LISBOA condecorada pelos seus filhos de títulos tam afectivos como imaginosos, a que Coelho Gasco chamou Princesa do Mar Oceano, que Herculano denominou de cidade de mármore e granito e que Marinho de Azevedo, na ânsia encomiástica de a tornar émula de Roma, assentou sobre sete colinas, pode suportar sem ridículo esses apodos e pode até, sem vaidade exagerada, usá-los nos convites enviados a todo o mundo para que venham vê-la. É uma povoação que, por ser capital, fatalmente tendendo a cosmopolitizar-se, ainda não perdeu o seu carácter e, apesar de todos os malefícios dos homens, maiores do que os dos anos, consegue guardar um particularismo de feições que é afinal o encanto de todas as cidades.

Quem embarca para ver terras, para correr mundo, vai à procura de quadros e de sensações inéditas, e o que lhes apraz ver e entender são, exactamente, aqueles sítios e aqueles aspectos, trajos, costumes, visões, sóis, climas, paisagens que lhes não são habituais, Para os nórdicos da Europa, para os do novo continente, para viajeiros doutras raças, Lisboa oferece-lhes uma cor, um pitoresco, uma novidade, surpreendentes. O seu encanto está não só no céu que a cobre, na temperatura doce que a envolve, no rio largo e calmo onde ela se mira e se reflecte, senão nas surpresas do seu íntimo, onde se desdobram panoramas de milagre, onde cores vivas de gente e de casarios se harmonizam e onde cenários teatrais se armam a cada instante, / 4 / enquadrando ora entusiasmos, ora melancolias peninsulares.

Os turistas habituados ao modernismo construtivo e topográfico das cidades grandes, mergulhadas em cheio num sonho renovador de uniformismo, afazendo-se já, pouco a pouco, aos burgos lineares, esquadriados, mais matemáticos do que arquitecturais, mais de engenheiros do que de artistas, fatalmente têm de interessar-se e de comover-se perante esta Lisboa, cujas tumultuárias construções se atropelam pitorescamente, denunciando uma velha indisciplina arquitectural, onde há casas de cores gritantes, onde há janelas e trapeiras que são jardins, jardins que são bosques, ruas de estreiteza mourisca, (vistas) de largura prodigiosa, e um gentio saudosista e entusiasta a agitar-se-lhe nas artérias.

Quem disser que Lisboa não é uma cidade de turismo porque ainda não comungou no (uniformismo linear) erra crassamente. É por essa sua resistência à uniformidade banalizante que ela se afirma como uma das cidades mais notáveis e interessantes da Europa do sul.

A larga sequência de fachadas lavradas em modernas ou antigas arquitecturas, não é apanágio de Lisboa, pobre em alinhamentos e perspectivas sumptuosas. Compensa-lhe essa pobreza, determinada pelo relevo do solo, a riqueza teatral dos seus belvederes variados, a variedade espantosa dos seus panoramas. A cidade, de quando em quando, quando menos se espera, às vezes, debruça-se sobre si mesma, abre-se num cenário de maravilha e mostra-se justamente vaidosa da sua surpresa de mágica. Ora expõe a sua Baixa Pombalina, grelha simétrica que as coberturas de telha mourisca orientalizadas nas linhas de arco das mansardas, torna grácil e estranha; ora se desmorona pelas encostas abaixo, os planos confundidos, as empenas entrechocando-se na linha dos telhados, acima dos quais rompem torres e campanis; ora esmalta de jardins sombreados a pintura policroma do seu casario moderno de paredes de cor berrante ou revestida de faiança; ora alastra arvoredos por largas avenidas que dividem bairros pobres e humildes.

