Foi, exactamente em 29 de Novembro de
1874, que, em Avanca, veio ao mundo António Caetano de Abreu Freire
Egas Moniz e, foi entre Avanca e Pardilhó, que decorreu a sua
infância.
Não creio que nascer vincule alguém ao
lugar geográfico onde nasceu se a vivência posterior não vier nutrir
de seiva as raízes; mas, e ao contrário, julgo que o desabrochar da infância
cria ligações indeléveis e com vincos tão fundos que, mesmo quando
aparecem esfumadas na bruma da distância espacial e temporal, marcam e
vinculam a actividade, a conduta e as atitudes do homem. Há
reminiscências que dão tónus a idade adulta, que,
aquecem na anciania e que acompanham na velhice – sobretudo nestas
duas épocas. da vida em que o homem faz incursões retrospectivas para
encontrar companhia que o defenda do desencanto e da solidão.
........................................................................................................................................................................
Certo é que a razão
da nossa presença aqui, e longe de postergar o homem na sua
humanidade, visa, sobretudo, o sábio, o professor e o académico, sem
deixarmos de ser tentados, ao encarar este poliedro de virtualidades,
a verificar que estamos, acima de tudo, na presença de um homem; de um
homem que, longe de monoteísmos restritivos que lhe vinculassem a
pupila ao campo que lhe levava uma ocular, revelou sempre apetências
para tudo o que à condição humana dizia respeito. E isto sem deixarmos
de sublinhar aquilo que o fez galgar as fronteiras das nações até
culminar na glória do Prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia.
........................................................................................................................................................................
Dizer que Egas Moniz
foi um grande escritor seria um exagero que a sua glória dispensa,
perfeitamente. Mas foi, isso sim, um escritor de estilo desataviado e
correcto, limpo e escorreito; e tão transparente e comunicante que me
sinto tentado a apodá-lo de verdadeiramente didáctico – estilo saído
da mão do professor fiel ao ensino. E, para além disso, a sua
actividade de servo das letras sempre que tinha de abordar o ensaio, a
biografia, a investi da nos domínios da estética, robustecia-se de tal
objectividade e era tão probo na procura e na selecção das fontes
informativas, tão escrupuloso no descobrimento dos contributos, que
não deixava o indício de uma fissura onde as verrumas da crítica
erudita pudessem penetrar à cata de minudências e frioleiras.
Estou a lembrar-me,
ao escrever estas palavras que tentam ilustrar a asserção anterior,
dos seus ensaios sobre os "Médicos no teatro vicentino" , sobre os
"Pintores da Loucura", do seu "Júlio Dinis e a sua obra" e das suas
excelentes biografias de "Petrus Hispanus" (João XXI), "Ricardo
Jorge", "Babinski", etc., etc.
Quando em 1891 chega
a Coimbra para se matricular nos preparatórios médicos, foi topar com
uma Universidade velha na sua estrutura e apegada a conceitos e
métodos de um tradicionalismo rotineiro que se moviam entre um
armazenamento erudito e entulhante e as subtilezas especiosas de uma
dialéctica que rescendia a escolástica. E viu-se, assim, de infusão
num ensino livresco que, espremendo as virtualidades da memória até a
exaustão, era profuso de citações remissivas de uma ciência
constituída e completamente exilado das coordenadas que, ao tempo, por
essa Europa fora, começavam a rasgar avenidas largas e arejadas, que
desembocavam na fecundidade da experimentação e no terreiro limpo da
originalidade.
Certo é que alguns
professores começavam a fazer saliência na chateza monocórdica da
fileira da maioria como eram, por exemplo, os casos de um Basílio
Freire, notável morfologista e projectivo professor de Anatomia, de um
Filomeno da Câmara, agudíssimo Mestre de fisiologia e espírito aberto
a todas as rotas da cultura, de um Augusto Rocha, mentalidade arrojada
e homem progressivo apenas diminuído por. um temperamento marcadamente
acético e polemizante que abria clareiras à sua roda.
Mas estas saliências
pontiagudas não eram suficientes para modificar a tónica rançosa que a
maioria catedrática imprimia ao ensino e para vencer a inércia de uma
instituição que parecia ainda presa, por um cordão umbilical, robusto
e bem irrigado, ao estatuto pombalino que, tendo surgido pletórico de
novidade, se tinha deixado, como não podia deixar de ser, senilizar ao
contacto do rompante experimentalista e positivista do século XIX que
sorvia, a largos haustos, de outras nascentes e se aquecia ao cerne
incandescente de outras fogueiras.
