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Sérgio Paulo Silva, Memórias da Feira de St.º Amaro, 2ª ed., Estarreja, C. M. Estarreja, 2008, 84 págs.

Uma carta esclarecedora

Estarreja, 23 de Agosto de 1922

...Snr. Director d«O Concelho de Estarreja»

 

Fazendo parte da vereação municipal desde concelho, sou o vogal mais visado como presidente que também sou da sua comissão executiva, na campanha ad hoc levantada com fins do próximo acto eleitoral.

Nenhum dos vereadores é empregado da câmara nem funcionário publico, e por isso em situação de inferioridade aos autores de tal campanha, para dispor de tempo pago pelo município ou pelo Estado para defesas pormenorizadas. A vida está cara, e quem não é empregado publico não pode desperdiçar tempo, que o tempo é dinheiro.

Mas resolveu se esclarecer o publico com a intuição da verdade e a lógica do bom senso em resumo das notas, redigidas terra a terra, ao alcance de todas as compreensões, das quais procuraremos desempenhar nos em correspondência oficial para os três jornais do concelho.

Fala se contra os empregados da Câmara, menos contra os da Secretaria. A campanha é destes, e é natural que falem de todos, menos de si.

Os empregados do ad valorem, serviço escabrosíssimo, são apenas três; um para a estação de Avanca com 45 escudos de ordenado e 8 % sobre a cobrança; outro para serviço da sede do concelho com 80 escudos e 8 % sobre a cobrança; e outro do escritório junto á estação da vila com 60 escudos. Não ganha tão pouco o mais fraco jornaleiro rural!

Os empregados da secretaria são cinco: um secretario com 193 escudos: dois amanuenses com 160 escudos. Isto fora as mais alcavalas. Um contínuo e zelador com 125 escudos, ou seja o pessoal menor da secretaria, eram os únicos escalados por esta para serviço da cobrança da Praça aos domingos, e da feira dos 15 de cada mês. Toda a cobrança reduzia se ao que estes dois pobres homens podiam juntar, apanha aqui agarra acolá, e era a que entrava nos cofres da câmara.

Os outros nem a faziam nem a auxiliavam. Declaravam e declaram que tal serviço era incompatível com a categoria dos seus lugares e que a lei não lhes marcava tais obrigações.

Contudo a secretaria mantém-se fechada aos dias de feira, porque dantes todos os empregados iam prestar o serviço ás feiras. Hoje não prestam esses serviços mas gozam / 18 / a regalia do feriado para manter esta sagrada tradição da soberania municipal. Não há cadastro de feira, não se sabe quem são os donos de barracas, paga quem quer, quem não quer não paga. Uma incúria, um desleixo criminoso, de que só a secretaria é responsável.

Como fiscalizar a arrecadação das receitas sem uma escrituração bem metodizada e cuidada organização, se zelo nem atenção nunca foram dispensados a tal ramo de serviços?

Em 1920 organizou-se o serviço de cobrança do imposto sobre carnes de porco, o qual se cometeu a um empregado de secretaria com 10 % de percentagem, para se decidir a faze-lo. Apesar de se limitar a comezinhas avenças, já hoje rende 500 escudos. Mas, tendo se em consideração que a matança para consumo publico é superior a 2.000 porcos com a média de 6 arrobas de peso, e a 0,015 por quilo, podia este imposto sobre uma carne verde de luxo elevar-se a contos.

A secretaria não dava um passo no sentido de aumento e arrecadação de receitas. Esse serviço representava trabalho, e trabalhos ninguém os deseja. O brio de funções nem sempre anda associado ao desempenho das mesmas.

Mas a situação de aumento constante de despesas e as receitas sempre as mesmas, não podia aguentar-se.

Tomava-se urgente uma organização condigna. Como faze-la se não era possível contar com elementos da secretaria? Recorrer a estranhos. Foi daqui que se fizeram as experiências com o snr. Perdigão, funcionário dependente do ministério da agricultura, que o autorizou a prestar serviços neste concelho.

