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— A RIA DE AVEIRO COMO ESTUÁRIO
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Do
ponto de vista topográfico a Ria de Aveiro é aquilo a que
habitualmente se chama um estuário de barra. Como tal, é
caracterizado pela existência de uma restinga arenosa, estreita,
comprida e baixa, que separa o mar de uma laguna interior. A boca
do estuário que, como é típico, historicamente se deslocou de
sitio ao longo da restinga, teve que ser artificialmente fixada e
é, em alguma medida, artificialmente mantida através de
dragagens.
Dada
a intrínseca instabilidade da faixa costeira, é possível
abrirem-se, em qualquer altura, novas bocas para o mar, o que começou
a acontecer nos últimos invernos a sul da Costa Nova.
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Representação
esquemática da região da Ria de Aveiro. |
As obras
que aí estão em curso eliminaram, aparentemente, o perigo
imediato de ruptura, mas há razões para duvidar da sua
estabilidade a longo prazo. Situação paralela se tem observado
na Torreira e na região de Esmoriz, onde as autoridades locais
reclamam obras urgentes de estabilização da costa.
No
lado interior da restinga espraia-se uma laguna, que também
tipicamente tem fundos pequenos e correntes, que são fortes na
boca do estuário e que genericamente são fracos em todo o resto
da laguna. Nesta desaguam vários cursos de água, que drenam a
vertente ocidental da zona montanhosa que se estende desde a região
de A rouca ao Buçaco e a extensa plataforma litoral, que vai de
Ovar até à Tocha. Uma representação esquemática da região da
Ria de Aveiro é apresentada na Fig. 1.
Sendo
o Vouga o único rio com caudais de inverno apreciáveis, só ele
afecta significativamente a topografia do fundo. Na Foz de todos
os outros rios e na restante área da laguna afastada da boca para
o mar, o fenómeno de sedimentação parece dominar o de
arrastamento mecânico. Na região da boca do estuário, onde as
correntes de maré são muito fortes, a topografia do fundo é
determinada pela grandeza e direcção dessas correntes, pela
cunha de maré e pelas características do mar na região
costeira. Havendo aqui um transporte sólido importante no sentido
norte-sul, esse fenómeno tem tido efeitos notáveis na topografia
da boca do estuário, mesmo após 88 obras de engenharia civil que
a fixaram artificialmente, criando dificuldades de navegação às
embarcações que demandam o porto de Aveiro. Essas dificuldades
aumentam quando ocorrem certas condições do mar, que fomentam o
assoreamento nas vizinhanças do canal de entrada. O transporte sólido
ao longo da costa, associado ao pequeno declive do fundo do mar
nesta região, dá origem à formação de um banco de areia,
longo e estreito, no prolongamento do molhe norte, constituindo um
obstáculo adicional ao bom funcionamento do porto (Fig. 2).
Estes exemplos dão substância à afirmação feita acima de que
a restinga de um estuário de barra é instável e que qualquer acção
humana que interfira com a sua formação natural é susceptível
de causar alterações topográficas relativamente profundas e
frequentemente imprevisíveis.
A
Ria de Aveiro, como qualquer estuário, é uma região onde
ocorrem variações muito acentuadas nos valores de alguns parâmetros
de qualidade da água e onde têm lugar fenómenos físico-químicos
de grande importância os quais ocorrem na coluna líquida, nos
sedimentos e ainda na superfície de contacto desses dois meios.
Entre os parâmetros sujeitos a maiores gradientes ao longo do
estuário encontram-se a salinidade, o pH, o potencial redox, e as
concentrações de nutrientes, de matéria orgânica e de
elementos vestigiais.
Relevância
especial têm as variações de salinidade que, por sua vez,
traduzem alterações profundas na composição química do meio líquido.
