Revendo o passado

Não preciso de dizer que a viagem de Sábado passado, na vossa companhia, de Coimbra para Santa Margarida, foi agradável. Bastava o facto de estarmos ainda juntos para que isso acontecesse. Os piores momentos foram os da separação. Durante o jantar em Abrantes, consegui não pensar em tal coisa. Durante o percurso de Abrantes para Santa Margarida, o facto de vir a conduzir fez com que viesse concentrado na estrada, não dando muito espaço aos pensamentos da separação. Mas mesmo assim, não deixei de rever os últimos dias, quase dois meses passados em Santa Margarida, tão diferentes e tão menos agradáveis que o longo período que estive em Tomar. Não é que o trabalho me tivesse apoquentado muito em Santa Margarida. O facto de ainda não ter recuperado totalmente os movimentos do braço direito e a zona do pulso, onde ocorreu a fractura, ainda dar sinal e não me deixar fazer certos movimentos e muito menos força, fez com que ficasse à margem de todas as actividades, tendo-me limitado praticamente a dar algum apoio aos colegas graças ao facto de ter trazido o carro aqui para Santa Margarida.

Mesmo as últimas semanas passadas em Tomar, sem dúvida o melhor período de tropa que passei, devido à fractura do braço na zona do pulso, fez com que tivesse sido temporariamente posto à margem de todas as actividades. Depois que tirei o gesso, a falta de movimentos e a necessidade de recuperação na fisioterapia obrigaram-me a ir todos os dias, logo de madrugada, ao hospital militar a Lisboa. Donde resultou que a maior parte do meu tempo tivesse escoado longe dos meus companheiros, essencialmente entre as quatro paredes do compartimento do comboio. E tudo por causa duma estúpida queda, que agora não quero recordar. Talvez mais tarde, se vier a propósito, eu reveja esta infeliz e estúpida peripécia, embora já na altura vos tenha contado alguma coisa. Por agora, será melhor falar-vos um pouco de quanto se passou nestes dois últimos dias, depois que vocês regressaram a Coimbra e eu aqui fiquei à espera do embarque para Angola.

O último domingo, dia 5 de Novembro, foi passado de uma maneira razoável. Como nada havia para fazer, excepto esperar que o tempo passasse, fui pela última vez almoçar a um restaurante com colegas. Fomos a Almeirim, ao restaurante «Oh, Manel!». Apesar de ter retirado a agenda do bolso da farda, que estou a consultar, tenho algumas dúvidas quanto ao registo efectuado. Com a pressa, não tomei a devida nota, nem tão pouco registei a ementa, tendo com isto cometido uma grave lacuna, que irá impedir-me de rever estes momentos um dia mais tarde. Mas creio que é este o nome. Todavia, não me esqueci de indicar os nomes dos meus companheiros, aliás os únicos registos que fiz na agenda: Tenente Alberto e dois colegas de posto, Raul e Vieira. Como oficiais, contando com o comandante da companhia (o tenente Alberto), somos ao todo cinco; por enquanto um tenente e quatro aspirantes a alferes milicianos. Apenas faltou o aspirante Valério que, por ser casado, passou o dia com a mulher e não nos acompanhou.

E vai ser graças à agenda, que me acompanha por todo o lado, que vou reconstituir os momentos anteriores ao embarque. Esta pequena agenda, que anda sempre no bolso da farda ou do casaco, quando estou à civil, constitui para mim uma espécie de «diário de bordo». Nela registo, numa letra miudinha para poupar espaço, os principais factos de cada dia. Quem sabe se este hábito já radicado não me irá ser útil um dia mais tarde? Como a memória é curta e os acontecimentos rapidamente se apagam, será talvez uma boa maneira de fornecer âncoras às experiências vividas, permitindo-me fundeá-las com segurança nos cais da memória e assim, um dia mais tarde, poder trazer à lembrança factos antigos. Sim, porque reviver esses factos, mesmo que sejam amargos, será uma boa maneira de viver duas vezes!

Mas deixemos as digressões e voltemos ao relato dos factos. A esta hora já a mãe começará a estar farta de tanta leitura... De certeza que nunca na sua vida terá recebido cartas tão longas, mesmo no seu tempo de juventude, em que escreveria e receberia cartas de amor. Mas também não lhe peço que leia as minhas cartas de uma só vez. Quando lê romances e novelas, fá-lo aos poucos, nos seus momentos livres, colocando uma marca no sítio onde vai a leitura. Poderá fazer o mesmo com as minhas cartas. Será uma boa maneira de estar durante mais tempo na minha companhia, especialmente daqui por uns meses, quando as saudades do filho começarem a apertar. E que melhor leitura, que melhor romance ou novela do que ler os factos verídicos que o seu filho lhe irá relatar? Juntamente com as imagens que tenciono mandar-lhe, quando adquirir uma máquina fotográfica, terá um bom meio de indirectamente ficar a conhecer, na minha companhia, novos mundos, novas gentes e novos costumes.

Como o domingo passado, tirando a ida ao restaurante para almoçarmos, não teve nada de especial, coloquemo-lo de lado e façamos uma pequena retrospectiva do dia do embarque e da maneira como o pessoal passou estes últimos tempos.

O trabalho de todo o pessoal esteve ligado aos preparativos da Terceira Companhia de Caçadores do Batalhão 4511, a que pertenço. Os exercícios de preparação para combate há muito terminaram.

O tempo tem sido ocupado a fazer esses últimos preparativos, a tentar fazê-lo passar da melhor maneira e a ver os outros colegas seguirem à nossa frente para longes terras. Por assim dizer, temos assistido à despedida dos colegas das outras companhias. Como a FAP, isto é, a Força Aérea Portuguesa só possui dois aviões Boeing 707 para transporte do pessoal entre Portugal e as províncias ultramarinas e, neste momento, segundo me disseram, só um está de serviço, só pode ser transportada uma companhia de cada vez. Já todas as companhias do Batalhão 4511 partiram para Angola, tendo ficado a nossa para o fim. Seguiu, em primeiro lugar, a CCS, isto é, a Companhia de Comandos e Serviços; depois, foi a vez da 1ª e da 2ª Companhia de Caçadores; e hoje é a nossa vez.

Estes últimos dias foram praticamente passados, como há pouco referi, a tentar fazer escoar o tempo da melhor maneira possível. E embora o pessoal ande ligeiramente apreensivo pela partida, a verdade é que o moral não deixa de ser bom. Pela minha parte, tirando a pena de ter de vos deixar, não sinto qualquer apreensão, antes expectativa e, direi até mesmo, um certo desejo de conhecer novos mundos. Desde o triste acidente de Tomar, em que morreu aquele cabo que nunca fora mobilizado e estava a uma semana da «peluda», deixei de ter qualquer receio. Cheguei à conclusão que a morte está em qualquer lugar e que nos espera quando menos com ela contamos, por mais pacatos que sejam os lugares. E esta conclusão foi-me reforçada ontem mesmo, com novo acontecimento não menos funesto que o primeiro, como irão ter oportunidade de verificar dentro de algumas linhas.

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