A morte é nossa companheira

Hoje, segunda-feira, dia 6 de Novembro de 1972, dia de embarque para Luanda, fui indigitado pelo tenente Alberto, logo pela manhã, para ir com ele a Tomar resolver problemas da última hora relacionados com a Companhia. Além das guias de marcha, que tivemos de ir buscar à Secretaria do quartel a que pertencemos, teríamos também de trazer as novas insígnias para a promoção do pessoal antes do embarque. Devo dizer que não fiquei nada aborrecido com o serviço inesperado; antes satisfeito, por ter oportunidade de me voltar a despedir de uma cidade onde passei o melhor período de tropa.

Em conversa com um capitão do Regimento de Infantaria n.º 15 de Tomar, recebi a triste notícia de que o Almeirim (alcunha que déramos ao Nunes, o nosso radiotelegrafista, por ser dessa terra) não poderia embarcar connosco para Luanda e que, possivelmente, nunca mais o veríamos, porque estava muito provavelmente com guia de marcha já passada para o outro mundo. No domingo, como estava perto de casa, foi despedir-se da família. E hoje, pela manhã, quando regressava a Santa Margarida, tinha-se despistado com a motorizada. Estava no hospital em coma, com o crânio fracturado e um braço e uma perna partidos, numa luta entre a vida e a morte.

Uma vez mais recebia a triste lição que já tivera uns meses antes, e que fez com que toda a apreensão, o receio da morte por ir para a guerra, tivesse desaparecido completamente. Desta vez, era um colega da Companhia. Da outra, um cabo que todos invejávamos, porque estava a uma semana de regressar à vida civil -- à «peluda» -- sem nunca ter sido mobilizado. Recuemos ao fatídico dia 24 de Maio deste ano de 1972, uma Quarta-feira, segundo informação fornecida pela minha barrenta agenda, cujas capas, outrora azuis, estão agora e para sempre cobertas dos vestígios de lama, resultantes dos difíceis exercícios durante a especialidade em Mafra, em que tivemos de rastejar na lama, debaixo de fogo real, e em que uns colegas foram parar em mau estado ao hospital, quando uma carga explosiva deflagrou perto deles, lançando ao ar uma coluna de cimento que, para azar deles, lhes foi cair em cima.

Estávamos, pois, em 24 de Maio, em pleno período de exercícios com fogos reais numa carreira de tiro próxima de Fátima. Um dia magnífico, de sol quente e céu azul, que teria sido igual a tantos outros, se a morte não andasse a rondar-nos. Não é que eu tenha assistido directamente à morte desse cabo, mas assisti pela imaginação ao acontecimento, tão vivos e pormenorizados foram os relatos dos meus colegas, quando cheguei com as viaturas ao local para fazermos detonar a granada que não rebentara no momento do seu lançamento.

Dois dias antes, dia normal de instrução, o Capitão Morais encarregara-me da logística para a semana de campo. A mim passaram a competir, por conseguinte, funções que se prendiam com a requisição, fornecimento e transporte de armamento e munições, bem como do tacho para toda a malta. Às horas certas, logo de manhã, bem cedo, ia buscar e levar o armamento. Pouco antes das horas das refeições, almoço e jantar, regressava a Tomar, para ir à cozinha buscar o rancho geral. Escusado será dizer que, na cozinha, tinha o cuidado de verificar se a comida me agradava; e refilava para reforçar as doses, pois sabia que todo o pessoal estaria esfomeado, pronto a comer o dobro do habitual. E uma coisa me preocupava: desempenhar bem as funções, para que não dissessem que o aspirante não se preocupara com o pessoal por a comida não prestar ou por ficarem com fome.

Nessa fatídica quarta-feira, que amanhecera com um sol radiante, logo às oito da manhã estava a requisitar e a levantar as munições: granadas de mão. E, pelas nove e trinta, carregadas as viaturas, levei-as para o campo, logo a seguir à estação de Fátima. Juntei-me ao meu grupo, ao pessoal que vinha há algumas semanas a preparar para irem para o ultramar, a fim de efectuarmos os exercícios de lançamento de granadas. Embora o exercício se destinasse essencialmente aos soldados, que acabaram por não ser o pessoal com quem vou para Angola, também eu efectuei algumas demonstrações, explicando-lhes como se segurava correctamente numa granada e como se devia lançar para nossa maior segurança.