Essas alterações resultam de serem muito diferentes as proporções
relativas dos elementos na água do mar e na água dos rios e de o
processo de mistura ser em geral muito complexo. Essa
complexidade, de resto, está na base de uma classificação de
estuários baseada na sua estrutura salina, segundo a qual a Ria
de Aveiro talvez possa ser considerada um estuário parcialmente
misturado com fluxos de maré muito grandes em comparação com o
caudal dos rios. E diz-se talvez, porque a magreza e o rigor dos
dados experimentais existentes não permitem ainda fazer uma
apreciação mais realista. Basta dizer que nenhum dos rios
afluentes tem os seus caudais permanentemente medidos e que o
campo das correntes só foi parcialmente medido no início da década
de 1950.
Duas
consequências importantes estão associadas à variação de
salinidade que ocorre no estuário. Uma é a profunda alteração
que sofre a força iónica; a outra é a formação de soluções
sobressaturadas relativamente a alguns compostos. As alterações
de força iónica estão na base de um conjunto extenso de fenómenos
típicos de estuários: são colóides que floculam e se
depositam; são complexos que se destroem e que dão origem a
outros complexos ou a precipitados ou ainda que libertam os
elementos que contém, os quais podem vir a ser fixados pela biota
ou pelas superfícies inertes; são precipitados, quer em suspensão
quer depositados no fundo, que se dissolvem; são gradientes de
concentração que se criam na água intersticial dos sedimentos,
dando origem a trocas de massa na interface fundo-coluna líquida;
são trocas iónicas que ocorrem à superfície das partículas,
ocupando ou libertando centros activos dos quais se libertam ou
aos quais se ligam elementos essenciais ou biocidas; são moléculas
orgânicas complexas, que floculam e, finalmente, se depositam,
enriquecendo os sedimentos na sua fracção volátil e
conferindo-lhe condições favoráveis ao aumento da mobilidade de
certos componentes, nomeadamente de iões metálicos pesados;
enfim, poderiam ser dados muitos outros exemplos.
Figura
2: Esquema topográfico da boca do estuário da Barra de Aveiro.
A
formação de soluções sobressaturadas é particularmente
importante com os hidróxidos de ferro e de magnésio. Estes sais,
dada a sua natureza floculenta e a sua elevada tensão
superficial, absorvem da solução quantidades apreciáveis de
outros elementos, especialmente os mais pesados, e de compostos,
especialmente os mais complexos, que, desta forma, são arrastados
para o fundo. Por outro lado, uma pequena alteração do pH e ou
da força iónica, pode de novo solubilizar esses precipitados e
lançar na coluna líquida os componentes que dela haviam sido
removidos.
Já
se disse que nos estuários ocorrem grandes flutuações de pH,
salinidade e potencial redox. Essas flutuações são induzidas,
entre outros factores como vento, topografia e temperatura, pelos
movimentos das marés e pelos regimes de descarga dos rios. Elas são
pois movimentos periódicos a várias coordenadas, onde aparecem
traduzidas a hora do dia, o dia do mês e a estação do ano. E
como essas flutuações afectam o grau de mistura e a força iónica
das água, dos estuários, é fácil entender que nelas haja, como
efectivamente há, um grande dinamismo, o qual se traduz não só
pele variação no tempo da predominância de cada fenómeno, mas
também pela variação geográfica do local onde ele ocorre. Daí
que em estuários com grande tempo de residência, como é o caso
da Ria de Aveiro, haja uma permanente alteração da topografia
dos fundos e das margens, alteração essa que pode ser
exageradamente hipertrofiada se intervenções antropogénicas
tiverem por efeito, como tantas vezes têm, desequilibrar o ritmo
natural de evolução do estuário. Por exemplo: a implantação
dos pilares de uma ponte pode desviar uma corrente de tal forma
que ela passe a atacar uma margem.
