Justificação de um interregno |
Alto Zaza, 22 de Novembro de 1972
Lamento só agora voltar a escrever-vos. Aparentemente, parece que estou a faltar ao prometido. De acordo com a primeira carta que vos mandei, parece que não estou a cumprir a promessa. Parece, digo bem! Se quiserem ter o trabalho de a reler, verão que tive o cuidado de frisar bem as condições em que passaria a escrever-vos. Para não terem trabalho,
transcrevo o excerto dessa primeira carta: «Prometo-vos que, a partir de agora e sempre que tiver momentos livres, vos darei conta de tudo quanto vir, pensar e sentir...».
Se não voltaram a receber qualquer carta, isso deve-se precisamente ao excesso de trabalho e reduzida falta de tempo e disposição. Sim, porque para se poder escrever, a principal condição é haver disponibilidade física e, sobretudo, mental. Não pensem que as minhas palavras fluem com a mesma facilidade com que vocês as lêem. Cada frase, cada palavra, antes de passar da caneta para o papel, tem de ser profundamente meditada. Escrever, embora seja algo que produz um certo prazer, sobretudo quando se pretende registar para o futuro acontecimentos vividos, é uma actividade que exige esforço e trabalho. Em primeiro lugar, obriga-nos a um exercício mental de reflexão, em que todas as ideias têm de ser postas nos seus devidos lugares, em que os acontecimentos têm de ser
reconstituídos pela sua ordem cronológica e revividos, para que o relato se torne o mais fiel possível à realidade. Em segundo lugar, há que dar uma sequência lógica ao texto e procurar cuidadosamente as palavras mais adequadas para transmitirem as nossas ideias. Depois, na falta de imagens visuais, documentais, há que enriquecer os relatos com imagens mentais, recriadas na imaginação do leitor através das descrições. Finalmente, há que verificar se tudo quanto dizemos está de acordo com o que efectivamente pretendemos transmitir e com as normas gramaticais.
Devem estar agora a pensar como é que eu consegui reproduzir uma carta que está em vosso poder, a mais de oito mil quilómetros de distância do local onde me encontro. A explicação é fácil. Como tenho receio que algum dos meus relatos se perca, apesar de saber que o serviço postal militar até está bem organizado, todas as minhas cartas são duplicadas por meio de químico. Aí, na metrópole, recebem os originais; eu fico com os duplicados. É essa a razão pela qual os meus aerogramas vão todos escritos com esferográfica de ponta fina, para que o duplicado fique nítido sem necessidade de carregar com muita força.
Creio estar suficientemente explicado o meu interregno de duas semanas sem qualquer correspondência. O trabalho tem sido enorme. Encontro-me à frente de um destacamento do qual dependem não só os meus homens, como ainda uma série de aquartelamentos vizinhos, quer de tropa metropolitana, quer de tropa nativa. Assim, nem imaginam a guerra de papelada em que me vejo envolvido: elaborar plano de defesa, fazer escalas de serviço, controlar o reabastecimento de outros camaradas, enfim, uma série de serviços, qual deles mais importante para a sobrevivência de todos nós.
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