Verdade seja que, e
em contraposição, na massa estudantil levedavam, exuberantemente,
ideias progressivas que se faziam exprimir em todos os sectores do
pensamento e da cultura.
........................................................................................................................................................................
Parece que razão terá
Miguel Torga quando escreve que "não tendo capacidade formativa, a
Universidade desperta, por isso mesmo, uma premente necessidade de
reacção"; e, por esse motivo, conclui o poeta, "é negativamente que
acaba por fazer chispar a centelha criadora em todos aqueles que por
ela passaram, e, desiludidos, a abandonam ou guerreiam".
Pois contra o
tradicionalismo narcotizante do comentarismo de cariz escolástico;
contra a ruminação de ideias feitas e, tantas vezes, fossilizadas, a
juventude vira-se, ansiosa, para o raciocínio experimental teorizado
por Claude Bernard, para a positividade da Ciência que sorvia o leite
nutritivo do positivismo de Comte e de Littré de que eram ardentes
paladinos, em Portugal, um Teófilo e um Júlio de Matos.
E é neste caldo de
cultura em que se chocavam atitudes tão dissemelhantes que o espírito
inquieto e interrogativo de Egas Moniz medra e se desenvolve, sôfrego
da luz da novidade e desejoso de calcorrear caminhos de "pé posto" nas
rotas científicas; e no banho-maria emoliente da ambiência escolar em
que está incorporado que tem de fazer o seu curso que viria a terminar
em 1899, logo seguido da via sacra das provas de licenciatura e do
acto de conclusões magnas que lhe deu o doutoramento de Borla e Capelo
com uma dissertação sobre "Vida Sexual" que é de presumir tenha
desencadeado zonas pruriginosas de pele de galinha no puritanismo
universitário coimbrão e que viria a conquistar vários andares
culturais de leitores durante muitos anos após a sua defesa perante a
solenidade do júri.
Em 1903, deixando
quente a sua poltrona de deputado progressista, numa Câmara em que se
encontrou com Afonso Costa, Paulo Falcão e Xavier Esteves – os três
deputados republicanos que o Porto conseguira levar ao Parlamento –
Egas Moniz faz as suas provas de concurso refrescando, com a sua
entrada, o corpo docente da Faculdade de Medicina de Coimbra; e, a
seguir, durante oito anos consecutivos, reparte-se entre o magistério
na Universidade e o consultório que, entretanto, abre em Lisboa de
companhia com Zeferino Falcão, notável dermatologista e leprólogo.
Assim, multiplicando
actividades, permanece até 1911, ano em que, coma criação da
Universidade de Lisboa, para ali é transferido sendo-lhe confiada a
cátedra de Neurologia.
Foram oito anos de
grande tensão e actividades espasmódicas. A propaganda republicana
atingia então, o paroxismo. Falhada a tentativa do "31 de Janeiro",
refizeram-se as hostes para prosseguir na batalha até que, em 1910 o
trono secular caía em frente da pertinácia de uma geração vertebrada
por um idealismo que não sabia o que era desânimo e renúncia.
E onde, e como, se
fez neurologista Egas Moniz?
Em Portugal, é que
não podia ser, dado que a neurologia coçava, então, as gengivas com os
acidentes da primeira dentição.
........................................................................................................................................................................
Que restava, pois, a
Egas Moniz, há muito interessado pelos motivos neurológicos, senão
galgar os Pirinéus, não para ouvir a palavra do mestre venerado que se
havia afundado, já, no silêncio do túmulo, mas para sorver da escola
que o génio tinha deixado atrás de si, o muito que ficou para
continuar?
Mentalidade
sistemática, prospectiva, paciente e tenaz, vence legítimas
sofreguidões para se demorar em Bordéus a aproveitar o contacto seguro
de Pitres, em neurologia, e para ouvir a prédica de Régis em
psiquiatria, fazendo uma aprendizagem que lhe robusteceu a crença
organicista que, sempre, lhe serviu para fundamentar as perturbações
da esfera psíquica e que, muito mais tarde, veio a estar na base das
suas investi das nos domínios do desconhecido.
São suas estas
palavras:
"As causas orgânicas
das psicoses avultaram, sempre, no meu espírito. O cérebro não podia
estar são desde que a mentalidade estivesse perturbada; se as causas
nos escapavam não era sinal de que não existiam."
