Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis. Aveiro, 1ª edição, Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 2000, (Revisão de J. Gonçalves Gaspar), pp. 89-93.


Frei Pantaleão de Aveiro
(séc. XVI-XVII)

Como um dos mais notáveis aveirenses, merecia Frei Pantaleão que se lhe de­dicasse um capítulo especial e este deveria ser longo, se, infelizmente, não houvesse uma grande escassez de notícias a respeito de tal indivíduo, cujo nome foi perpetuado pelo seu Itinerário da Terra Santa.

Não se sabe a data do seu nascimento nem os nomes dos seus progenitores.

Sabe-se, apenas, que professara num dos conventos da Província Franciscana dos Al­garves, mas não será fácil saber-se em que ano.

Foi um frade virtuoso e humilde e sofreu resignadamente todas as contrarieda­des e desgostos, para levar ao fim a empresa que dera origem à obra que o fez notável.

/ pág. 90 / Desde que professara, mostrou sempre grandes desejos de visitar os Lugares Santos da Palestina e procurava ocasião para isso. Em 1563, teve ensejo para facil­mente realizar esses desejos.

Achava-se então em Roma, a serviço da Ordem, para auxiliar o procurador da Santa Sé. Apareceu-lhe o Padre Bonifácio de Araguza, guardião do Monte Sião, e disse-lhe precisar de substituir os frades que, na Terra Santa, haviam concluído o seu triénio, e logo convidou Frei Pantaleão para o acompanhar aos mesmos Lugares. O humilde aveirense gostosamente acedeu ao convite e com o guardião foi despedir-se do papa. Este, que era então Pio IV, deu-lhes a bênção e, após certas recomendações, nomeou Frei Pantaleão confessor apostólico.

Os dois peregrinos saíram logo de Roma e dirigiram-se a Veneza, onde já os esperavam sessenta frades franciscanos, prevenidos para isso e avisados para a mesma jornada. Aí se recolheram à nau, que à Terra Santa devia conduzi-los.

Dirigiram-se à cidade de Trento, onde se celebrava o concílio, que da mesma cidade tomara o nome; aí se detiveram alguns meses, para tratarem de negócios, que diriam respeito aos fins da sua peregrinação. Tornaram a Veneza, donde, por assim ser preciso, se embarcou Frei Pantaleão para Chipre, onde, pouco depois, se lhe juntou Frei Bonifácio de Araguza.

Depois de haver mais de três anos nos Santos Lugares, voltou Frei Pantaleão a Portugal, tratando aqui de escrever a obra, que tanto imortalizou o seu nome.

Para mostrar que o seu espírito só mirava a pátria celeste, nem manifesta as saudades, que tinha do seu país. Contando que, na véspera de S. João, se achava nuns desertos do Egipto, apenas acrescenta que, à noite, ele e seus companheiros fizeram umas fogueiras e, de madrugada, continuaram a sua jornada. E assim festejaram o Santo, que em Portugal, e especialmente na terra de sua naturalidade, era tão ruidosa­mente festejado por todas as classes, especialmente naquela época.

Nas suas viagens, quando não houvesse de ir embarcado, caminhava quase sempre a pé, encostado ao seu bordão e tendo, apenas, por companheiro o breviário, a cruz e as suas contas, que nunca largava, porque, segundo ele mesmo dizia, "as contas, em todo o tempo e lugar, parecem melhor na mão ao cristão, do que as luvas". Cum­pria assim as determinações do Instituto Franciscano e as suas humildes aspirações.

E nos seus escritos mostrou, sempre, humildade, como havia mostrado resigna­ção nas contrariedades e nos trabalhos.

Tendo passado alguns anos, depois de haver chegado à pátria, escreveu o ltine­rario da Terra Santa e suas Particularidades. Dirigido ao illustrissimo e reverendissimo senhor D. Miguel de Castro, dignissimo arcebispo de Lisboa Metropolitana. Esta obra foi impressa no ano de 1593, em casa de Simão Lopes. Além do frontispício, prólogo e ín­dex, consta de 264 folhas, todas numeradas pela frente.

/ pág. 92 / Tem muito merecimento pela boa redacção e estilo e, principalmente, pela ma­neira clara e interessante como o autor descreve as peripécias da sua jornada e os cos­tumes, aspectos e história das localidades por onde teve de passar, ou aonde o levaram a curiosidade e os desejos de instruir-se. Não cansarei a paciência dos leitores, indi­cando as diversas opiniões acerca desse livro, nem as contradições, em que chegavam a cair alguns escritores, aliás graves e eruditos, a respeito das primeiras edições da mesma obra.

O seu autor é tão modesto que, apesar do mérito literário e de boa linguagem em que escrevera, declara no prólogo que tem mais em vista o amor à verdade, do que a boa correcção e apurado estilo.