Têm-se
vindo a referir até aqui aspectos relativos ao ambiente abiótico
de estuários. E começou-se por eles para pôr em evidência a
Importância que os factores físicos, químicos e geoquímicos têm
na biologia. Parece ser claro do que ficou dito que os estuários
são meios bastante desfavoráveis à vida, havendo apenas um número
limitado de espécies capazes de suportar os rigores desses
ambientes. Apesar disso, os estuários são partes muito
importantes do ecossistema cesteiro, desempenhando papel de relevo
em certas fases da vida de espécies de grande valor comercial. E
se é certo que o número de espécies é limitado, o mesmo se não
passa com o número de indivíduos de cada espécie, que pode ser
muito significativo. Os estuários são, por isso, a sede de
pescarias multas vezes prósperas e têm condições muita favoráveis
para a prática de aquacultura. Mas sendo os estuários
ecossistemas sujeitos a intenso uso económico, esse uso põe
muitas vezes em perigo a saúde da biota e a produtividade biológica.
Na Ria de Aveiro, essa competição entre os interesses biológicos
e os interesses económicos começa a dar sinais de rotura.
Tratar-se-ão, mais adiante, dois aspectos dessa competição. São
eles biota contra efluentes domésticos e biota contra efluentes
industriais.
Entretanto,
não gostaria de deixar de fazer uma referência breve às trocas
de massa que têm lugar na superfície da laguna. Além das trocas
gasosas que estão na mente de todos (O2 CO2),
a superfície das águas naturais recebe directamente da
atmosfera, seja na chuva, seja nas poeiras, quantidades apreciáveis
de resíduos de toda a espécie, tanto naturais como sintéticos.
Metais, pesticidas, hidrocarbonetos, todos eles entram na água
directamente da atmosfera. Mas se é verdade que, em áreas
grandes, as massas entradas por essa via podem ser muito
importantes, (no Mar do Norte, por exemplo, os metais poluentes
entrados da atmosfera excedem a contribuição do rio Reno), em áreas
pequenas como a Ria de Aveiro julga-se essa contribuição destituída
de significado, tanto mais que os ventos dominantes são de
proveniência oceânica.
2
- IMPACTO DOS EFLUENTES URBANOS SOBRE A RIA DE AVEIRO
Desde
sempre que as populações ribeirinhas lançaram os seus efluentes
nas massas de água que lhes passavam ou estavam à porta. E
enquanto a população se manteve em níveis manejáveis, os
ecossistemas foram sendo capazes de absorver as cargas que sobre
eles eram lançadas, não havendo consequências nefastas
aparentes para a biota. Houve, sim, consequências desastrosas
para a humanidade em resultado da propagação de doenças
contagiosas transmitidas com intervenção de água, ou seja,
usando uma terminologia hoje muito vulgarizada, havia poluição
microbiológica, mas não havia poluição biológica nem química.
Mas a partir dos princípios da revolução industrial, a situação
mudou-se radicalmente para pior. É que a acumulação de milhares
de pessoas em áreas muito pequenas veio originar caudais e cargas
de poluentes que excediam a capacidade de assimilação dos
ecossistemas.
A
característica dominante dum efluente doméstico ou urbano é a
presença de centenas de mg/l de matérias que são biologicamente
degradáveis, sendo transformadas principalmente em HO2,
CO2 e biomassa dos microorganismos depuradores. Para
que essa transformação se processe normalmente é necessário
haver oxigénio dissolvido na água em quantidade suficiente. Se
isso acontece, os microorganismos reproduzem-se, eliminam a matéria
dissolvida no efluente, morrem, depositam-se no fundo, juntando-se
lá às outras partículas sedimentáveis lançadas directamente
na água, e aí se inicia a sua decomposição. Nos estuários,
como o oxigénio disponível nos sedimentos é geralmente muito
pouco, essa decomposição dá-se em condições anaeróbias com
produção de gases quê são tóxicos e têm maus cheiros e com a
formação de sedimentos pretos esteticamente indesejáveis. Estes
efeitos, contudo, só se notam quando os sedimentos ficam a
descoberto. Mas a quantidade de oxigénio dissolvido na água é
insuficiente para promover a bioxidação da matéria orgânica
dissolvida no efluente, a situação piora consideravelmente.
