz-lhes muito jeito, pois é com esse dinheiro que compram a roupa que trazem. E como não têm outras despesas, pois são alimentados por nós, ainda lhes sobra qualquer coisa para amealhar.

E já que estou em maré de dizer aquilo de que preciso, recordo ao pai a aquisição da agenda que lhe indiquei nos aerogramas anteriores. Dentro de um mês acaba o ano. Sem agenda no bolso fico sem poder efectuar os registos diários. E sem eles, lá se vão os relatos dos acontecimentos. Apesar da minha memória não ser das piores, é demasiado volátil. Os dados perdem-se facilmente e só o registo escrito permite recuperá-los.

Em Quimbele, como já devem saber, descobri uma máquina fotográfica de 35 milímetros que me parece razoável. É uma máquina cujo preço não chega aos quatro mil escudos. Aliás, segundo o registo que efectuei a lápis no manual de instruções, o vendedor deixa-ma ficar por 3573 escudos. Aí na metrópole deverá ser mais barata... mas aqui não tenho muito por onde escolher. Creio mesmo que vou ficar com ela. E como esta é já uma decisão quase irrevogável, agradeço que me adquiram aí uns três ou quatro rolos de diapositivos e mos mandem. Aqui no interior de Angola só se encontram rolos para fotografia. Agradeço que os rolos tragam já incluída a revelação e montagem em caixilhos.

Diz-me o pai, a certa altura da carta, que o carro tem dificuldade em pegar. Isso é muito natural! Nos últimos tempos, estava habituado a andar comigo por todos os lados. Deve ter estranhado a minha ausência e está com saudades. Enquanto andei com ele, nestes três últimos anos, nunca me deixou ficar mal. Pelo menos, por culpa dele. Só uma vez, em Santa Margarida, quando ia de fim de semana a Coimbra, me deixou no meio da estrada poucos quilómetros andados. Mas não foi ele o culpado. Há já umas semanas que a bomba da água andava a pingar. Deveria ter ido com ele imediatamente à Ford para ver o que se passava. Mas fui andando mesmo assim. Já se sabe! Vai-se adiando a ida à garagem sempre para um pró-ximo dia... E claro, ao fim de algum tempo, a bomba acabou mesmo por gripar, exigindo um reboque para levar o carro para oficina. Aí está a razão por que não o considero culpado. Ficou apenas a dever-se ao meu desleixo. Agora o facto de ele não pegar deve-se a andar nas mãos do pai. O carro não pode estar semanas seguidas sem andar. Com o carro parado, a bateria vai perdendo carga. E depois, quando é preciso, a que resta não chega para fazer mexer o motor de arranque. Porque não experimentam dar uns passeios com ele aos fins de semana?

Por agora chega de escrita a propósito da vossa carta. Vou-me deixar de considerações deste tipo e retomar o relato dos acontecimentos. Os registos na agenda não são muitos; mas sempre há qualquer coisa para deixar para a posteridade. Quem sabe se, um dia mais tarde, eles não virão a constituir um documento importante para conhecermos alguns aspectos das vivências neste magnífico e vasto território de Angola?

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