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Os mais belos monumentos religiosos do Porto
impõem-se ou pela sua vetustez ou pela sua maravilhosa ornamentação
interior chamada entalha ou simplesmente talha. Sob qualquer dos
aspectos eles são como que verdadeiros marcos históricos fixando a
trajectória moral, política e religiosa da vida citadina.
Grande número de templos possui o Porto. Falaremos apenas dos
principais, daqueles que mais merecem a visita dos nossos hóspedes ou o
carinho e atenção dos apaixonados pela Arte e pela Arqueologia.
Na primeira plana encontra-se, pois, a Catedral, obra
possivelmente
iniciada nos fins do primeiro quartel do século XII. Anteriormente, no
alvorecer da Nacionalidade, a Sé do Porto devia de ser de
minguada traça. Martim Joanes, depoente na Inquirição da Era de 1386,
diz, perante o escrivão André Domingues: «que ouuira dizer que a doaçom
que fora feita aa igreja do porto, que fora feita d'huma hermida que
estaua hu ora esta a See, e huum burgo que hi estaua a par da dita
hermida».
É discutível a intenção e sinceridade dos depoimentos contidos na
referida inquirição régia quanto à finalidade da mesma. Porém, já o
mesmo se não pode presumir quanto a esta interessante e despreconcebida
referência. Portanto, à data em que a viúva do Conde D. Henrique (1120)
couta o burgo do Porto a D. Hugo, o templo de Santa Maria Maior, onde
este famoso antístite pontificava, não excederia, por certo, o âmbito de
modesta ermida.
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O Dr. João de Barros, na sua Geographia Dentre Douro e Minho, segundo o
traslado que o beneditino e portuense ilustre Pereira de Novais diz ter possuído, afirma:
«Esta Se foi começada polla Rainha Dona Thereza,
molher do Conde Dom Enrrique. Depois a Rainha Dona Mafalda, sua nora,
molher do Rei Don Afonso Enrriques, acabou aquella Se, e lhe dotou
muitas rendas, aonde ella tinha singular deuoção, porque achara ali, em
hum siluado, huma formosa imagem de Nossa Senhora que ora
chamam da Silua.»
A corroborar este precioso informe e a velha tradição estão os
primitivos vestígios arquitectónicos do velho monumento. Porém, antes de
os enumerar, para que a história do templo, tão intimamente ligada à da
cidade, melhor se identifique, ouçamos os cronistas do Passado, cuja
probidade se considera inconcussa.
Assim, é ainda o Dr. João de Barros quem, em meados do século XVI, na
citada Geographia, nos
diz que a Sé do Porto «he de abobada mui forte com torres altas que a
cidade tem por diuisa com Nossa Senhora no meio, porque as scripturas
antigas lhe chamam de Santa Maria, tem nobres claustros e he melhor
aposento para o bispo que pode aver em outra parte.»
Pereira de Novais, no seu Episcopológio, descreve-a,
quanto ao seu interior: «es Vna obra de marauillosa architectura a lo antigo, de
Cantaria muy fuerte, de tres naues con sus bobadas, que sustentan
hermosas e gruessas Pilastras, como Colunas Histriadas, de obra de mucha
perfeccion...».
Mas já na época do venerando cronista (fins do século XVII) a igreja se
encontrava muito modificada em sua inicial estrutura. Assim, contra as
Colunas Histriadas (pilares semelhando um feche de colunas) há já
altares particulares que «encubren con sus Retablos mucho de la Perfeccion de dichas Pilastras.»
e «el señor Don fray Gonçalo de Moraes la exclareció màs com algunas Claraboyas, que en ella mandô abrir, para
Entrada del Sol y de la luz, con que quedô màs claro el ambito del
templo, y mucho màs con la nueba fabrica de su Capilla Mayor que hiso el
mismo Senor Obispo...»
