Estadia forηada em Quimbele

No dia dezoito de manhã, faz hoje precisamente uma semana, saí logo após o pequeno-almoço com a berliet para Quimbele, para ir buscar o reabastecimento. Desta vez, tivemos mais sorte do que no dia primeiro dia em que efectuámos o percurso para o Alto Zaza. Como a manhã estava radiosa, bastante calor e a picada seca, a viagem fez-se sem problemas. E o facto de ser dia permitiu-me, pela primeira vez, apreciar a paisagem. Numa grande parte do percurso, a viagem é feita numa zona de planalto, acompanhando as curvas de nível, o que nos permite observar um vasto panorama.

Mais ou menos a meio da viagem, tivemos a surpresa de nos cruzarmos com outras viaturas. Era o capitão Alberto, que efectuava o percurso inverso a caminho de uma fazenda. Depois de uma breve conversa, para nos cumprimentarmos e saber as novidades, retomámos a marcha. Chegámos a Quimbele por volta da uma e meia da tarde, bastante atrasados para a hora do almoço, depois de umas cinco horas de marcha.

Reflectindo agora um pouco sobre o tempo demorado, creio ter descoberto a escala da carta topográfica em meu poder. Lembram-se de vos ter dito que lhe falta uma parte do canto, onde deveria estar a escala? Como reparei, durante o percurso, que a velocidade a que nos deslocámos chegou, em algumas zonas mais planas e rectilíneas da picada, aos cinquenta e sessenta quilómetros, ao passo que nas zonas piores a velocidade não passou dos trinta, a média deverá ter-se situado nos quarenta quilómetros. Assim sendo, o percurso entre o Alto Zaza e Quimbele deve andar na ordem dos cento e vinte quilómetros. A medição com a régua dá-me cerca de cinquenta centímetros. Se considerarmos que a escala da carta topográfica é de 1:25 000, a distância entre o Alto Zaza e Quimbele será de cento e vinte e cinco quilómetros. Há, como se vê, uma grande aproximação de valores, o que me leva a considerar que a escala tem fortes probabilidades de ser mesmo a que indiquei.

Deixemos esta reflexão técnica ou cartográfica e voltemos à viagem. Como disse, chegámos tardíssimo a Quimbele, já fora das horas da refeição. Mas como os soldados não podem ficar com a barriga a dar horas, fui imediatamente ter com o alferes Vieira, que na ausência substitui o capitão no comando da companhia. Deu ordens para que fosse preparada uma refeição para o pessoal acabado de chegar. Quanto a mim, arranjou-se também um bife com batatas fritas na messe de oficiais.

Depois da refeição, enquanto o furriel que me acompanhou foi com o condutor e alguns soldados carregar o reabastecimento, aproveitei para ir com o Vieira até ao Briosa Bar tomar uma bica e conversar com alguns civis, que me foram apresentados. A estadia no café foi bastante curta e quase nem deu para aquecer o lugar. Passado pouco tempo, que me pareceu não ter chegado a uma hora sequer, aparece-me o furriel com todo o pessoal na berliet:

— Alferes, o reabastecimento já está carregado. Está tudo em ordem para regressarmos. Quando quiser, podemos arrancar.

Despedi-me do pessoal que estava no café e subi para a cabina da berliet:

— É necessário dar a volta e subir a avenida. Tenho de passar pela messe de oficiais para ir buscar a espingarda e as cartucheiras.

Demos a volta, subimos toda a avenida principal até à administração e comando da companhia e voltámos para baixo, parando em frente ao edifício da messe para ir buscar as minhas coisas.

A meio da descida da avenida, olhei para a esquerda e reparei que os estabelecimentos comerciais estavam abertos.

— Sousa, faz-me o favor de parar durante um pouco em frente à igreja, antes da curva.

— O meu alferes quer ir rezar?

— A minha reza é outra! O Teodoro quer vir comigo ali a um daqueles estabelecimentos?

Descemos da viatura, atravessámos as duas faixas de rodagem da avenida e entrámos num dos estabelecimentos.

— Boa tarde.

— Boa tarde, meus senhores.

— Diga-me, por favor, tem máquinas fotográficas?

— Tenho aqui vários modelos baratos, muito usados pelos soldados, e uma máquina de 35 milímetros bastante boa, Olimpus 35 LC. Certamente que será isto o que o senhor alferes pretende.

— Como é que sabe que sou alferes?

— Não é difícil de ver, mesmo sem os galões. Basta reparar que as ordens e iniciativas partem de si, para saber quem manda.

— Tem um bom espírito de observação. Se não se importa, gostava de ver essa máquina que indicou. Por enquanto é só para ver. Nem dinheiro trago comigo!

— O senhor alferes não precisa de trazer dinheiro. Se estiver interessado, eu tenho confiança no senhor.

— Agradeço a confiança, mas por enquanto ainda estou na fase de escolha.

— Se o alferes a quiser experimentar, eu não me importo de lha confiar.

— Agradeço, mas basta que me faça um favor: empreste-me o manual da máquina para eu ler as características técnicas. Dentro de dois ou três dias tê-lo-á de volta tal como mo emprestou.

— Alferes Ulisses, essa máquina parece ser muito boa! — comentou o furriel.

— Não é das piores, apesar de não ser de tipo reflex. Mas encontrar uma máquina deste tipo aqui no meio da África é já uma sorte!

Pedi um envelope para meter o manual da máquina, para não se sujar, e despedi-me do senhor que me atendeu. Quando chegámos à berliet, estavam os soldados no passeio, uns sentados nos degraus da escadaria em frente da igreja, outros encostados ao muro lateral, em animada conversa.

