Final da Viagem |
Luanda, 8 de Novembro de 1972
Talvez ainda recebam esta carta ao mesmo tempo que a anterior. Ou talvez não e tenham já lido o que anteriormente lhes escrevi. De qualquer modo, de uma coisa tenho quase a certeza: deverão ter recebido o telegrama que vos mandei assim que cheguei a Luanda e tive oportunidade para o fazer. Hoje, segundo dia de permanência em Luanda, uma quarta feira, estou de serviço de Oficial de Dia ao Grafanil. Significa isto que vou estar a maior parte do dia sem ter nada que fazer. Nada melhor para ocupar o tempo do que pegar num maço de aerogramas e na esferográfica e retomar a escrita.
A carta anterior ter-vos-á proporcionado uns longos minutos de leitura, mas deixou-vos a meio do voo. Ficaram sem saber o que sucedeu, se a minha memória me não atraiçoa, a partir das quatro da manhã de terça-feira. Não adormeci imediatamente como tencionava. Seis quilómetros abaixo de nós, o espectáculo feérico da trovoada fazia oscilar o aparelho e iluminava o espaço. As descargas eléctricas eram tão seguidas, que nos davam a sensação de a terra, por baixo de nós, ser constituída por um luminoso manto de algodão branco, cujo clarão permitia iluminar todo o avião como se fosse de dia. Assim, entre um misto de receio e de êxtase, conservei-me durante uns longos minutos até me saturar do natural e grandioso espectáculo que a natureza me proporcionava e que, em toda a minha vida, nunca os meus olhos tinham podido contemplar. Só depois de saciado decidi dormir um pouco.
O cansaço era tal, que adormeci facilmente. Foi sono de pouca dura. Quando estava a penetrar profundamente no reino de Morfeu e a deliciar-me com as imagens que ele todas as noites nos proporciona, fomos acordados pelos hospedeiros de bordo. Eram sete horas e trinta da manhã. Estava na hora de nos ser servido um bom pequeno almoço: uma omeleta com fiambre, um pão com manteiga, um croissant, café com leite, compota de Alcobaça e um doce de geleia. Nada mau, para quem estava sem comer há uma série de horas.
— Ulisses, tu perdeste a fala. Estás agarrado ao petisco e não dizes nada.
— O Capitão fala agora muito bem, porque já devorou a ração. E, à parte as exclamações enquanto comia, também não disse nada.
— Pudera! Há já umas boas horas que não metíamos combustível na máquina. Vê lá se ouves alguém falar? Está tudo a dar às mandíbulas.
— É natural: ovelha que berra, bocado que perde. Demais a mais, já não comíamos desde ontem. Não se esqueça que jantámos às cinco e meia da tarde. Depois disso, foi a formatura para os avisos e entrega dos galões a todo o pessoal promovido. Em seguida, a viagem até Lisboa. Feitas bem as contas, estávamos sem comer há mais de 12 horas. Bem fizeram os que trouxeram os pacotes de bolachas e foram entretendo o estômago. O que valeu à maior parte do pessoal é que vinham todos a dormir. Nem deram pela tempestade que sobrevoámos, quando estávamos a passar por cima do Equador.
— Que tempestade? Não dei por nada.
— Como é que o Capitão havia de ter dado, se ressonava e assobiava como uma locomotiva? Depois do jogo de cartas não fez outra coisa senão dormir. Não fossem os nossos simpáticos hospedeiros de bordo terem-nos acordado para o pequeno-almoço, quase nem dava pelas horas da viagem.
— Espreita lá para fora. Já é de dia. Não deve faltar muito para chegarmos a Luanda.
Já se vê que esta conversa se travou entre mim e o capitão Alberto, que ia ao meu lado. Espreitei pela vigia e reparei que estávamos bastante baixo. Via-se perfeitamente o espelhado do mar, que contrastava com um céu azul dourado. O sol estava do lado oposto ao meu e via-se nitidamente, sobre as águas, a silhueta alongada do nosso avião, que parecia deslizar como um enorme pássaro de asas abertas. Era claro o indício de que deveríamos estar muito perto de Luanda, pois a altitude era reduzida. E, de facto, pouco minutos depois, estávamos a sobrevoar um continente formado por retalhos verdes e avermelhados. O verde da vegetação contrastava sobre uma mancha de cor avermelhada, de um vermelho mais brilhante que o dos nossos utensílios de barro. Em breve, sobrevoávamos extensas zonas de barracas. Mais adiante, edifícios modernos de grande altura, que contrastavam com zonas de barracas de aspecto miserável. Eram quase oito horas e estávamos já a sobrevoar muito baixo, a poucos minutos do aeroporto, os arredores da cidade.
O aspecto da cidade de Luanda, vista de cima, especialmente quando chegamos, é francamente decepcionante.
A imagem que habitualmente temos de Luanda, e que nos é mostrada no cinema e televisão, é a de uma cidade moderna espelhada nas águas de uma baía, qual miniatura de uma Copacabana. Como a aproximação de avião se faz por terra a partir da zona norte, a imagem com que se fica é a de uma cidade de grandes contrastes, confusa e desordenada, em que as ruas parecem abertas ao acaso, sem qualquer plano de urbanização, e com uma grande falta de uniformidade de construção. Coexistem, lado a lado, barracas de madeira com «arranha-céus» de dez e mais andares. Este enorme desarranjo urbanístico, qual casa mal governada, é mais flagrante quando se chega de avião. A aproximação efectua-se por terra de norte para sul, oferecendo uma vasta panorâmica dos arredores da cidade, que contribui para provocar em quem chega uma primeira impressão de desencanto, que depois se esbate e apaga completamente, quando se começa a conhecer a cidade.
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