Depois descreve-nos assim o exterior: «Tiene dos torres fortissimas y
bien Maçossadas a los lados de la puerta Principal, para que assi
sustentassen la grauedade del Pezo de las Bobadas, a que seruen de
Estribos y Pilares, y, assi mesmo, para el Pezo de las Campanas, que son
Muchas y de agradable Sonido, y, para el Relox, que esta en la
mira el Palacio Episcopal, que assi tanbien es de
sonora Armonia y Zonbido. Y aunque estas torres no estan con Remates a
lo moderno, sino toscos y almenas, son de mucha fortaleza...:». A seguir
diz-nos: «Al lado del norte tiene Vn Alpendre ò Atrio que se sustenta de
Colunas por la parte de las escaleras, que para el suben, en frente de
la Plaçuela del Consistorio o Senado de la Camara, y en el frente de la
Hermita de San Roque, que es del Patrocinio del mesmo Senado, y assi
mesmo tiene y haze frente a la Carçel Episcopal, que llamamos Aljube...
De manera que este Adrio ò Alpendre fué fabrica del Señor obispo Don
Diego de
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7 / Souza, segun diximos en su Vida, y consta de sus armas que estan fixas
en la mesma obra...»
Prosseguindo, fala-nos dum «Claustro antigo de los Naranjos», o que
nos faz visionar um pátio ou claustro das catedrais andaluzas, e
localiza-o (para que se não confunda com o chamado claustro gótico),
quando se refere aos «Nichos y Capillas» existentes em "el exido
(recinto) de los Naranjos, que cai detraz de la Sacristia».
Rebelo da Costa, na sua Descrição da Cidade do Porto, dá-nos uma
narrativa algo pormenorizada sobre a Sé, mas infelizmente numa data já
posterior àquela terrível Sede-vacante que tão bárbara e
inconscientemente mascarara a sua primeira românica estrutura. Uma nota
há, porém, a aproveitar desse relato: «O claustro... he rodeado de
trezentas e quatro columnas de pedra lavrada...»
Outros autores antigos e contemporâneos poderíamos citar para
fundamento de nossa teoria sobre este principal monumento portucalense;
mas talvez nem mais nem melhores elementos nos fornecessem. As primícias
aqui registadas, com o auxílio da Arqueologia, alicerçam já conclusões
edificantes. A interessante obra de restauro a que se está procedendo na
catedral e à qual preside a dedicação e entusiasmo do ilustre arquitecto
Sr. Baltazar da Silva Castro, também nos põe em contacto com indícios
preciosos. É indubitável que a construção deste monumento devia ter
início no primeiro quartel do século XII. Todavia, a sua conclusão só se
poderia ter efectuado muito depois de 1158, isto é, depois da morte de
D. Mafalda.
Admitido como certo o auxílio de D. Teresa para a edificação duma
catedral digna do burgo doado, transportemo-nos àquela época e façamos
por nos integrar nos seus usos e costumes. E, feito isto, teremos de
aceitar, como normal, o excessivo império da mitra; como natural, a
vulgar submissão dos reinantes; como quase obrigatórias, as dádivas para
sustento do prestígio sacerdotal, e, como sinceras e piedosas, as
ofertas para remissão de pecados e salvação das almas. E, depois, além
de tudo isto, de considerar que D. Teresa era mulher, e mulher frágil, a
quem o diabo, na figura do Conde de Trava, tornara pecaminosa...
Mas, no entanto, esta princesa seria libérrima, desbaratada, nas
cedências feitas a D. Hugo? Talvez que não, visto que seu filho, depois
da batalha de S. Mamede, em 1128, não só as confirmou, como as aumentou.
A majestosa obra da catedral devia obrigar a grandes dispêndios, e os
rendimentos das terras coutadas, nessa época, deviam ser diminutos.
Disso é acentuada indicação a extrema pobreza escultórica dos capitéis e
a singeleza dos frisos e das molduras. A ocorrer a esta deficiência
económica surgem por certo as novas doações de 1130 e 1131.
D. Hugo falecera em 1136. Sucedera-lhe D. João Peculiar, que apenas
governara o bispado durante dois anos e meio, e a quem D. Afonso
confirmou todas as doações anteriores e fez nova cedência de prebendas.
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