— Vá lá, pessoal, toca a saltar para cima, que temos cinco horas ou mais de picada. E quanto mais depressa andarmos, melhor, para fazermos a maior parte do percurso ainda de dia.

Saltaram todos prontamente para a caixa da berliet e, em breve, descíamos a avenida, passávamos em frente ao Briosa Bar, onde estivera momentos antes, e descrevíamos a curva em direcção à zona baixa de Quimbele. Pouco depois, percorríamos a recta alcatroada entre Quimbele e o hospital. Atrás de nós, lá no alto, elevava-se a povoação sobre a colina, tendo a toda a volta a fita preta da estrada alcatroada, fazendo lembrar um enorme coração.

O percurso, enquanto andámos na parte asfaltada, fez-se a uma razoável velocidade. Mas, ao fim de umas duas dezenas de quilómetros de boa pista, entrámos na picada em direcção ao Alto Zaza.

Tudo parecia indicar que íamos ter uma viagem de regresso tão boa como a vinda. Só que, durante a nossa curta permanência em Quimbele, tinha desabado uma valente carga de água relativamente próximo da sanzala de Quibula Macatende.

— Alferes, não temos picada! — exclamou de repente o condutor, parando bruscamente a viatura.

Na nossa frente, onde de manhã era a picada, estava agora uma enorme vala, mais larga que a berliet.

— Talvez seja possível passar contornando aquela zona pela orla da mata — alvitrei.

— Não sei, meu alferes. O terreno está ensopado e a berliet está sem guincho — disse o condutor.

— Vamos experimentar. Todo o pessoal para fora da viatura — gritei eu para trás.

Saltámos todos para a picada. O condutor, com toda a precaução, meteu a viatura por um dos lados, para contornar a vala. Mas o terreno era argiloso e a viatura resvalou, enterrando-se. E quanto mais acelerava, mais penetrava na terra.

— Sousa, não vale a pena insistires. Daqui a pouco ficamos com a viatura enterrada até à caixa.

— Alferes — diz o furriel —, é melhor fazer marcha atrás. O pessoal empurra enquanto o condutor acelera lentamente. Talvez consigamos sair daqui.

— Essa ideia é boa mas, só por si, não basta. Primeiro há que nivelar o terreno. Eh pessoal, é preciso pegar nas enxadas e pás e retirar o barro da parte de trás da viatura, por debaixo das rodas, para eliminar o desnível.

Alguns soldados pegaram nas pás e enxadas e começaram a remover o barro e a abrir um carreiro para cada rodado.

— Pessoal, quando eu disser «agora», toda a malta empurra para trás ao mesmo tempo. E tu Sousa, metes marcha atrás e quando ouvires o «agora» aceleras e levantas lentamente o pé da embraiagem, para a viatura recuar sem começar a patinar.

Com todo o pessoal preparado, dei a ordem:

— Atenção, pessoal: «agora!»

A viatura começou a recuar lentamente. Alguns minutos depois estava fora da situação crítica.

— E agora, meu alferes? —perguntou-me o furriel.

— Agora é regressar a Quimbele. Sousa, dá meia volta com cuidado, para não termos mais problemas.

Com a viatura em direcção à sede da companhia:

— Vá, pessoal, todos para cima. Amanhã de madrugada regressamos ao Alto Zaza. Às cinco e meia da manhã parte uma coluna de reabastecimento para o Cuango. Vão ter de passar por aqui e resolver o problema da passagem pela vala. Aproveitamos a boleia com eles. Com mais pessoal a trabalhar, será mais fácil restabelecer a passagem pela picada.

— Alferes — diz-me o furriel —, se nós não conseguimos passar para o Alto Zaza, também o capitão não vai poder regressar a Quimbele.

— Tens razão! Já nem me lembrava disso. Vou ter de prevenir o alferes Vieira, não vá ele ficar alarmado com a ausência do capitão.

Meia hora mais tarde, fazíamos o percurso inverso desde a base até ao cimo da colina, perante o olhar espantado dos soldados e civis de Quimbele. E, de uma maneira imprevista, por força das circunstâncias, acabei por ter de passar a minha primeira noite na sede da companhia.

Depois de um serão agradável passado em casa de um casal de civis ainda jovem, onde se beberam uns uísques e se contaram histórias verídicas e algumas anedotas, recolhi ao meu quarto na messe de oficiais. Antes de me deitar, folheei com curiosidade o manual da máquina fotográfica e avaliei-lhe as características: objectiva de sete elementos de quarenta e dois milímetros, célula fotoeléctrica, telémetro, vários tempos de obturação com posição para pose, entrada para um disparador de bicha, suporte para flash electrónico, disparador automático com quase um minuto de espera e um preço que não me parecia excessivo, na ordem dos três mil e novecentos escudos. É certo que lá se vai todo o vencimento de um mês. Mas, pagando em duas prestações, ainda se fica com parte do dinheiro. Além do mais, no meio do mato nem sequer temos onde o gastar...

Creio que adormeci ainda a pensar na máquina, porque toda a noite me vi com ela a tirar fotografias a tudo quanto via e me agradava: flores, paisagens, nuvens de grande beleza e recorte sobre o fundo azul do céu, pessoal em acção, mascotes, sanzalas, nativos, etc.

Mas não passou tudo de um sonho. Às cinco da manhã já estava a ser acordado pelo impedido, porque às cinco e meia estava prevista a partida da coluna auto e tinha de estar preparado com todo o pessoal, se queria aproveitar a companhia da coluna de reabastecimento para o Cuango durante quase metade do percurso.

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