Quem seguir a linha de cumeada, sul-norte, desde o Castelo à Penha de França, passando pelo miradoiro da Graça pode, legitimamente, supor que o panorama pouco variará. Puro engano. Cada um destes mirantes tem um panorama diverso, um expondo melhor o rio, outro evidenciando mais o burgo, o terceiro abrangendo mais largamente o arrabalde. Até a luz parece incidir de outra maneira e as superfícies espelhantes das telhas e do azulejo reverberar diversamente. A série dos panoramas que se gozam das cumeadas ocidentais descobrindo a cidade para o nascente, da varanda de S. Pedro de Alcântara, do alto de St.ª Justa e doutros pontos, são da mesma forma, cheios de novidades. As corcovas da cidade guardam surpresas. Do mirante / 5 / poente da praça do Rio do Janeiro, o panorama sobre os outeiros da Estrela, observado ao entardecer quando o sol morre por detrás da Basílica, depois de se terem visto de S. Pedro de Alcântara as vidraças incendiadas, é um deslumbramento. De cada enfiadura de rua surgem, porém, outros, sempre variados, sempre teatrais. Do topo da «Casa da Água», nas Amoreiras, do alto da Penitenciária em que a cidade se avista toda, envolta na moldura verdejante do arrabalde, de St.ª Luzia, de St.º Estêvão, do jardim das Albertas, da Ajuda, seja de onde for, da mais larga janela ou da mais estreita trapeira, Lisboa deixa-se ver, mostrando, também, o seu rio admirável que lhe dá um constante espectáculo de animação e de beleza.

Do Miradoiro de St.ª Luzia, terreiro ajardinado situado sobre um resto da velha muralha goda que defendia a cidade, a que uma «pérgola» dá um aspecto moderno e onde o busto de Castilho, o cantor das belezas lisboetas e da sua história, se destaca entre um fundo de verdura e de azulejos, a vista é empolgante. Os bairros populares, amiudados à roda de St.º Estêvão e de S. Pedro de Alfama, precipitam-se, como a desmoronar-se pela encosta. Dir-se-ia um quadro modernista. As empenas e fachadas onde o branco da cal domina, entrechocam-se e interceptam-se, dando a impressão de obliquidades agressivas. Lá em baixo o Tejo, animado pela faina mercantil dos cais, junto à margem, é cortado, ao largo, no estuário tranquilo do «mar da Palha», pelos latinos vermelhos dos barcos de Alcochete e do Montijo. A silhueta enevoada da Serra da Arrábida forma o fundo do quadro. Do mirante sotoposto ao terreiro, donde emerge a torre da igreja, agora secularizada, de St.ª Luzia, avista-se ainda parte da Lisboa mais oriental, onde avulta a fachada clássica de S. Vicente com as suas torres brancas, elegantíssimas, entre velhos palácios e pequenas casas confundidas.

Da Alameda de São Pedro de Alcântara, já a vista é outra. Quando o sol se levanta detrás das torres da Catedral Lisbonense, ou quando ele morre fazendo da Basílica da Estrela a torre do seu jazigo, todo o casario acumulado nas encostas do monte, do Castelo, da Graça e da Penha de França, ou na falda ocidental do monte de Santana, parece sorrir para nós.

As manchas verdes do arvoredo, as nódoas amarelas dos grandes edifícios públicos que foram antigos conventos – Encarnação, S. José, Rilhafoles –interrompem a sucessão dos telhados e das fachadas, variam o aspecto e interessam os olhos. Uma nesga de rio refresca o panorama.

Do alto do elevador de St.ª Justa, que põe em rápida comunicação a Baixa Pombalina com o monte do Carmo, onde assenta a ruína do vetusto mosteiro fundado pelo condestável D. Nuno Alvares Pereira, avista-se quase todo o esquadriado dos quarteirões edificados pelos engenheiros de Pombal, depois do terramoto de 1755. Tem outro interesse, um interesse diverso, esse panorama. O Rossio, vasta praça onde campeia o monumento ao rei D. Pedro IV, fechado ao norte, pelo Teatro Nacional, é a sala lisboeta, corno o Terreiro do Paço / 6 / (Praça do Comércio) ao sul, é o seu átrio nobre, ambas ligadas pelos corredores comerciais das ruas da «Prata», do «Oiro», e «Augusta», onde as melhores lojas abrem e iluminam as suas montras de luxo.
 

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