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Thomas Mann, Evolução. Da «existência artística» ao humorismo - Coimbra, 1960

Acerca deste trabalho

Clicar para ampliar.O trabalho de reconversão da tese de André Ala dos Reis teve o condão de me fazer recuar aos tempos de estudante em Coimbra. Só não nos encontrámos na mesma faculdade, porque entre nós houve uma diferença de nove anos. Quando fui obrigado a ir viver para esta cidade, durante um curto período de cerca de seis anos, já ele estava de regresso a Aveiro. E, nove anos depois, andava também eu ocupado na pesquisa de dados para a minha tese. Não fui viajar pela Alemanha, como ele teve de fazer, mas andei durante cerca de um ano e meio a percorrer toda a metade norte de Portugal, para recolher os elementos para a Dissertação de Licenciatura na área da Linguística e Etnografia. Dois anos antes, andara durante o período de férias grandes (nesta época ainda havia férias grandes, desde meados de Julho até 7 de Outubro) em Aveiro, a percorrer os «Estados Unidos das Gafanhas» e a passar diversos dias na companhia do Ti Manel Melro, um lavrador abastado da Gafanha do Carmo, meu informador principal. E como, anos antes, pouco mais ou menos por altura do meu nascimento, um certo padre publicara uma Monografia da Gafanha, o meu orientador e professor de Linguística, o Professor Doutor Manuel de Paiva Boléo, interessado pela pequena monografia que tinha elaborado para a cadeira dele, sugeriu-me para licenciatura o estudo de todas as Gafanhas. Poderia, deste modo, obter um trabalho mais completo do ponto de vista linguístico e etnográfico, tendo como termo de comparação um trabalho publicado umas décadas antes, que ele bem conhecia. Tal só não aconteceu, porque se abriram outros horizontes, muito mais vastos e ambiciosos, abrangendo o nosso País, com muitas semelhanças com outros da bacia mediterrânica.

Dez anos depois, já recolhidos todos os dados e com o espectro da tropa e da guerra a dizer-me que tinha de me despachar, passei por uma fase idêntica à do André: redigir e imprimir a tese, para apresentação e conclusão da licenciatura. É certo que, naquela altura, já não necessitava de me dar ao trabalho de redigir e defender a tese, porque as teses de licenciatura tinham sido abolidas em Portugal, bastando fazer a última cadeira do curso para ficar com ele completo. No fundo, quem sabe, foi esta medida uma caminhada rumo ao facilitismo, como que pressagiando os tempos actuais, em que se conseguem licenciaturas sem frequentar cursos e com cadeiras obtidas por correspondência, até mesmo aos fins de semana, sem sequer se chegar a conhecer os professores das respectivas disciplinas. Uma filiação no partido certo, umas ajudas de amigos bem posicionados da mesma cor política, e conseguem-se as licenciaturas, não sabemos bem em quê, sem necessidade de passar anos a queimar as pestanas com a leitura de disciplinas cansativas e que não nos servem para ganhar dinheiro fácil.

Já com centenas de inquéritos efectuados e a tese praticamente redigida e frequentemente a ouvir o meu mestre, o Doutor Paiva Boléo, a lembrar-me que «o óptimo é inimigo do bom» e, sobretudo, que não podia ocupar muito mais tempo, porque poderia de um momento para o outro ser chamado para o serviço militar e ficava com tudo perdido, entrei na fase final: a de imprimir e apresentar os diferentes volumes da tese na Faculdade de Letras.

Nesta época, em que «computador» era uma palavra praticamente desconhecida e «fotocopiador» era também outro palavrão ainda não existente nos dicionários, o nosso meio de impressão de baixo custo, sem recurso a tipografias, era a utilização do stencil e de uma boa máquina de escrever.

O amigo André, que só conheci indirectamente passados diversos anos após o seu desaparecimento da face da Terra, ao contrário de mim, recorreu ao método mais fácil, mas também mais oneroso, talvez porque não tivesse máquina de escrever ou não a soubesse utilizar. Quem lhe digitou em stencil e lhe imprimiu todo o texto foi um dos diferentes «sebenteiros», que em Coimbra tinham este modo de vida. Tal como se encontra na última página da tese do André, o seu trabalho sobre THOMAS MANN foi «Dactilografado por MÁRIO DA SILVA E SOUSA, residente na Fonte da Cheira, no Calhabé, em Coimbra, e cujo telefone era o 23879.»

