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"Patrimónios" – n.º 3, Setembro 2003, Ano XXIV, 2ª série, 160 páginas.


O MOINHO DE ESGUEIRA

Um documento histórico do séc. XIII

Manuel Barreira

Moinho de Esgueira. Clicar para ampliar.Quem, saindo da Avenida Lourenço Peixinho, se dirigir para Esgueira, pela Rua Luís Gomes de Carvalho, logo que entrar na Rotunda de Sá e antes de começar a descer para o viaduto sob o Caminho de Ferro (Rua de Viseu), olhar sobre a sua direita, poderá constatar a existência de um moinho de vento em ruínas, metido entre a vegetação de um terreno vago. Muita poucas pessoas saberão que esse moinho é antiquíssimo, talvez o "edifício" mais antigo de todo o actual concelho de Aveiro. A referência escrita mais antiga que dele temos é numa carta do rei D. Dinis, ordenando a demarcação das fronteiras entre Esgueira e Sá, precisamente do ano de 1309, a 3 de Abril.

Até muito recentemente (reformas administrativas do Liberalismo), toda a área a poente da actual variante à Estrada Nacional 109, desde Verdemilho até Cacia, era formada em três concelhos distintos e autónomos: Aveiro, Sá e Esgueira, além do concelho de Aradas, que ficava a Sul dessa Estrada.
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A zona do baixo Vouga, em que Aveiro se situa é uma zona alagadiça e fora das rotas de passagem do Norte para Sul durante os tempos romanos e medieval (que utilizariam a estrada romana que passava por Albergaria-a-Velha). Esta zona só começou a ser colonizada primeiro pelos muçulmanos e depois pelos cruzados nórdicos a partir do séc. IX. E foram estes últimos que terão introduzido e desenvolvido a exploração do sal, à maneira das salinas da Bretanha.

Com a reconquista do território do Norte para Sul, a política da presúria levou a que os nobres portucalenses se fossem assenhoreando das salinas, já abundantes e ricas. E os documentos dos séculos IX, X e XI, compilados por Alexandre Herculano, repetidamente falam das salinas em Alavarium (Aveiro), Esgeira (Esgueira) e Sala (Sá). Estes nobres, com as suas políticas de casamentos e heranças entre as várias famílias, repartiram todas estas ricas terras entre si e, em dotes aos filhos e filhas segundos que ingressavam nos ricos Conventos e Mosteiros, fizeram com que A veiro, Esgueira, Sá e Aradas estivessem repartidas pelos Mosteiros de Lorvão, Santa Cruz de Coimbra, Tarouca e Arouca, Vacariça e Sé de Coimbra. Porém, D. Dinis, reconhecendo as grandes potencialidades económicas de Aveiro, em 1306 promove escambos, isto é, trocas com os Mosteiros de S. João de Tarouca e Celas de Coimbra de modo a unificar a vila de A veiro em seu poder directo. Esgueira continuou em poder do Mosteiro do Lorvão. O lugar de Sã, que não estava integrado na posse de nenhum destes mosteiros, já era lugar reguengo, mas sempre permaneceu emancipado daquela unificação, continuando sempre a ser nomeado separadamente. E em 1354 é referido ligado a Ílhavo numa doação daqueles dois lugares, como dote de casamento, de D. Afonso IV a sua filha Infante D. Maria. Por isso Sá ficou a pertencer a Ílhavo desde essa data até 1835.

O termo (isto é, a fronteira) de Aveiro acabava num descampado logo a seguir ao Convento do Carmo. Para o lado do Canal de S. Roque já não havia mais casas. Para o lado sul eram os terrenos das Amelas, terrenos agrícolas com algumas casas de agricultores. Para nascente, seguindo a estrada de A veiro a Esgueira, actuais ruas do Carmo e de Sã, e até a Capela de Nossa Senhora da Alegria, também denominada de Santa Maria de Sã, e flectindo para a direita pela rua que hoje constitui o prolongamento para Nascente da Força Aérea Portuguesa e até ao referido moinho de Esgueira, as casas do lado direito (a sul), pertenciam a Aveiro; as do lado esquerdo pertenciam a Sã, incluindo a mesma Capela.

Assim o território de Sá fazia fronteira com o de Aveiro e com o de Esgueira. Com este concelho houve problemas de demarcação que originaram uma inquirição mandada fazer pelo Rei e na qual o Almoxarife Régio de Ega, o seu escrivão e o Juiz de Esgueira, este como representante da Abadessa do Mosteiro do Lorvão, senhoria de Esgueira, percorreram as extremas e plantaram marcos de pedra nos sítios mais representativos. Assim, partiram do Vale de Sã, junto ao actual canal de São Roque, e

"o primeiro marco foi metido no dito vale que chamam de Sá, abaixo da carreira (estrada) que vai de Aveiro para Esgueira contra o mar. E o segundo marca foi metido sobre a dita carreira contra suso (logo acima) da dita carreira em meios. E o / 117 / terceiro e quarto marcos foram metidos na chousa (horta) que foi de Domingos Feres Berlingo, de Esgueira, contra suso (do lado de cima). E o quinto marco foi metido contra suso na chousa que é de João Domingos Queima Casas, de Esgueira, contra o (do lado do) lugar que chamam Espadaneira. E o sexto marco foi metido no lugar que chamam Espadaneira. E o sétimo marco foi metido contra cima no lugar que chamam (sic). E o oitavo marco foi metido contra suso no canto da chousa que foi de ... (ilegível) Magro, a par da carreira que ch amam dos Arneiros. E esse oitavo marco passa pela divisão de pedra do conto (demarcação) que está sobre o moinho que parte o termo entre Aveiro e Esgueira...)"

(para mais fácil leitura, adaptámos a escrita)

Localização do moinho. Clicar para ampliar.Se consultarmos o Tombo da Vila de Esgueira, na documentação do Mosteiro do Lorvão, guardada no Arquivo da Universidade de Coimbra, mandado fazer pela abadessa daquele Mosteiro e elaborado pelo Doutor Francisco de Bastos Monteiro, nos princípios do séc. XVIII, veremos que o mesmo moinho nos é referido como marco de divisão dos três concelhos.

De igual modo, o Tombo da Casa de Aveiro, elaborado pelo mesmo Juiz do Tombo, nos anos de 1696 a 1705, coincide na demarcação e nomeia o mesmo moinho.

Trata-se portanto de uma preciosa relíquia de antiquíssimos tempos, um importante testemunho das nossas raízes. Felizmente aquele terreno ainda não foi objecto da cobiça de construtores gananciosos, como, infelizmente, têm sido tantos outros. É preciso evitar que o venha a ser.
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Também aqui deixamos o nosso apreço ao proprietário do terreno que soube conservar esta relíquia.

É preciso conservar estes testemunhos do passado. Mas conservar não significa que tudo fique como está, até cair de podre.

Conservar significa utilizar, valorizar, usufruir. Muito em breve, naquele terreno se construirá um prédio de apartamentos. É inevitável. E o moinho não pode ser um entrave ao progresso, antes o deve valorizar, como ponto de atracção turística e cultural e, de preferência, também económica, artisticamente integrado no novo prédio.


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