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Sérgio Paulo Silva, Memórias da Feira de St.º Amaro, 2ª ed., Estarreja, C. M. Estarreja, 2008, 84 págs.

CRÓNICA DA CADEIA VELHA

Um dia destes passei por casa do meu amigo António Augusto para dar um bocado ao serrote. Lá fomos bebericando, tirando as cerejas da cesta e, no cacho, conta-me ele que tinha localizado em Lisboa um documento em que Sua Majestade o Rei D. João (ou seria a Rainha D. Maria?) autorizava os presos da cadeia de Estarreja a assistirem à missa na capela de St.º António.

Este piedoso acto da nossa Nobreza trouxe-me à memória uma história engraçada que colhi em qualquer árvore quando andei a fazer o livro da feira de St.º Amaro.

Sim, havia uma cadeia em Estarreja. Foi demolida no início dos anos cinquenta, dizem­-me. E mais me contaram, que ficava onde hoje é a esplanada do Bar da Tomázia, por aí, onde depois se fez a praça do peixe. Talvez alguém conserve alguma imagem antiga e um dia nos mostre. Bom, se os presos eram autorizados a irem à missa, é porque a cadeia tinha hóspedes.

De uns sei eu que por lá pouco se demoravam, os carteiristas que caíam no laço.

Entretanto é bom que as pessoas tenham presente que por esses tempos não havia cartões de crédito e cheques também não me consta que fosse coisa conhecida das nossas gentes. O povo era analfabeto, ou quase, e o dinheiro guardava-se debaixo do colchão, em panelas ou onde o diabo não soubesse. E esses eram os anos em que a feira de St.º Amaro tinha fama de muitas léguas em redor e o seu valor era tanto que ditava os preços dos gados. Quem demandava a feira ou ia com os bolsos recheados de dinheiro vivo ou regressava a casa com a carteira gorda. Os carteiristas que apareciam pela nossa querida feira tinham abundância de caça. O pior é que o diabo tem a tal capa que às vezes se destapa e, volta e meia, lá apanhavam algum artista com a boca na botija indo o Fabiano parar à tal cadeia.

Havia então um Administrador do Concelho que entendia não dever gastar o erário público com tais clientes. Chamava-os a juízo passando-lhes um valente sermão e, fazendo­-os prometer que não reincidiriam, soltava-os.

Só que os nossos amigos apenas podiam sair da vila indo para baixo, afunilados, ou subindo à praça e, fossem para um lado ou para outro, tinham sempre uma pequena / 36 / assembleia à sua espera que os sovava valentemente.

Não havia nesse tempo cartões de crédito mas também não havia telemóveis. Contudo as notícias circularam rapidamente entre oficiais do mesmo ofício e enquanto o tal Administrador do Concelho esteve ao serviço, a feira respirou de alívio e as pessoas andavam mais despreocupadas...

Perante a notícia do António Augusto, foi isto que me veio à lembrança. E não me custa muito a crer que, já naquele tempo, os presos a caminho da missa tivessem os olhos bem abertos para a paisagem e, já no interior da capela, estivessem mais atentos aos circundantes que às imagens dos altares. Cá por coisas.

S. P. S., Crónica publicada no J. E.

 
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