Entre
os grandes vultos da cultura portuguesa que honraram com a sua
obra a cidade de Aveiro, merece especial lembrança o historiador
e notável escritor Frei Luís de Sousa. Na História
de S. Domingos vários capítulos são dedicados aos dois
conventos dominicanos de Aveiro. São textos cheios de graça
literária e de recordação histórica que a cidade não deve
esquecer e que podem ser admirados como verdadeiros monumentos.
A
palavra monumento não significa outra coisa senão — memória
— e nem só de casas e de ruas se compõe a memória das
cidades.
Frei
Luís de Sousa, o protagonista da celebrada obra de Almeida
Garrett, testemunhou, certamente com lucidez e provavelmente com
angústia, o crepúsculo apocalíptico do Portugal do século XVI.
A suspensão da vida familiar, o abandono do convívio público e
político, onde desfrutava de um invejável espaço social, e o
seu enclausuramento na ordem, de S. Domingos são um sintoma não
só do sentido trágico da sua vida, individualmente considerada,
como Almeida Garrett sugeriu, mas sobretudo da tragédia colectiva
que ensombrava e amargurava a nação portuguesa. A sociedade
portuguesa no final do séc. XVI e princípios do séc. XVII, foi,
pode dizer-se, arrasada por uma impressionante série de catástrofes
(a intensificação da prática inquisitorial, a expulsão dos
judeus, as devastadoras epidemias de peste, os desaventurados
naufrágios e piratarias cruéis, e, finalmente, a hecatombe de
Alcácer Quibir e a insolência da monarquia dual), tudo se
conjugou para lançar a decepção e o desgosto de viver, por toda
a parte e a toda a gente deste pequeno país, até há pouco, tão
prometedor e tão imperial. Frei Luís de Sousa encontrou no
convento, na história e na arte literária, uma solução digna
para a tragédia que não podia deixar de ser sentida por um
português, fidalgo, raro, antigo e superiormente cultivado.
É
mais conhecida, e tem sido de mais acessível leitura a Vida do Arcebispo, mas a História
de S. Domingos não desmerece da sua fama de escritor modelar,
mestre da língua e, de algum modo também, renovador da prosa
portuguesa pela decisiva influência que deixou inscrita no estilo
de Almeida Garrett. Além do seu valor literário, a História
de S. Domingos é um documento sobremaneira importante no
panorama da historiografia portuguesa, respeitante ao final da
idade média e a todo o século XVI. Trata-se naturalmente de uma
«história maravilhosa», mas maravilhosa é sempre toda a
realidade, sobretudo quando é vista pelos olhos dos poetas.
Em
jeito de recolha antológica, que poderá ser continuada nestas páginas,
e não faltam textos aprazíveis e memoráveis na tradição literária
de Aveiro, transcreve-se o III capítulo do livro III da 2.ª
parte, da História de S. Domingos, em
que se conta a «Fundação do Convento de Nossa Senhora da
Misericórdia da Vila de Aveiro».
Este
texto, além do seu interesse histórico (nesta perspectiva terá
evidentemente que ser lido com espírito crítico, devendo
descontar-se um ou outro aspecto de menor rigor, de algum modo
justificável naquele tempo e naquelas circunstâncias), deve também
ser admirado como um dos belos monumentos que integram a galeria
literária de Aveiro.
No
respeitante à informação histórica convém salientar: a notícia
de instalação do convento dos frades dominicanos em Aveiro, no
lugar onde hoje está implantada a Sé Catedral; a evocação da
figura do Infante D. Pedro, Senhor de Aveiro, primeiro Duque de
Coimbra, filho de D. João I, tradutor do «Livro dos Ofícios» e
da «Virtuosa Benfeitoria», regente na menoridade de D. Afonso, e
vítima do pundonor e da honra senhorial na desastrada batalha de
Alfarrobeira; a sugestão do espaço campestre que rodeava a
pequena vila de Aveiro, com especial referência à «Porta do Sol»,
que bem podia ser recuperada para a actual toponímia da cidade;
e, finalmente, a notícia sobre a criação da «Feira de Março»,
que cumpre, agora tecnocratizada, um ritual de mais de quinhentos
anos.
Como
monumento literário, este texto é sobretudo primoroso pela sua técnica
narrativa e pela elaborada simplicidade do seu estilo. O narrador
e o narratário parecem enquadrar-se numa situação de convívio
ameno, de conversação quase familiar. A linearidade da prosa,
apenas interrompida pelas intervenções ingénuas e sugestivas do
narrador, como nos «à partes» característicos da elocução
teatral, dão ao texto uma transparência quase coloquial.
O
autor conhecia muito bem a língua portuguesa e manejava-a com
plena expressividade. Provas não faltam, nas páginas que em
seguida se transcrevem. Anotamos apenas três exemplos, entre
muitos outros que o leitor poderá encontrar.