Nesse caso, a decomposição é feita anaerobicamente na própria
massa líquida, resultando daí um acréscimo significativo na
produção de gases de odor objectável, a destruição do valor
estético da água, que passa a ter um aspecto repelente, e a
produção de maiores quantidades de sedimentos orgânicos, que
resultam também da floculação de macromoléculas e não apenas
da precipitação de microorganismos. Esta situação torna-se caótica
quando a água receptora tem pequeno volume e uma circulação
reduzida como é típico nos canais dos estuários do tipo barra.
Pois é exactamente essa a situação que presentemente existe em
Aveiro.
A
cidade é servida por uma rede de esgotos, na sua maior parte
antiga, que escoa directamente para o Canal das Pirâmides e para
o Canal de S. Roque. O primeiro, que recebe a maior parte do
efluente, renova a sua água apenas pela acção das marés; o
segundo recebe uma certa contribuição de água que vem dos
esteiros cio Grupo do Norte. Era consequência desta situação,
os canais têm uma camada de sedimentos orgânicos com metros de
espessura, que ficam a descoberto na maré baixa. Nessa altura, os
canais são autênticos esgotos a céu aberto. Mesmo na maré
cheia, a água permanece desoxigenada a profundidades superiores a
1 cm, pelo que as fermentações anaeróbias são permanentes.
Cerca
de 1% da população é servida por uma rede de esgotos de
construção mais recente, que drena para uma estação de
tratamento por leitos percloradores. A estação, cuja construção
foi iniciada há cerca de 1 anos e só recentemente foi posta a
funcionar, tem erros de concepção e foi mal dimensionada para
tratar, como se pretende, todo o efluente da cidade.
Presentemente, não dispõe de um clarificador secundário,
despejando toda a biomassa libertada dos leitos percloradores no
esteiro de S. Tiago, que desagua na Lagoa do Paraíso. Esta lagoa,
que é uma excelente massa de água com um potencial estético,
recreativo e para a aquacultura muito elevado e que presentemente
ainda tem em parte um fundo arenoso, está pois em risco de se
tornar, a curto prazo, noutro lamaçal coberto de águas
eutrofizadas.
Mas
os problemas dos efluentes urbanos não se circunscrevem a Aveiro
e aos seus canais. Uma população de perto de 200 mil habitantes
reside nos 8 concelhos que bordejam a Ria. Os seus efluentes,
directa ou indirectamente, acabam por entregar à Ria a quase
totalidade do nitrogénio excretado e ainda uma fracção do
aplicado na agricultura. E como os sedimentos devem conter
quantidades apreciáveis de fósforo, está-se em presença de
condições favoráveis à eutrofização da Ria, eutrofização
que já é evidente por todo o lado, salvo nos canais de correntes
mais fortes. Na verdade, não só é a turbidez elevada, mas
principalmente é espesso e quase contínuo o manto de macrófitos
fixos e flutuantes. Esse manto torna já impraticável a navegação
em grande número de canais. Está em curso a execução de um
projecto de investigação que visa quantificar a produção dos
macrófitos. No entanto, parece evidente que, pelo menos em largas
áreas da Ria, o seu ritmo de crescimento é tal que não será
economicamente possível controlá-lo usando meios mecânicos de
apanha, manuais ou não. Parece estar-se na presença de uma situação
onde só uma alteração físico-química do ecossistema poderá
ser eficiente. Um vasto campo está aí aberto ao engenho dos
investigadores portugueses.