Em 1596, foi esta obra novamente publicada e impressa por António Álvares. Esta edição tem por título: - ltinerario da Terra Santa e suas Particularidades. Composto por Frei Pantaleão de Aveiro, frade menor da Ordem de S. Francisco, da Observância da Provincia dos Algarves. Dirigido ao Ilustrissimo e Reverendissimo Senhor Dom Mi­guel de Castro, dignissimo Arcebispo de Lisboa Metropolitana. Agora novamente acres­centado com mais declaração dos lugares de Terra Santa, e Autoridades da Sagrada Escritura, e outras curiosidades de notar.

Estas duas primeiras edições do ltinerario existem na Biblioteca Nacional de Lisboa e creio que não diferem muito.

Segundo Manuel Faria e Sousa foi esta obra a primeira que tratou do assunto, indicado pelo título. Rigorosamente não foi a primeira, mas uma das primeiras, e ser­viu de auxílio a outros escritores, que do mesmo assunto se ocuparam.

No ano de 1600, foi publicada uma terceira edição do ltinerario, adicionada e re­vista por Diogo Tavares e Simão Lopes. Consta de 301 folhas, numeradas pela frente.

Em 1685, foi publicada pela quarta vez esta obra, e João Galrão foi o seu impressor.

Em 1721, António Pedroso Galrão, talvez descendente do indivíduo do mesmo apelido, fez uma quinta edição da mesma obra, a qual não é mencionada na Bibliotheca Lusitana, de Diogo Barbosa Machado.

Em 1732, foi publicada esta obra pela sexta vez, contendo, além das folhas, do frontispício e do índex, 527 páginas.

Entre a terceira e a sexta edição, há uma considerável diferença, de modo que os cortes, alterações de parágrafos e transposições de palavras, concorreram para que a de 1732 se tornasse inferior à de 1600.(1)

/ pág. 93 / Devido à obsequiosidade de uma senhora brasileira, possuo um exemplar desta obra. Infelizmente faltam-lhe algumas folhas e já não tem frontispício nem prólogo. Vê-se, no entanto, que além deles, tem mais de 336 folhas, todas numeradas pela frente e a última é cercada de vinhetas.

Nela diz o autor que oferece a sua obra a todos os que visitarem aqueles Santos Lugares e pede que a emendem, onde acharem erros, não com espírito de contradição e de ignorância, mas com aquele amor e caridade, com que nos manda Jesus Cristo, Nossa Luz, Suma Bondade, olhar e julgar as coisas do próximo. Este salutar conselho na apreciação das obras literárias bom era que fosse seguido por muitos críticos.

Frei Pantaleão acaba o seu livro, «submetendo-o à correcção da Santa Madre Igreja e à das pessoas que, por suas virtudes e ciência, têm autoridade para isso.» E despede-se dos leitores dizendo: «— Valete in Domino.»

Em seguida, há três folhas com a Tavoada [Tabuada] dos Capítulos, rematada por uns emblemas fúnebres. Depois vê-se numa folha uma estampa de S. Pedro, após­tolo, e no verso uma coroa de espinhos com um cravo no centro. Tem mais três folhas com um Índex, que mostra as coisas particulares, que se contem no ltinerario. E, no fim das tabuadas, encontra-se uma estampa de Santa Bárbara.

Frei Pantaleão começa o seu ltinerario, descrevendo a cidade de Veneza e desde a ocasião, em que aí se embarcara para a sua primeira viagem.

De nada se queixa, senão de uma pequena afronta, que lhe fizera um mouro rústico, todo esfarrapado, que o encontrara voltando do Monte Olivete. O mouro pu­xou-lhe pelas barbas, que então eram grandes e à moda dos homens daqueles sítios. Chamou-lhe Cacis. E foi a maior afronta que Frei Pantaleão sofrera e que suportou re­signadamente, não só por se lembrar que ali se fazem piores tratos aos cristãos, mas também por se lembrar do sítio, o que tudo agradecia ao Senhor. Isto se lê a folhas 132 verso do ltinerario, que possuo.

Todas as edições desta obra foram impressas em Lisboa.

Segundo vi num anúncio, também na mesma cidade e na Tipografia do Panorama, deveria, em 1866, imprimir-se a mesma obra por conta da "Empresa para a Reproducção dos Livros Clássicos Portugueses". Não sei se essa publicação chegou a efectuar-se.

Frei Pantaleão de Aveiro também deixou uma obra, intitulada Louvores de S. João, que nunca chegou a imprimir-se.

Assim como não se sabem outros factos importantes da vida deste aveirense, também não se sabe quando nem onde falecera.

São muitas as obras espanholas e portuguesas, que a ele fazem referência; entre as quais se podem notar o tomo II (páginas 124) da Biblioteca Hespañola, o Teatro Lusitanico-literário (parte primeira), e outras referidas pelo Abade de Sever na sua Bibliotheca Lusitana, onde o nome de Frei Pantaleão de Aveiro figura entre os principais escritores portugueses.

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(1) - Em 1927, em Coimbra foi publicada mais uma edição do Itinerário da Terra Santa e suas Particularidades. Também o Dr. Fernando de Campos, em 1986, editou o romance histórico, da sua autoria, a que deu o título A Casa do Pó, com base no mesmo livro de Frei Pantaleão de Aveiro.


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