O
primeiro, é a observação sobre a forma de tratamento «os meus
Frades» e «os nossos Frades», que Frei Luís de Sousa distingue
como pessoa que está habituada a reflectir sobre as palavras e
sobre os sentidos que elas sugerem. Os pronomes que contêm uma
referência pessoal têm na língua portuguesa um valor muito
especioso como formas de tratamento. Falamos apenas da norma
portuguesa (a norma brasileira regista o mesmo facto embora com
aspectos diferentes). Nas formas de tratamento militar, por
exemplo, as relações hierárquicas passam todas pela oposição
«meu-nosso», dentro de um sistema relativamente simples e
rigorosamente esclarecido de acordo com a distribuição
institucional do poder. Em português, podemos dizer que todos os
pronomes que se referem a pessoas podem ser conotados com um valor
sociológico mais ou menos determinado pelas relações de domínio
ou de poder e de afectividade.
Um
outro tópico, não menos interessante de sabedoria linguística,
no texto de Frei Luís de Sousa, está na frase do miraculoso
Afonso Domingues — «...comecei a duvidar comigo, e dizia-lhe
que ninguém me daria crédito, homenzinho e coitado, e em negócio
tamanho...». Além da expressividade de toda a frase (que é ao
mesmo tempo tão simples e tão cheia de recursos e de significações),
convém salientar, por um lado, o uso surpreendente do discurso
indirecto livre, tão estudado e apreciado pelos modernos
linguistas e narratólogos, e, por outro lado, a utilização ingénua
e sapientíssima ao mesmo tempo do diminutivo homenzinho.
O diminutivo, e especialmente o diminutivo em -inho é, sem dúvida,
um dos recursos mais interessantes da língua portuguesa. Nele
confluem vários aspectos de todo o sistema derivacional. Se se
pode falar de «génio da língua portuguesa», como queriam os
românticos e o Dr. Evaristo Leoni, no século passado, bem
podemos afirmar que os diminutivos -inhos estarão entre os
indicadores desse génio íntimo e essencial da nossa linguagem.
Finalmente,
já o discurso vai longo, chamamos a atenção para um exercício
de esclarecimento semântico, efectuado pelo autor a propósito
dos termos da invocação do convento:
«Convento
de Nossa Senhora do Pranto»
«Convento de Nossa Senhora da Piedade»
«Convento de Nossa Senhora da Misericórdia».
Estes
termos têm uma história que não está isenta de implicações
ideológicas. A espiritualização do pranto e a desmaterialização
e desumanização do sentimento maternal tem uma justificação
assaz eufemística da parte do complacente Freire: «ficou-se,
chamando com linguagem e consideração pia daquele tempo, Nossa
Senhora do Pranto, que nós agora dizemos melhor da Piedade,
porque pranto supõe dor publicada com efeitos e mostras
exteriores, que muitas vezes servem de alívio, e estas não
consente aqui o bom discurso...» - Neste breve texto transparece
a preocupação do angelismo e provavelmente a polémica do
nominalismo, que no seio dos próprios dominicanos tinha sido
desencadeada, alguns séculos atrás.
Piedade sempre é termo «que todo se refere ao espírito», conclui
o bom Frei Luís de Sousa, não sabemos se com ironia, se com pura
e fervorosa convicção ortodoxa.
