Henrique J. C. de Oliveira, Os Meios Audiovisuais na Escola Portuguesa, 1996.

Características da imagem

Tendo em conta o que foi anteriormente dito, verificamos que o universo do homem é constituído por imagens de diversos tipos e que, mesmo durante os seus momentos de repouso, elas continuam presentes, constituindo o universo no meio do qual se desloca e age, durante a sua actividade onírica. No entanto, são as imagens materiais, / 35 / enquanto forma de representação da realidade, que constituem a matéria da nossa análise. Estudadas desde há longa data por diversos autores, apresentam um conjunto de características, que passa­mos a enumerar:

            1º - A imagem é uma presença e uma ausência, na medida em que nos coloca perante uma realidade que se encontra ausente, mas da qual ela é um espelho;

            2º - A imagem é simultaneamente sonho e realidade, na medida em que permite apresentar-nos, como acontece, por exemplo, no mundo do cinema, uma realidade construída que se situa entre o universo do real e da ficção;

            3º - A imagem é um sistema de representação sensorial, materializado num documento e, consequentemente, uma forma de comunicação que encerra uma carga real e afectiva, na medida em que nos informa, nos permite uma análise da realidade e nos sugere ou desperta sentimentos;

            4º - A imagem é um fenómeno simultaneamente individual e social.

            5º - A imagem é simultaneamente objectividade e subjectividade, na medida em que, na apresentação de uma realidade objectiva, o seu registo depende sempre de uma opção subjectiva daquele que a captura ou a realiza, na qual entram diversos factores, tais como o enquadramento, a iluminação, o ponto de vista, o tipo de plano utilizado, etc.

Dissemos que a imagem é uma representação objectiva de uma determinada realidade, seja ela concreta, seja abstracta. No entanto, há que referir que toda a representação visual de um objecto, de uma paisagem, de um local, é sempre uma reprodução simultaneamente objectiva e subjectiva de uma determinada realidade. Embora a afirmação possa parecer um contra-senso, pelo facto de se juntarem dois conceitos opostos, a verdade é que toda a imagem apresenta sempre esta duplicidade: objectividade-subjectividade. Considerada em si, enquanto objecto representativo de uma certa realidade e portador de significado, toda a imagem criada é objectiva; no entanto, uma vez que está dependente da maneira como o seu autor a realizou, a imagem torna-se subjecti­va, na medida em que mostra sempre um determinado ponto de vista que depende da situação do observador, do ângulo, do tipo de enquadramento escolhido e de outros factores tidos em conta no momento em que se procurou registar a realidade, entre os quais se encontram os próprios objectivos tido em conta na sua representação. Além disto, uma imagem não passa de uma representação visual incompleta e imperfeita da realidade, nunca podendo corresponder à própria realidade, pois não passa de uma simples representação gráfica.

Uma fotografia de uma casa, de uma pessoa, de um objecto, não é mais do que a representação rudimentar do objecto captado, na medida em que se trata de uma representação gráfica bidimensional, obtida num plano. Enquanto os objectos reais são por nós percepcionados / 36 / em relevo, podendo a sua observação assumir diferentes aspectos em função da nossa localização espacial e do tempo, a imagem obtida desses mesmos objectos torna-se um elemento estático bidimensional, sem relevo, em que apenas a noção da perspectiva nos dá uma rudimentar noção de profundidade e de situação espacial. Pode-se pois afirmar que a imagem corresponde a um signo visual, constituindo algo que representa a realidade.

De todas as características referidas, o aspecto mais importante será talvez o valor que a imagem sempre teve ao longo da história da humanidade como forma de comunicação, uma das mais antigas, muito anterior à linguagem verbal escrita, e com um significado praticamente quase universal. Enquanto a linguagem verbal, embora sendo a forma de comunicação privilegiada pelo homem, tem o inconveniente de estar limitada pela área linguística em que cada sujeito falante se insere, a imagem é susceptível de ser descodificada por qualquer povo e em qualquer época, não alterando significativamente o seu valor como significante. As palavras, através dos tempos, vão-se alterando não apenas na forma, como também no significado, caindo muitas vezes no desuso e no esquecimento e sendo substituídas por outras mais recentes, fazendo com que textos antigos se tornem de difícil descodificação. Uma imagem que represen­te uma determinada cena manterá, em princípio, sempre o mesmo valor significativo, tendo grandes probabilidades de poder ser descodificada com maior ou maior rigor. Por exemplo, uma cena de caça, como a que nos deixaram os nossos antepassados cavernícolas, ou uma cena representando um grupo de animais, manterá sempre o mesmo valor significativo através dos tempos; na pior das hipóte­ses, a sua carga semântica limitar-se-á apenas a sofrer pequenas diferenças interpretativas, dependendo do grau de cultura e da capacidade de observação do receptor. E, ainda que, eventualmente, tenha perdido para nós o sentido mágico-religioso, será portadora de significação e susceptível de ser interpretada, sem levantar problemas a nível das barreiras linguísti­cas.

Segundo Roland Barthes [1], a leitura de uma imagem faz apelo «a um saber de certo modo implantado nos costumes de uma civilização», a um «saber prático, nacional, cultural e estético», de onde decorre que não haverá uma leitura única de uma imagem. A sua leitura poderá ser feita a vários níveis:

 - descritivo: indicação pura e simples, de maneira objectiva, daquilo que a imagem apresenta;

-  interpretativo: indicação das possíveis significações que a imagem apresenta, entrando aqui os factores culturais e a sensibilidade do observador;

- técnico: análise da imagem tendo em conta o plano, a cor, a luz, a profundidade, etc.

 

 / 37 / De qualquer modo, a analogia existente entre a imagem e aquilo que ela representa, ao contrário dos signos linguísticos, torna a imagem susceptível de ser analisada e interpretada em qualquer época e por qualquer observador, ainda que eventualmente possam ficar por atingir significações mais profundas, como por exemplo eventuais valores simbólicos que estariam presentes no momento da criação das imagens.  Um exemplo concreto e real poderemos encontrá-lo na chamada pintura rupestre, nas representações de animais que os nossos antepassados nos legaram nas paredes de algumas cavernas. Em qualquer época da vida do homem, as cenas de caça aí representadas, além do valor mágico-religioso que eventualmente poderiam ter e cujo sentido nos escapa, continuam a ter a mesma interpretação, mesmo que a espécie animal representada tenha desapare­cido da superfície do planeta. Ainda que isso tenha ocorrido, poderemos retirar dessa cena a informação de que, nessa época, se utilizavam na caça determinados instrumentos e não outros e que os animais captura­dos eram idênticos aos que foram representados.

O carácter praticamente imutável e em certa medida unívoco do valor semântico da imagem fez com que o homem sempre tenha utilizado esta forma de comunicação através dos tempos. Quando hoje, por exemplo, pensamos que uma forma de comunicação que privilegia a imagem, como é o caso da actual banda desenhada , é uma forma moderna de comunicação, caímos num erro grosseiro, revelador de uma certa falta de conhecimento da evolução cultural do homem. Ao contrário do que poderíamos supor, a "moderna" banda desenhada pouco ou nada tem de moderno, pois até mesmo algumas das técnicas mais recentes foram já utilizadas pelo homem medie­val europeu, que nos legou documentos de rara beleza e com grande quantidade de informação.



[1] - Roland BARTHES, "Réthorique de l'image" in: Communications, n.º 4, Paris, ed. du Seuil, 1964, p. 41

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