Para as gerações actuais, em que os computadores e os telefones portáteis, com características quase idênticas aos computadores, nos permitem, inclusive, ver com quem falamos e ocupar alguns momentos de ócio a ver o correio electrónico ou a fazer uns joguitos (algo quase do outro mundo, se o André de repente voltasse a este!) em que os jovens, em vez de darem uns bons chutos na bola e conviverem uns com os outros em jogos que os adestrariam fisicamente, se sentam muito quietos a olhar para o pequeno ecrã e a dar aos dedos sobre minúsculas teclas ou directamente sobre o ecrã táctil, publicar um livro sem computador e sem fotocopiadores parece uma coisa bastante estranha, algo desconhecido, algo tão estranho como os utensílios do período da pedra lascada.

As pessoas da minha geração, os que frequentaram os Liceus e também os mesmos transformados em Escolas Secundárias, ainda se lembram bem dos testes e das fichas de trabalho que lhes eram apresentados manuscritos ou dactilografados em stencil. Estas gerações não têm dificuldade em identificar uma publicação em formato A4, como eram as nossas teses de licenciatura, que, depois de cortadas na guilhotina e encadernadas, ficavam com as dimensões de 25 x 20,5 centímetros, com uma mancha textual com linhas em espaço duplo, ocupando cerca de 19 x 13,5 centímetros. Como nas máquinas tradicionais de escrever não existem as modernas facilidades de escrita, com letras em negrito, em itálico, ou com outras formas de destaque, a solução era recorrer ao sublinhado, pelo que existiam regras precisas. Estou agora a lembrar-me de uma das fornecidas pelo meu orientador. Nunca esquecer que os títulos das obras, porque não existe o itálico nas máquinas de escrever, devem ser registados com sublinhado. E os títulos das revistas e periódicos deverão ser colocados entre aspas "altas", daquelas que ficam acima da linha do texto, tal como se mostra na palavra "altas". E nunca esquecer que as citações devem vir entre aspas alinhadas com o texto e com este sublinhado, na falta do itálico.

Mas o mais difícil, e isto tive eu que treinar bastante antes de bater a minha tese em stencil, a margem direita tem de ficar perfeitamente alinhada, algo que hoje se faz com a maior das facilidades, bastando escolher a opção de justificação integral.

Pois é, apresentar uma tese de licenciatura era fruto de uma trabalheira dos diabos. Não nos bastavam os meses ou anos gastos na pesquisa, ainda tínhamos o trabalho, se nos faltavam os recursos pecuniários, de arranjar uma máquina de escrever, nem que fosse emprestada, e aprender a dominar diversas técnicas. E como as fotocopiadoras eram também coisa rara, se necessitávamos de imagens para ilustrar os trabalhos, tínhamos de recorrer à nossa habilidade no desenho ou às fotografias, que colávamos depois nos espaços deixados no meio das manchas textuais. E já agora, só para recordarmos velhos tempos, outra técnica de multiplicação de páginas podia ser obtida recorrendo ao papel químico, que penso ainda existir à venda, embora já não veja nenhum exemplar há umas boas dezenas de anos.

A última etapa antes da entrega e defesa da tese era mandar todo o material impresso para a tipografia ou, melhor dizendo, para um encadernador, a fim de os volumes serem devidamente arranjados para poderem ser depositados, posteriormente à defesa do trabalho, nas diferentes Bibliotecas da Universidade.

Antes de concluir estas linhas motivadas pela tese do André, deverei acrescentar que não me responsabilizo por eventuais gralhas. Encontrei algumas, causadas provavelmente pelo dactilógrafo, como, por exemplo, notas sem a devida correspondência no texto. E como a minha área é a da Filologia Românica e não a Germânica, e nada percebo de Alemão, não me surpreendo se existirem algumas letras trocadas, apesar das duas semanas que ocupei a ler e corrigir a tese. Isto porque não há nenhum sistema informático moderno, por mais evoluído que seja, que consiga reconverter um texto batido em stencil e com manchas textuais por vezes com os caracteres quase esbatidos por falta de tinta, para o código ASCII, sem necessidade de passarmos dias a copiar uma publicação, gastando as pontas dos dedos no contacto com as teclas. E, mesmo assim, o moderno sistema de OCR que utilizei conseguiu verdadeiros milagres. Sem ele nunca a tese do André teria sido ressuscitada para os novos formatos tecnológicos de informação.

Que tenham uma boa leitura e que este trabalho de várias semanas possa ser útil a todos quantos se interessam por questões de índole literária. No que me diz respeito, considero que foi um trabalho interessante, que me permitiu ficar a conhecer alguma coisa – não muito, diga-se de passagem – acerca do sétimo prémio Nobel da Literatura atribuído a um escritor de língua alemã. Mesmo sem termos de procurar os livros de Mann, temos aqui a oportunidade de poder ler um conto muito interessante, onde perpassa uma subtil e humorística ironia, traduzido pelo André Ala dos Reis, no qual se evoca um acidente de comboio.

Aveiro, 18 de Novembro de 2016

Henrique J. C. de Oliveira

 

 

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