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Sérgio Paulo Silva, Memórias da Feira de St.º Amaro, 2ª ed., Estarreja, C. M. Estarreja, 2008, 84 págs.

O Tacho de Rojões

Madrinha, era como eu chamava à madrasta de meu pai, Benedita Bandeira, segunda mulher do meu avô Raul. Em casa, quando tinha que a nomear, madrinha velha. Assim a distinguia de quem eu sabia ser a minha madrinha de baptismo: Efigénia Patinha. Madrinha porque a palavra madrasta me foi sempre detestável e ser-me-ia insuportável porque a via como um pouco da mãe que o meu pai não teve, e como minha avó. Tantos anos depois tenho imensa pena que ninguém tivesse ensinado a criança que eu era a tratá-la por avó Benedita. Porque ela o merecia. E eu também.

Convivi com ela muito da minha infância e da minha juventude. Num dos dias que passei por casa dela, a Madrinha (sei lá hoje porque carga de água) contou-me que minhas tias, depois da morte de meu avô, tinham levado cada uma o seu tacho de rojões. Sobrou um terceiro que, contas feitas, seria o que caberia de herança a meu pai. Só que não podiam ser essas as contas porque aquele tacho sobrante não era da casa, mas dela e ela já o tinha dado a uma sua amiga, Nita ou Anita de seu nome, que eu conhecia bem das visitas que fazia à minha madrinha velha.

E contou-me então a história do tacho de cobre. Num qualquer ano o meu avô tivera num dos currais um porco de ceva avariado. Não sei porquê. Talvez mal rubro. Meu avô quis abater o animal e enterrá-lo, mas minha madrinha opôs-se, deu-se à canseira de esfregar com vinagre (é esse pormenor que me leva a pensar que fosse mal rubro a avaria) o animal e fez questão de o levar à feira de Santo Amaro. E contra todas as expectativas do meu avô, o porco foi vendido. Meu avô, quando minha madrinha chegou a casa sem porco mas com dinheiro, ter-lhe-á dito que não queria um tostão e que ela comprasse o que quisessem com o dinheiro de tal negócio. E o dinheiro foi convertido, na feira seguinte, no tal tacho. Daí ela entender que era dela, só dela e que o oferecia a quem bem queria. Passaram alguns anos. Muito idosa a madrinha Benedita faleceu. Minha mãe sabia da história e não me causou nenhum espanto quando, depois do funeral minha mãe me convocou para ir buscar o tacho e ir com ela entregá­-lo à D. Anita, a velha amiga da madrinha velha. Lá fomos. Ficamos sem o tacho. A tal Anita impressionou-se um bocado. Depois passou o tempo. Há muito já que também ela faleceu.

Que será feito do tacho? Que sala enfeitará? Saberão os seus actuais proprietários que o tacho / 38 / tem uma história calada, uma história entre milhares de estórias (escrevamos agora assim para estar mais de acordo) que se geraram à sombra da velha feira de Santo Amaro? E mesmo que ninguém o saiba, no seu fulgor dourado não perdurará apenas o calor das achas brandas que o animaram mas também um pouco da nobreza da minha mãe.

S. P. S., Crónica publicada no J. E.

 
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