|
|
|
|
Igreja da
Misericórdia, em Aveiro (foto HJCO, 1981). |
|
Fundação
do Convento de Nossa Senhora da Misericórdia da Vila de Aveiro
(1)
«No
ano do Redentor de 1423, que foi princípio do sétimo do
Mestre Frei Gonçalo, primeiro Provincial de Portugal depois
da separação, teve seu princípio o primeiro Convento de
S. Domingos de Aveiro, pela maneira seguinte. Procedia a
reformação dos Frades de Benfica com tanta pontualidade e
concerto que se fazia amar por todo o Reino: e ajuntando-se
uma graça particular, que a casa sobre outras tem do Céu,
que é ser bem vista dos Reis, e Príncipes: obrigava todos
os filhos d’el-Rei Dom João a lhe mostrarem uma notável
afeição. Mas avantajava-se o Infante Dom Pedro, que era o
segundo, com tanta inclinação a toda a Ordem, que, quando
falava nos Religiosos d’ela, não se contentava com lhes
chamar os seus Frades, que assaz honra fora, mas usava de
termo, para Príncipe, mais humilde, e para nós de mais
favor: dizendo, os nossos Frades. Confirmava com isto
publicar grandes desejos, que a observância de Benfica se
dilatasse, e crescesse em número de casas, como a via
crescida em ponto; e vindo à sua noticia, que o Prior
d’ela Frei Mendo de Santarém, que juntamente era Vigário
da reformação pelo Padre Geral, pretendia povoar uma casa
nova; porque tinha bastante número de sujeitos, como quem
tira enxame de colmeia rica; declarou-lhe que queria que
fosse em uma de suas terras. Tinha-o feito el-Rei seu pai,
Duque de Coimbra, e Senhor de muitas vilas grandes, como
Aveiro e Montemor-o-Velho e outras. Determinado de dar uma
d’elas, não se resolvia em qual estaria melhor à Ordem,
ou por divertido, em muitos cuidados, como Príncipe, ou por
pouca agência dos Frades, cousa em que nenhuma idade nos
tem melhorado. Valem muito com Deus tenção, e desejos
firmes no bem, como erão tais os do Infante, assi os
agasalhou, usando com ele um termo de misericórdia grande;
e quase semelhante ao antigo, com que honrou a João Patrício
Romano, pela vontade que tinha de empregar em seu serviço a
fazenda, que possuía. Vivia na Vila de Aveiro um Afonso
Domingues, velho de anos e de perseguição de doenças, que
de longos tempos o tinham tolhido de pés e mãos, e como
com pregos cravado em uma cama, homem conhecido na terra
pelo mal, que padecia e por bom cristão e devoto de Nossa
Senhora, antes da doença. Eis que um dia, era por Agosto do
ano de 1422, amanhece são e salvo, e em pé, à porta do
Infante, que acaso se achava então na Vila. Sobe as escadas
tão solto e tão senhor de si, como quando era de 25 anos;
pasmando todos os que o conheciam, como se viram fantasma.
Pede audiência, levam-no ao Infante, corre toda a casa trás
ele; posto em sua presença, foi contando que, na mesma
noite, se ouvira chamar por seu nome, e abrindo os olhos,
vira arder a pobre casa em resplandores muito avantajados ao
sol do meio dia, e no meio d’eles se lhe representara uma
Senhora cercada de tamanha glória e formosura, que não
pudera duvidar ser a Virgem Mãe de Deus; e adorando-a por
tal, entre perturbação e alegria, ela lhe mandara que
tomasse uma enxada e a seguisse. Tal era a minha torvação,
dizia o bom velho, que, sem me lembrar a prisão de membros,
que tantos anos há não mandava nem erão meus, tive mãos
para tomar a enxada, e pés para andar, sem saber o que
fazia nem como o fazia. Fui-me trás a bendita Mãe de
Piedade que encaminhou para a Porta do Sol, (é nome de uma
das portas da Vila), e chegando a ela notei que se sentou na
escada que sobe para o muro, e daqui me mandou, que fosse
sinalando com a enxada (como fiz) um bom pedaço d’aquele
descampado. Isto feito, disse-me que logo de sua parte vos
avisasse, senhor Infante, que lavrásseis aqui um Mosteiro
da Ordem de S. Domingos, e que fosse do seu nome d’ela. Até
este ponto, como se tudo fora sonho, que na verdade assi mo
parecia, não tinha eu reparado em nada, mas quando me vi
feito embaixador, comecei a duvidar comigo, e dizia-lhe que
ninguém me daria crédito, homenzinho e coitado, e em negócio
tamanho. E a Senhora tornou: «Vai, não duvides; que bastará,
pera seres crido, ver-te o Infante posto em pé, e são e
valente, como estás, quando sabia, que estavas entrevado:
então parece que acabei de entrar em mim, e cobrei luz para
ver, e entender, que tinha cobrado milagrosa saúde, qual
nunca esperei nem mereci. Foi o caso celebrado na Vila por
todos os naturais com espiritual contentamento, como grande
mercê do Céu, e por tal ficou nas memórias d’ela e do
Cartório do Convento, para honra da terra e da Ordem, e é
a cousa mais sabida de quantas se contam em Aveiro. O
Infante ficou cheio de consolação e alegria, dando graças
sem fim à Virgem, por ver que lhe era grato um serviço,
que até àquela hora não tinha passado de traça e
desejos: mas para não haver mais tardança na execução,
chamou por uma parte o Vigário da reformação, pera
assistir na obra da casa, que logo queria que começasse; e
por outra, foi procurando licença de Roma pera ela, que
impetrou por um Breve, que temos passado pelo Papa Martinho
Quinto em dezanove de Fevereiro de 1423, e d’este tempo
lhe contamos sua antiguidade. Quando veio aos vinte e três
de Maio, tendo juntos grande cópia de materiais para a fábrica,
lançou o Infante por suas mãos a primeira pedra; e fazendo
logo levantar um altar no mesmo sítio, onde ora é o da
Capela-mór, celebrou n’ele primeira missa o Padre Frei
Mendo de Santarém Vigário dos Conventos reformados.
