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ENSOMBRA-SE no labirinto imaginoso da lenda a fundação
da...
... leal cidade donde teve
Origem (como é fama) o nome eterno
De Portugal. . . . . . . .
A acrescer o cultivo das fantasiosas opiniões, desde os
que a quiseram fundada pelos gregos da Trácia aos que levaram o seu
engenhoso dislate a afirmá-la edificada por Noé, veio o pai espiritual
dos cronistas portugueses, Fernão Lopes, acoberto pela sua autoridade
profissional, deslocá-la, com uma simples penada, da margem setentrional
do Douro para a margem oposta, onde, após, durante séculos, grandes
vultos da nossa historiografia supuseram ter sido a velha Caia, Graia ou
Gaia, aquela antiquíssima Cale que, anteposta a denominação
Portus do cais fronteiro, dera origem ao «nome eterno de Portugal».
Despertado, porém, pela mão de Sampaio Bruno, do
letárgico sono em que, durante cerca de três séculos, dormiu, envolvido
na poeira das bibliotecas, o famoso manuscrito Anacrisis Historial
do beneditino Pereira de Novais, a Cale citada no itinerário / 6
/ de Antonino, a marcar o trajecto da estrada de Lisboa a Braga, retoma,
como início de sua verdadeira localização topográfica e histórica, os
pendores ou adjacências do morro da Pena Ventosa.
Da sua longevidade nos falam os velhos historiógrafos.
Assim, a partir do século V, sob o domínio dos suevos e, depois, do dos
visigodos, sente-se-lhe a existência na sua já cintilante designação de
Portucale.
No século VIII, extinta nos campos de Guadalete a
monarquia visigótica, o avanço muçulmano estende-se até à Galiza,
assenhoreando-se do que então seria o Portucale castrum
primitivo.
Os vencidos, completamente destroçados, refugiam-se nas
ásperas e fragosas cercanias das Astúrias, onde, no vale de Covadonga, o
prestígio de Pelaio consegue dar vida a uma nova monarquia que, sob o
balsão da Cruz, há de vir a derrubar, em Granada, o crescente.
maometano.
No século IX, Afonso I o Católico, descendente de
Pelaio, numa mesnada feliz, reconquista para as hostes cristãs aquele
castro ou oppidum, que os sarracenos, em sua linguagem,
corruptamente chamariam Bortkal.
Abderramão, rei de Córdova, manda forças em socorro do
brio agareno, as quais, são rechaçadas por Hermenegildo, a quem Afonso I
confiara a defesa portucalense. A tradição corrobora esta asserção com a
descrição dum sangrento prélio, iniciado num cabeço ainda hoje
denominado Batalha, e desenvolvido ao longo do nascente deste até
Campanhã, onde um riacho, que por ali ondula sinuoso, se colorira de
abundante sangue mouro, pelo que passara a chamar-se Rio Tinto.
Como desforra, o rei cordovês encarrega Almansor de, com um
poderosíssimo exército, aniquilar aquele intrépido baluarte cristão. E
ainda é a tradição que o diz: «não ficou pedra sobre pedra!»
No amontoado informe do arrasado Portucale castrum
pairara então a desolação e o silêncio da morte, até que, pelos fins do
século X ou começos do século XI, aportando à margem direita do Douro
pequena frota cristã sob a égide de Moninho Viegas, Sisnando e Nónego, a
vida colectiva novamente despertaria, entregue à votiva guarda da Virgem
de Vandoma, cuja imagem seria implantada no terreiro de pequena ermida
arvorada em arcediagado e, ao diante, possivelmente, elevada a dignidade
episcopal.
O douto professor Mendes Correia, no seu recente estudo
As Origens da Cidade do Porto, demonstra claramente, à face da
topografia urbana, da arqueologia, da toponímia e de textos históricos,
a insustentabilidade da tese da localização de Cale na margem
oposta àquela em que hoje assenta a segunda capital do País. Mas, além
disso, firmando-se em precioso conteúdo de documentos dos séculos XII ao
XVII, sabiamente estudados, consegue fixar o lugar da origem, isto é, o
sítio que serviu de berço à hoje «mui nobre, leal e invicta cidade».
A Cividade referida nesses documentos não se
alcandorava nas fragas abruptas da Pena Ventosa, onde depois dominou
arrogante aquele D. Hugo astucioso e concupiscente; mas erguia-se sim do
sopé da íngreme ladeira, banhada pelo Rio da Vila, até / 7 / ao
Chão das Eiras, e confinar-se-ia no Cimo de Vila, junto
àquele lugar da Batalha, onde, segundo se diz, os seus indígenas
caíram a fundo sobre a algara islamita.
Este Portucale do século XI, a Cale talvez
pré-romana que o douto professor Mendes Correia reconhece possuir
excelentes condições para uma citânia, deve ser já, provavelmente, a
cividade, vila ou burgo mais tarde talvez conhecido
por Portucale castrum antiquum.
Mas, seria na área ocupada outrora por esta martirizada
citânia ou cividade, sobre aquele montão de ruínas já então cobertas de
emaranhados silvedos, onde apenas, lá no fundo e algo distante, a foz do
rivulum recordaria aos pósteros aquele Portucale, que os
aventureiros gascões assentaram o seu domínio?
O ilustre professor a quem nos vimos referindo, no estudo
atrás nomeado, falando do burgo dos bispos, admite a hipótese de o
núcleo originário do Porto actual se ter deslocado do alto da Pena Ventosa
para o Portucale da Ribeira, passagem esta que nos sugere a ideia
dum fenómeno inverso, apenas aqui esboçado como suposição admissível a
justificar a denominação da cidade.
O lugar da Ribeira, foz do Rio da Vila, devia,
desde tempos remotíssimos, coevos da fundação de Cale, ser o portus
por onde se operava o tráfico fluvial desse povoado primitivo, e de aí
Portus de Cale ou Portus Cale. Desaparecida a povoação
– riscada
do mapa, como hoje se diria, –
subsistiu o Portus; porém o nome daquela que o sacrifício havia
aureolado, estendeu-se ao território da Gallaecia, território que, a
breve trecho, viria a constituir o Condado Portucalense. Portanto, o que
Moninho e sua gente veio encontrar, não foi já o Portus Cale, o
Portucale castrum ou cividade que o Almansor arrasara; mas
simplesmente o Portus de sempre; e, subindo a escarpa que lhe
ficava a cavaleiro, lá no alto daquela penha batida dos ventos,
arvoraria a flâmula da Cruz, anunciando aos povos vizinhos a fundação da
nova Civitas Virginis, que o vulgo, para melhor a localizar
corográfica e geograficamente, passara a denominar simplesmente
– Porto.
De presumir é que os cavaleiros cristãos construíssem a
primeira cinta de muralhas, das quais ainda há cerca de dois decénios se
viam a descoberto interessantes vestígios. Partia essa linha de defesa
da entrada principal – o Arco ou
Porta de Vandoma, – acompanhava
o recorte do talude natural voltado ao Norte até à Porta de S.
Sebastião. De aí, contornando pelo exterior as casas da rua do mesmo
nome e da rua da Pena Ventosa, ia até à Porta de Sant'Ana, onde,
formando quase ângulo recto, passava sobranceira às traseiras das casas
da rua dos Mercadores. Depois, junto ao Seminário e ex-paço episcopal,
fazendo ângulo e cubelo, ia até ao Postigo das Mentiras (hoje
Escadas das Verdades), de onde, entre a actual rua da Catedral e a
extinta Viela dos Cónegos, tinha o seu término na Porta de Vandoma. |