E, parece fora de
dúvida que, só firmada nesta crença firme e neurologizante das
psicoses, poderia ter chegado a concepção de uma psicocirurgia que lhe
viria a abrir as portas de acesso ao Prémio Nobel da Medicina e
Fisiologia.
Acalmada, porém, a
primeira secura nos contactos de Bordéus, logo salta a Paris onde, em
contacto com Pierre Marie, Déjerine e Babinsky (de quem ficará amigo
pela vida fora) completa a sua formação de neurologista – do
neurologista que tanto haveria de dar que falar de si pelos tempos
fora...
Ali, e para além do
treino metódico na observação do doente dentro de uma disciplina
rigorosíssima na colheita dos sintomas clínicos, habitua o seu
espírito ao apelo, quase imperativo, à colaboração do laboratório,
designadamente, do laboratório de histopatologia, incorporando-se numa
regulamentação mental que lhe deixará na mão, para o resto da vida, a
ferramenta com que desbravará os caminhos que a sua actividade de
investigador insatisfeito viria a trilhar com passos firmes e seguros.
........................................................................................................................................................................
Não foi minha
intenção trazer para aqui um trabalho de minudências e de exegese
científica mas, tão-somente e em consonância com a modéstia das minhas
aptidões, tentar uma visão panorâmica de uma personalidade onde,
avultando, embora, uma zona nuclear mais significativa, se exprime em
linguagens de espectro variado, percorre caminhos de sentidos
diferentes e visa metas localizadas em todos os pontos cardeais
localizadas no entendimento humano.
E é assim que,
durante certo tempo da sua vida, a política lhe atrai as atenções e
lhe solicita a adesão, separando-o da sua actividade científica sem
que tenha, é certo, conseguido apagar-lhe a luzinha votiva que
consagra a sua vida clínica e docente.
Desde os vinte e
cinco anos que o seu temperamento irrequieto e aberto aos vendavais
que varriam, de lés a lés, o país político e social, se mostrou
intervencionista, quer ocupando a sua cadeira de deputado e
revelando-se orador parlamentar de fôlego, quer realizando uma efémera
tarefa diplomática na corte de Madrid, quer sobraçando a pasta dos
Negócios Estrangeiros, quer presidindo a Delegação Portuguesa à
Conferência da Paz quer, estendendo o corpo numa tarimba de preso
político. E, em todos os cargos por onde passou, deixou bem marcado o
traço incisivo da sua personalidade e se revelou democrata convicto e
fiel aos caminhos arejados da liberdade do espírito. E, se e certo que
essas actividades lhe fizeram abrir a mão do martelo de reflexos e o
afastaram do contacto da enfermaria, não conseguiram matar nele, e,
nem sequer esbaterlha no espírito, a fidelidade a sua actividade
medular de médico.
Assim, e, em grande
parte por virtude desta dispersão, é, só quinquagenário, com 53 anos,
precisamente, que, em 1927, revelará a sua descoberta – decisiva
descoberta para a iluminação de certos problemas neurológicos e que
lhe projectaria o nome para além das fronteiras, com difusão
universal: a angiografia cerebral.
E terão de ser as
costas largas da política a suportar a carga das responsabilidades da
época, aparentemente tardia, em que se agiganta a sua capacidade de
engenho e de investigação?
........................................................................................................................................................................
De qualquer modo, e
sejam quais forem as causas e as determinantes circunstanciais, é
nesta altura da sua vida, quando a sua maturidade mental estava
perfeitamente sazonada por uma experiência e por uma cultura
meticulosa, que o mestre rompe a restrição das raias da sua Pátria e a
confinação. determinada pela sua condição de professor, embora
distinto, de uma Universidade portuguesa, para atingir os domínios de
uma audiência universal.
"Se fosse possível,
escreve Egas Moniz, registar nos filmes radiográficos a imagem dos
vasos sanguíneos intra-craneanos, seria possível, pelas suas
deslocações, alterações de forma ou anomalias de constituição,
diagnosticar, com precisão, a localização e, possivelmente, a natureza
dos tumores e de outras lesões cerebrais".
E é desta hipótese
inicial que formula, judiciosamente, que parte todo um caminho de
problematização minuciosa antes de chegar a investigação dentro de
coordenadas operacionais.
Estando, embora,
implícita na formulação da hipótese a fecundidade que a
problematização confirmava, impunha-se, para a sua demonstração um
trabalho intensivo de experimentação antes de a trazer ao pragmatismo
da clínica e ao usufruto do doente.