Após os exercícios e durante o almoço, formámos pequenos grupos e comemos, em amena conversa, com ditos engraçados de alguns e conversas da terra, da família e das namoradas. Entre nós estava o felizardo cabo, que iria para a «peluda» dentro de uma semana, com quem brincávamos, chamando-lhe, não sem alguma pontita de inveja, «sortudo» por fazer a tropa sem ter sido mobilizado. Para mais, sabíamos que, dentro de dias, teríamos de ir sabe Deus para onde? E, perante as três alternativas (Guiné, Angola ou Moçambique), todos mantínhamos uma secreta esperança de irmos parar a Angola e não nos calhar nenhuma das outras duas hipóteses. E o nosso cabo, aquele felizardo, dentro de uma semana, livre de tudo isto!

Quantos de nós não teremos pensado em como seria bom estar no seu lugar!

Depois do almoço, retomámos os exercícios. Com o meu grupo, secundados pelo cabo, que ajudava os mais aselhas, lançámos várias granadas. Todas rebentavam com grande ruído e a boa distância de nós, sem perigo de apanharmos com estilhaços. Mas... e aqui foi a origem do problema. Houve uma granada que não explodiu. Apesar de lançarmos outras para perto desta, na esperança de que rebentasse por simpatia, todos os nossos esforços foram inúteis.

Acabado o exercício, tivemos que nos ocupar do engenho por deflagrar. Ajudados pelo cabo, que se gabava de que já pegara em vários engenhos por explodir e os voltara a lançar, fazendo-os rebentar, tratámos de seguir todas as normas de segurança. Assinalámos devidamente o local e cercámo-lo com balizas sinalizadoras, com a recomendação de que ninguém deveria aproximar-se, enquanto eu regressaria a Tomar buscar explosivos para fazer detonar a granada.

-- Meu aspirante, não é necessária tanta precaução. Já fiz explodir outras granadas que não rebentaram sem necessidade de explosivos.

Um bocado irritado, por estar a ser inconscientemente contrariado pelo cabo, que se achava acima de todas as normas de segurança, admoestei-o que não deveria aproximar-se do local, devendo afastar-se dali e aguardar com os outros, enquanto eu ia a Tomar buscar não só os explosivos, como tratar também do jantar, pois eram já cerca das dezasseis horas e o tempo não esperava por nós.

Parti descansado para Tomar. Pelas dezassete e quarenta e cinco estava de regresso ao campo com o jantar e todo o material necessário para fazer explodir a granada à distância. E foi com grande espanto e não menor comoção que fui posto ao corrente dos factos. Pouco tempo depois de termos saído do local e sem que ninguém desse por isso (ia eu já a caminho de Tomar), o cabo resolveu levar a ideia avante. Voltou para trás. Passou a vedação. Pegou na granada. E ouviu-se uma explosão. A granada rebentou com grande estrondo, desfazendo completamente o rapaz. E foi com as lágrimas nos olhos que os soldados andaram pelo campo a apanhar-lhe pedaços, que recolheram na ambulância juntamente com o que restou do corpo.

Aqui está a triste razão que me levou a afirmar, há pouco, que não é por ter sido mobilizado para Angola que estarei mais perto da morte. Ela está onde menos se espera e, em situações como esta, procurando o mais pequeno deslize para nos levar com ela.

Andámos durante o resto do tempo macambúzios e sem vontade de falar. O jantar foi a refeição mais triste que tive nestes últimos tempos. E não fui só eu que tive dificuldade em engolir a comida, que desta vez sobrou em quantidade. O triste acontecimento tirou a fome a toda a gente. Só à noite, já de regresso a Tomar, fui ao restaurante Martinho, na companhia dos colegas Santos e Afonso. A maior comoção do dia já se tinha atenuado e a fome começava a lembrar-nos que a vida continua. Não deixámos de comentar que a vida nos reserva, por vezes, desagradáveis surpresas. Mas, ao mesmo tempo, foi para nós uma triste lição. Ainda ao almoço tínhamos estado a considerar o cabo um felizardo; agora verificávamos não ter motivos para recear ir para fora. A morte espreita-nos em qualquer local e todos nós, novos ou velhos, estamos à mesma distância dela.

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