De
todos os efluentes urbanos produzidos na região ribeirinha da Ria
só recebem tratamento os correspondentes a 11000 pessoas de Ovar
e a 7500 de Aveiro e esse tratamento é pouco eficiente. A curto
prazo, espera-se ampliar esse tratamento às populações de
Estarreja e Vagos e à totalidade da de Aveiro. No entanto, como
nenhuma das estações existentes ou previstas contempla a remoção
de nutrientes, não será de esperar uma melhoria muito
significativa na qualidade da água, nomeadamente na turbidez,
transparência e macrófitos, nem na dos sedimentos que continuarão
a acumular os restos da produtividade primária e secundária do
ecossistema. Há metodologias eficientes de remoção de
nutrientes baseadas na cultura de algas e de peixes. As condições
naturais são propícias. Parece pois de aconselhar um esforço no
sentido de se encontrarem soluções para o problema, que sejam
exequíveis e ambientalmente aceitáveis. Esse é um domínio onde
se justificaria uma intervenção da JNICT e da SEA.
Enquanto
essas intervenções não tiverem lugar e não forem implementadas
as medidas que os estudos revelarem mais aconselháveis,
continuar-se-á a assistir a uma deterioração crescente da
qualidade da água em certas zonas relativamente localizadas da
Ria. São essas zonas que se assinalam na Figura 22.
Adicionalmente haverá ainda uma contribuição para a eutrofização
geral da Ria dada pelas fontes dispersas de nutrientes, que é difícil
de quantificar, cuja importância variará de local para local em
função das características do campo decorrentes, da topografia
do fundo e dos caudais dessas fontes.
3
- IMPACTO DOS EFLUENTES INDUSTRIAIS NA RIA
O
distrito de Aveiro ocupa um lugar destacado no panorama industrial
português. Apesar disso, o número de grandes unidades
industriais localizadas no distrito é relativamente pequeno,
sendo a maioria das existentes de dimensões pequenas e médias.
Em termos de efluentes, isto significa que a maioria das indústrias
funciona como fontes dispersas relativamente à Ria, quase outro
tanto se passando relativamente aos cursos de água mais
importantes. E ao nível dos pequenos ribeiros que os impactos
ecológicos causados pelas indústrias de pequenas e médias
dimensões são muitas vezes dramáticos.
Nas
vizinhanças imediatas da Ria há, contudo, três unidades
industriais de dimensões apreciáveis, cujos efluentes se
suspeita que estejam a ter um efeito importante no seu
ecossistema. E trata-se apenas de uma suspeita, porque, ao contrário
do que já acontece por esse mundo fora, neste país não se é
informado nem nos termos em que essas indústrias foram
autorizadas a fazer descargas nas águas públicas, nem dos
resultados das análises que obrigatoriamente deveriam ser feitas
com periodicidade pré-estabelecida. O que um membro do público
consegue saber é o que lhe é cochichado à mesa do café ou que,
por artes mais ou menos detectivescas, vai obtendo daqui e dali.
Das
três indústrias atrás referidas, uma é alimentar, a Nestlé,
localizada em Avanca e descarregando para o rio Gonde; e as outras
duas são químicas, uma sendo a fábrica de pasta de papel da
Portucel, em Cacia, que descarrega no Vouga, e a outra o parque
industrial de Estarreja, envolvendo a produção de fertilizantes,
soda, anilina e outros produtos diversos, que descarrega algures
no esteiro de Estarreja; e ainda a produção de plásticos, cujos
efluentes são enviados para o canal de Ovar. Além disso, chega
à Ria, via Rio Vouga, uma carga poluente apreciável, que é
descarregada no rio Caima pela fábrica de pasta de papel da Caima
Pulp Company.
Deixarei
de lado a fábrica da Nestlé por duas razões: a primeira é que,
tratando-se de uma indústria alimentar de lacticínios, a
perturbação que porventura estiver a causar na Ria será devida
a CBO e, eventualmente, a variações de pH, questões que, em
termos de estações de tratamento, são fáceis de resolver. O
problema, se existir, elimina-se pela simples aplicação das
leis, não se prevendo problemas grandes, nem técnicos nem económicos.
A segunda razão é que não consegui obter quaisquer informações
quantitativas quanto ao funcionamento dessa unidade fabril bem
como de outras de menor dimensão existentes na zona.