A experimentação nas
ciências médicas é pautada por algumas barreiras intransponíveis
erguidas pela mão selectiva da Ética e pelo respeito pela condição
humana. À frente do arrojo das hipóteses, os valores vitais levantam
uma estacaria de objecções que retêm a imaginação médica em respeito
frente à vida humana, frenando rigorosamente, as tentações de aventura
em chão desconhecido.
........................................................................................................................................................................
Extraordinariamente
meticuloso e escrupulosamente fiel à rigidez das normas prescritas
pela Ética mais escorreita, Egas Moniz mede os seus passos
milimetricamente e sonda, com minúcias de explorador, o terreno que
vai pisar.
........................................................................................................................................................................
Diz o prof. Almeida
Lima:
"Entre os estudos da
opacidade das várias drogas e a obtenção da primeira angiografia
cerebral intercalou-se um período de experimentação em mimais e em
cadáveres humanos durante o qual foi posto à prova o engenho, a
persistência e o incansável entusiasmo do mestre.
Por outro lado, a
nossa aflitiva indigência de condições materiais obrigou a um sem
número de improvisações e eriçou de dificuldades, de toda a ordem, as
tentativas que se iam realizando; desde o decepar dos cadáveres no
Instituto de Anatomia Humana, ao transporte das cabeças decepadas e
embrulhadas em serapilheiras para os serviços de radiologia do
Hospital de Santa Maria, até às experiências no animal de laboratório
realizadas no Instituto de Rocha Cabral com pavorosa carência de
pessoal técnico e utensílios apropriados, tudo teve de ser superado e
vencido à custa de uma pertinácia que batia nas fronteiras da
obstinação.
E, desde a primeira
experiência dos tubinhos de borracha cheios de brometos e
radiografadas através de um hemicrâneo para indagar da opacidade das
substâncias que viriam a servir de contraste para visualizar as
artérias, até às primeiras tentativas no vivo – a que nem, sequer,
faltou um acidente fatal a deixar uma pincelada negra de desânimo –,
tudo foi conseguido ao revés de um condicionalismo verdadeiramente
narcotizante."
........................................................................................................................................................................
... Vencida a crise e
a tempestade dialéctica que desencadeou, e, depois de ouvida a opinião
de vários colegas que reúne à sua volta e que, unanimemente, lhe dão
estímulo para prosseguir, retoma, decididamente, as investigações que
vieram a culminar com a primeira angiografia cerebral, em que as
artérias apareciam nitidamente visualizadas, em 28 de Junho de 1927.
Realizado o que, Egas
Moniz, transpõe as fronteiras para ir comunicar a sua descoberta à
Sociedade de Neurologia de Paris, em vez de tentar investir, na sua
Pátria, com o cepticismo perro dos arquiatras que lhe iriam semear o
caminho das mais especiosas restrições e com a indiferença oficial que
lhe abafaria os triunfos debaixo de um glaciar de silêncio.
Poucos dias após a
memorável comunicação, realiza uma conferência na Academia de Medicina
da capital francesa sob a presidência de Charles Richet e, logo a
seguir, e a convite de Guillan, profere uma lição na Faculdade de
Medicina em que recebeu a honra, que tanto o tocou na sua
sensibilidade vibrátil e fiel aos valores do espírito, de falar da
cátedra de Charcot, na Salpétrière.
Era a consagração! A
consagração que, um pouco mais tarde, havia de vir a ser corroborada
pela atribuição do prestigiado prémio (Oslo) que, pela primeira vez na
sua história, era concedido a um cientista estrangeiro.
Mas o triunfo obtido
com a angiografia cerebral não foi almofada a que se encostasse na
serena colheita das honras e, pelo contrário, longe de conduzir Egas
Moniz a uma jubilação acomodada na glória conseguida, teve o condão de
lhe temperar a mola criadora.
Firmado, como já
atrás se deixou patente, num incompressível critério organicista que
foi uma constante em toda a sua trajectória médica, seguramente
convicto na crença de uma psiquiatria neurologizante, Egas Moniz dá
consigo a congeminar na possibilidade de, por meio do ferro cirúrgico,
intervir sobre o cérebro com o fito de conseguir curar ou, pelos
menos, melhorar o prognóstico de certas psicoses.