De lápis em punho, cabeça por cabeça, barraca por barraca, averiguou que na feira dos 15 entraram: vendedores de hortaliça 28, borel 6, castanhas 94, cintas 5, cordas 12, cobertores 20, cobertas 5, tabernas e casas de pasto 22, coiros 7, crivos 5, frigideiras de peixe 12, padeiras 71, caldeireiros 2, funileiros 4, quinquilheiros 20, louça 4, gamelas 4, rodilhas 4, chapéus de chuva 2, cestos 5, fazendas 65, panos crus 28, chitas 84, frutas 92, relojoeiro 1, ourives -' ferreiros 12, sapateiros 14, tamanqueiros 53, chapeleiros 27, tendas 94, gado bovino 1841 cabeças, cavalar e muar 652, suíno 1625, lanígero e caprino 892, carros de bois e cavalos 221, bicicletas 229, etc. Etc.

Se isto tudo pagasse uma taxa de poiso ou entrada, ainda que pequena, mas legitimamente equitativa à realização de lucros dos feirantes calcule se o montante do rendimento anual. E este rendimento e o terreno não seriam o bastante para garantir a transformação da feira de Santo Amaro no mais belo certame quinzenal do paíz? Respondam os que sabem ler estatisticas.

O serviço do matadouro municipal era uma vergonha. Se o empregado da câmara tinha chave para matança do dia, os marchantes tinham outra para a matança clandestina da noite. O empregado fiscalizava pela frente o serviço da balança, e pelas costas transmudavam se / 19 / peças de carne dos ganchos directamente para as carroças de transportes.

E quando se apreciaram todos os serviços que o snr. Perdigão vinha prestando ao município desde janeiro, e se discutia em sessão a sua remuneração; eu fui um dos que votei, como votava sempre por pequenos ordenados.

Foi porém observado por um vereador: Que a câmara conservava vago um lugar de zelador, que a Praça de Estarreja em 1921 rendeu 1.239$40 e que em 1922 rendia 902$05 nos seis primeiros meses, ou seja mais 25$58 que em cada mês do ano anterior que o matadouro em 1921 rendeu 814$20 e que em 1922 ia render nos sete primeiros meses 1.751$93 ou seja mais 189$42 que em cada mês do ano anterior; que a feira dos 30 de Santo Amaro rendeu pela primeira vez que nela se fez a cobrança 9$00, a pequena Praça das quintas feiras 1$30 ou seja 5$20 por mês, nós encontramos o seguinte aumento mensal de receita:

 

Ordenado mensal que se daria a um zelador (vago)

Aumento mensal do rendimento da Praça de Estarreja aos domingos

Aumento mensal do rendimento do matadouro

Rendimento da feira dos 30

Rendimento novo da praça das quintas feiras

Total

125$00

25$58

182$42

9$00

5$20

347$20

 


Ora considerando que o snr. Perdigão como encarregado extraordinariamente de serviços da Câmara fazia o serviço de zelador vago; que pela sua acção já naquela altura tinha promovido lucros bastantes para um ordenado condigno e para deles também como partilhar o município; que é de direito divino e humano pagar-se o trabalho a quem o faz, e da lei de Deus pagar o jornal ao trabalhador, a eloquência dos números apresentados por esse vereador convenceu da fixação dum ordenado de 300 escudos, ordenado que de certo nunca chegará a ser pago, que a campanha também é de calote e de inveja.

De inveja, porque a fase dessa campanha é caracterizada na ultima semana por duas patadas, ambas a reivindicar para os médicos direitos de primazia à Inspecção Sanitária da Pecuária do Concelho.

Uma diz donde vem e, como é lógico e natural, saiu grossa asneira. Outra não diz donde vem, mas nota-se logo que é de burro.

Remédio: prisões curtas.

Saúde e fraternidade.

O presidente da C. Executiva

António Tavares Afonso e Cunha O Concelho de Estarreja – 26 de Agosto 1922
 

 
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