Concedeu a Vila de boa vontade todo o sítio que por mandado
da Virgem e mãos de Afonso Domingues se achou desenhado; e
o Infante comprou outro chão vizinho para mais largueza,
acudindo de suas rendas com todo o necessário; de sorte que
brevemente houve gasalhado para alguns Frades, e começou na
terra o edifício espiritual igualmente com o material;
porque vierão Religiosos de Benfica, que ficaram logo
pregando e confessando; e do que tocava à pedra e cal, se
entregou a superintendência ao Padre Frei Nicolau de S.
Domingos.
Tratou-se
da invocação da Casa, e como havia de ser da Senhora,
escolheu o Infante a d’aquele passo, em que mais dores e
mais merecimento juntamente teve sua bendita Alma, que foi
quando viu em seus braços ao pé da Cruz a fonte de Vida
sem vida; e o Autor da luz coberto de sombras e escuridade
mortal, passo em que o Infante tinha particular devoção: e
ficou-se chamando, com linguagem e consideração pia
daquele tempo, Nossa Senhora do Pranto, que nós agora
dizemos melhor da Piedade: porque pranto supõe dor
publicada com efeitos e mostras exteriores, que muitas vezes
servem de alívio, e estas não consente aqui o bom
discurso, conformando-se com as palavras do Santo Simeão,
que na alma lhe puserão a espada, por maior e mais
encarecido sentimento, que significamos com termo, que todo
se refere ao espírito, qual é piedade. Mas nem este nome
lhe durou muito tempo, para que o sucesso da fundação
ficasse em mais partes semelhante ao de Roma, com quem o
temos comparado. Se em Roma houve o milagre de cair neve, em
tempo que o sol com mais fervor abrasava a terra, e sinalar
a Senhora com ela o templo que queria; cá o houve também
em dar calor a um corpo humano, que por frio e desemparado
da natureza estava meio morto; e por seu meio e mão
desenhar o circuito do Mosteiro, que mandava fazer. A Igreja
de Roma teve vários nomes: já Basílica de Libério,
porque se levantou em seu pontificado, já Santa Maria do
Presépio, e em fim Santa Maria Maior, que é o que hoje
dura. Assi aconteceu a este Mosteiro: foi do Pranto o
primeiro nome, segundo da Piedade, terceiro da Misericórdia,
e este terceiro lhe ficou como em sorte. Foi a ocasião que
el-rei Dom Duarte, edificando poucos anos depois o Convento
de Azeitão, quis que se chamasse da Piedade; e ficando na
Província dous de um mesmo título, mandou-se alguns anos
adiante, em um Capítulo Provincial, que para evitar confusão,
se lançassem sortes em qual das Casas havia de ficar com a
vocação da Piedade; e caiu a Sorte sobre Azeitão. E os
Padres de Aveiro contentaram-se com o da Misericórdia. E
porque a maior misericórdia, que a Senhora e o mundo
receberam do Céu, foi a vinda do filho de Deus à terra, é
a festa mais solene deste Mosteiro, sua santíssima Encarnação
aos 25 de Março, solenizada sempre com notável concurso
dos lugares vizinhos, em memória dos misteriosos princípios
da Casa. Soube el-Rei Dom Duarte da devoção, folgou de lhe
dar argumentos como conceder à Vila uma feira franca e
geral, que começa aos vinte do mês, e dura oito dias.
E
o Infante fundador, que sempre teve olho nos bens
espirituais do Convento, depois de lhe dar todos os
temporais que pode, alcançou do papa Eugénio. Quarto, no
ano de 1439 uma indulgência plenária para todos os
religiosos, que n’ele acabassem seus dias. O que era causa
de nenhum velho sofrer ausência da casa, tanto que acabava
Priorado ou Vigararia ou qualquer serviço da Ordem em outra
parte. Assim estava sempre acompanhada de gente venerável
por cãs e virtude. E na verdade, criaram aqueles claustros
abalizados espíritos, que por eles jazem sepultados, e
podemos dizer que foi terra fértil de santidade e virtude
da celestial benção de quem a mandou edificar. De alguns
iremos dizendo, de todos não pode ser; porque, como erão
Santos, houve entre eles mais cuidado de trabalhar que de
notar trabalhos; de exercitar virtudes, que de fazer livros
d’elas.
A
Igreja veio a sagrar-se muitos anos depois, no ano de 1464,
por Dom Jorge de Almeida, Bispo de Coimbra, particular
devoto do Convento, e grande pregoeiro das virtudes d’ele.» FREI
LUÍS DE SOUSA (1) |
____________________
NOTA:
(1)
- Frei Luís de Sousa, História
de S. Domingos, 2.ª
Parte, Livro III, Capítulo III.
|