A
fábrica de pasta e de papel de Cacia fez já correr rios de tinta
e os problemas que levanta têm preocupado os sucessivos SEA,
aparentemente sem grandes resultados. Tudo o que se conseguiu
obter até agora foi a promessa de que a fábrica porá em
funcionamento, a curto prazo, um sistema primário de tratamento
de efluentes líquidos. Os benefícios a colher desse esforço
podem resumir-se no seguinte: uma melhor uniformização na
qualidade do efluente, remoção de cerca de 90 por cento das partículas
suspensas e, talvez, um melhor controlo do pH e da temperatura com
que o efluente é descarregado. Em termos de Ria, isso virá a
traduzir-se numa redução não superior a 35 por cento no CBO
oriundo do efluente e no benefício estético que resulta da redução
dos flutuantes e da turbidez.
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Fig. 3:
Representação esquemática das Zonas da Ria de Aveiro mais
afectadas por esgotos urbanos: Aveiro (A); Estarreja (B);
Ovar (C); Vagos e Ílhavo (D); Costa Nova (E); Praia de Mira
(F). |
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Isso,
no entanto, é muito pouco. É que os componentes mais tóxicos
dos efluentes são os dissolvidos e não os suspensos e esses vão
continuar a causar os mesmos estragos que agora provocam. Um
efluente de uma fábrica de pasta pelo método do sulfato, que
adicionalmente também produz papel branco, tem um efluente líquido
muito complexo, onde existem, por ordem decrescente de toxicidade
para os peixes, as seguintes classes de compostos: ácidos resínicos,
ácidos resínicos clorados, ácidos gordos insaturados,
clorofenois, álcoois diterpénicos, juvabionas (compostos que
mimificam certas hormonas), vários compostos acídicos saturados,
vários álcoois alquílicos e aromáticos e variadíssimos
produtos da decomposição da liguina. Além destes, existem
muitos outros compostos orgânicos e inorgânicos de toxicidade
pequena ou nula como, por exemplo, sulfatos e sódio. Os dois últimos
aparecem geralmente em concentrações inferiores às que têm na
água do mar, pelo que não causam perturbações em ambientes
estuarinos. Os restantes componentes, em conjunto e isoladamente,
levantam problemas de toxicidade aguda e crónica não apenas para
os peixes, mas também para outras formas de vida que existam
tanto na coluna líquida como nos sedimentos. Nestes aumenta muito
o carbono e enxofre orgânicos e o pH varia apreciavelmente. Essas
alterações, em ambientes ióticos podem fazer-se sentir até 5
Km do ponto de descarga. Num rio como o Vouga, esses efeitos devem
provavelmente fazer-se sentir até à zona de diluição directa
causada pela cunha da maré, ou seja, até jusante do Parrachil.
Estas alterações nas características dos sedimentos vêm a
traduzir-se pelo desaparecimento total de macro-invertebrados nas
vizinhanças imediatas da descarga seguida, à medida que a distância
aumenta, de redução do seu índice de diversidade. Este está
directamente relacionado com o teor do enxofre total e do carbono
orgânico nos sedimentos.
As
bactérias são elementos da biota mais sensíveis ao efluente. A
influência deste tem sido observada em ambientes ióticos até
distâncias de duas dezenas de km. Se igual persistência existir
em zonas lagunares, isso pode significar que toda a zona norte da
Ria até à ponte da Varela deve estar perturbada. O fitoplâncton
e o perifiton sofrem reduções de actividades fotossintética em
efluente diluído 100 vezes e, em alguns casos mesmo 10000 vezes.