Dez anos decorrem
entre a angiografia cerebral e a realização da primeira leucotomia
pré-frontal e é, durante estes dois lustros, que a ideia vai sazonando
no seu espírito ao mesmo tempo que estuda o problema, quer ao contacto
de livros e revistas, quer observando os comportamentos dos operados
de tumores cerebrais do seu serviço.
........................................................................................................................................................................
Suponho que deixar
marcado que a arrojada intervenção foi acolhida estimulante para a
ânsia de prosseguir no afã de trazer à Ciência novas veredas e novos
caminhos no rumo de aliviar a (rua da amargura) do sofrimento humano
em todo o mundo com crepitante curiosidade e que variadíssimos
clínicos e neurocirurgiões a levaram a prática, ajuntando que, também,
à sua roda se estabeleceram as mais vivas controvérsias mas que, e
apesar de tudo, o Prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia foi
atribuído ao sábio português com base nesse trabalho, será mais do que
suficiente para deixar, expressivamente, patenteada a marca do génio
que está na sua origem.
Realmente, desde o entusiasmo mais
expressivo que se verificou nos Estados Unidos da América do Norte,
sobretudo encabeçado pelo professor Walter Freeman, até à interdição
total da intervenção em todo o território da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, muitas gradações se poderiam anotar, de entre as
quais a do Vaticano que, se bem que opondo certos poréns
frenadores a prática da leucotomia na medida em que intervém na
personalidade do doente, não condena o seu uso, nem deixa cair anátemas sobre os seus
resultados.
Uma tempestade
dialéctica com origens em
vários quadrantes do saber humano se desencadeou sobre o novo processo
intervencionista na evolução de certas psicoses. E, desde motivações
sacadas no terreno da neurofisiologia, afundamentos
vertebrados de razões filosóficas, e, até, de objecções erguidas pelas éticas e nutridas pelo pensamento
religioso, toda a gama de argumentos, pró e contra, se entrechocaram no
sentido do esclarecimento da delimitação do espaço que era legítimo
deixar disponível para a prática do inovador processo terapêutico.
O certo, apesar de tudo, é que sejam
quais forem as restrições que se levantarem ou venham a levantar, julgo que ficaremos com motivo
suficiente (e mais do que suficiente) para acompanharmos este juízo projectivo de Almeida Lima:
"...se chegar um dia em que não se
executem já leucotomias cerebrais, a influência da descoberta de Egas
Moniz permanecerá, porém. Continuará a influir no pensamento
psiquiátrico, nas concepções filosóficas e na orientação dos
neurofisiologistas."
Também eu creio que, concepções mesmo no
momento em que o leucótomo resvale da mão da cirurgia para a vitrina do
museu, as aquisições trazidas pela leucotomia permanecerão, não apenas na História da Medicina como ideias
cadavéricas e mumificadas, mas como um momento alto da evolução das
ciências médicas que iluminou saguões da luz indecisa e desanuviou
algumas brumas que toldavam o problema da correlação cérebro-espírito.
........................................................................................................................................................................
As sua antecipações começaram por
embater no pirronismo sistemático de certa "invidia
medicorum" e, algumas vezes, até, foram molhadas com a peçonha do "odium
medicorum". A isso se juntaram os rancores levantados na sua
rota pela saliva viscosa de uma politiquice que cultivava um
nacionalismo com musgo e que a não deixava ver os méritos presentâneos
senão através de distorções sectárias. E foi com base nesse nacionalismo
arcaizante de meirinhos e almoxarifes que um corifeu da seita ousou, com o
aplauso frenético, até, dos governantes, apodar o Prémio Nobel que o
enobreceu de "um meio bilhete premiado da lotaria!"
E não apenas isso: um dia levou mais
longe o ímpeto conspurcante encarregando um decuriãozote de pacotilha da
guarda pretoriana do cesarismo então imperante, sendo Egas Moniz
director da Faculdade de Medicina de Lisboa, de lhe falar de mãos nos
bolsos e em linguagem grossa de viela, antes de o conduzir, sob prisão, à
cadeia do Limoeiro! À cadeia do Limoeiro onde os novos Pina
Maniques continuavam a guardar, ciosamente, a
tradição do sinistro lntendente da Polícia!...
Um professor de Letras, abordado um dia
por um jovem licenciando que queria tratar, na sua dissertação de
licenciatura, de um escritor ainda vivo, respondeu-lhe, todo seguro de
sua borla e seu capelo:
"– É cedo. Espere, pelo
menos, que ele morra." .
Frederico de Moura
|