O zooplâncton reduz a sua capacidade de filtração sob a acção
do efluente, ficando essa capacidade completamente inibida para
concentrações entre 5 e 10 por cento; além disso, a inibição
torna-se permanente para exposições prolongadas. Para os peixes
a sensibilidade varia com as espécies. O 96h LD50 varia entre 21
e 24 por cento de efluente, mas reduções no ritmo de crescimento
já ocorrem a diluições de 6 por cento. Os compostos individuais
que são tóxicos variam com a espécie, mas um que é comum a
todas as espécies é o ácido dehidroabiético, cuja vida média
é de 21 anos nos sedimentos de 1,5 meses da água. Outros
compostos como fenol, guaiacol e aromáticos clorados são
bioacumuláveis e conferem cheiros e paladares desagradáveis, que
tornam o peixe impróprio para consumo, uma queixa que já se ouve
com frequência aos pescadores da Torreira. A reacção dos peixes
ao encontrarem o efluente é a de o evitarem, o que poderá ter
efeitos desastrosos para as espécies migratórias que pretenderem
subir o rio Vouga.
Pensa-se
que o que ficou dito permite avaliar o perigo que a descarga da fábrica
de Cacia pode representar para a biota da Ria. Não creio ser possível,
neste momento, afirmar-se qual o impacto que o efluente está
efectivamente a ter sobre o ecossistema lagunar. Não se conhecem
estudos que tenham procurado avaliar esse impacto. Não se
conhecem também quaisquer estudos de toxicidade que tenham sido
feitos com o próprio efluente da fábrica sobre os animais
lagunares. E a toxicidade desse efluente pode ser bastante
diferente da que está descrita para efluentes de outras fábricas
semelhantes mas que laboram espécies silvícolas diferentes, já
que a toxicidade do efluente depende da composição da madeira
usada na fábrica.
Quem
percorre a Ria na zona do delta do Vouga não tem dúvidas de que
o efluente da fábrica está a ter um efeito nocivo; mas essa
impressão é meramente qualitativa e resulta da observação do
impacto do efluente sobre a qualidade da água quanto ao seu uso
para recreio e amenidade paisagística. A cor, cheiro e aspecto da
água, das margens, dos fundos e da vegetação estão
profundamente degradados e isso, só por si, numa região turística
como Aveiro, justificaria que as autoridades procurassem obter a
cooperação da Portucel por forma a conseguir-se a implementação
do conjunto de medidas indispensáveis à eliminação dos
aspectos mais chocantes do impacto do efluente. Isso acabará por
passar necessariamente pela instalação de alguma espécie de
tratamento secundário para o efluente, tratamento esse que, dadas
as características da região, e a abundância de terreno, poderá
eventualmente vir a realizar-se sem necessidade de Investimentos
incomportáveis para a economia da empresa e da nação.
Mas
não são os aspectos estéticos os argumentos de maior força em
favor do tratamento secundário do efluente. O desequilíbrio ecológico
causado na Ria e no Vouga é sem dúvida um factor de muito maior
peso. Urge identificar os componentes do efluente que têm maior
toxicidade e estudar os seus mecanismos de degradação. Será com
base nos resultados desse estudo que se deverá projectar a estação
de tratamento. Só assim se optimizará a relação custos-benefícios
do empreendimento, optimização essa que será indesculpável que
não seja atingida. Temos presentemente reunidas em Aveiro algumas
das condições necessárias para a realização do estudo
referido. Existe uma Universidade com pessoal qualificado, existe
algum equipamento, conhece-se a metodologia. Só falta um
catalisador que faça surgir os meios materiais que não existem e
que faça nascer nas pessoas a motivação que lhes falta para lançar
as mãos à obra. Um dos órgãos regionais com responsabilidade
na gestão do ambiente poderia facilmente tornar-se nesse
catalisador.
Os
problemas associados com o efluente do parque industrial de
Estarreja são um tanto diferentes dos de Cacia. As indústrias
mais importantes instaladas no parque produzem nitratos, sulfatos,
soda cáustica, cloro, plásticos e aromáticos substituídos. O
parque tem, em alguns pontos, tratamentos parciais de alguns
efluentes, que vão do simples ajuste de pH, feito manualmente,
aos sistemas mais complexos de remoção de orgânicos residuais
através de colunas de carvão activado. O conjunto de
tratamentos, porém, é descoordenado e incompleto, resultando daí
um efluente industrial de qualidade muito variável. Para essa
variabilidade contribui também a água de escorrimento
superficial de todo o parque, que é misturada ao efluente
industrial e provoca variações de caudal, habitualmente da ordem
dos 50 cm3/h, que facilmente atingem os 100 por cento.
O
efluente não é caracterizado com regularidade. Há um conjunto
de análises pouco significativas que são feitas mensalmente
pelas fábricas e que, aparentemente, não são lidas por ninguém,
embora sejam enviadas à autoridade licenciadora do lançamento,
neste caso a Direcção Hidráulica do Mondego.
Uma
vez que os sulfatos são sintetizados a partir da pirite, será de
esperar que o efluente seja rico em metais pesados diversos, como
cobre, chumbo e zinco, e em não metais tóxicos como o arsénio.
Será de esperar também concentrações elevadas de sulfatos,
nitratos, amoníaco e moléculas orgânicas diversas, desde o
cloreto de vinilo aos aromáticos substituídos. Será ainda de
esperar quantidades apreciáveis de hipocloritos e variações
bruscas e grandes de pH, muito embora, dada a predominância das
instalações da Quimigal, o pH tenda a ser habitualmente baixo.
Com
um tal panorama pode perspectivar-se o impacto que esse efluente
possa ter na Ria. O efluente é rico em metais pesados e a Ria tem
sedimentos ricos em matéria orgânica. Os metais serão pois
complexados por essa matéria orgânica e arrastados para o fundo
com a sua floculação. Mas o efluente será frequentemente ácido
e a hidrólise da matéria orgânica será catalisada em meio ácido.
Dessa forma será libertada para a solução uma parte dos metais
pesados que, entretanto, tiverem sido complexados. Quer no fundo,
quer na coluna líquida, os metais podem ser acumulados pela
biota, onde causarão os efeitos típicos da poluição metálica.
Pode, além disso, ser ainda iniciado um processo de amplificação
biológica de que as populações ribeirinhas poderão
eventualmente estar já a ser vítimas. Aí está um campo que
vale a pena investigar. Mas pior do que o processo descrito acima
é um outro que tem uma grande probabilidade de acontecer. Já se
disse que o esteiro de Estarreja recebe efluentes urbanos. A
quantidade de matéria orgânica existente no fundo deve ser
grande e a probabilidade de ocorrerem reacções anaeróbias nos
sedimentos será muito elevada. Tais condições são muito favoráveis
para a formação de compostos alquílicos de alguns metais,
nomeadamente o Hg e o Pb. Esses compostos têm a propriedade de
atravessar muito facilmente as membranas biológicas, pelo que se
acumulam rapidamente nos tecidos dos seres vivos presentes,
particularmente dos que vivem no fundo e se alimentam filtrando a
água, que é o caso de muitos moluscos, alguns dos quais são
directamente comidos pelo homem. Foi uma situação semelhante a
esta que originou o desastre de Minamata.
Há
ainda um outro problema que vale a pena referir. O efluente deve
conter produtos orgânicos sintéticos diversos. Esses produtos,
além de efeitos de toxicidade directa, tanto aguda como crónica,
são frequentemente bioacumuláveis e originam paladares e aromas
desagradáveis, pondo assim em risco tanto a saúde como o valor
comercial das pescarias da região.
Finalmente,
talvez valha a pena referir também os efeitos que poderá ter o
nitrogénio transportado no efluente. A concentração de amoníaco
deve andar pelas centenas de mg/l e a de nitratos pelos milhares.
Como se sabe, o amoníaco é extremamente tóxico para toda a
biota e, em especial, para os peixes, sendo os limites tolerados
da ordem de 1 mg/l. Os nitratos são, como já se disse, factores
determinantes da eutrofização da Ria. Lançar despreocupadamente
num canal de pequena circulação centenas ou milhares de mg/l de
nitratos e andar paralelamente a tentar manter esse canal livre de
macrófitos é um exemplo acabado de incoerência.
ARISTIDES
HALL
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