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Sérgio Paulo Silva, Memórias da Feira de St.º Amaro, 2ª ed., Estarreja, C. M. Estarreja, 2008, 84 págs.

Os Povos do Baixo-Vouga

O sangue da serra é que pouco teria contribuído para alentar as veias da gente do Baixo Vouga. Porque é sangue de peões, e os mareantes é que se apossaram naturalmente das praias do Baixo Vouga, e entre mareantes e peões o consórcio é difícil, uma excepção; a tendência a estremarem -se e a fecharem -se, cada qual na sua casta, é tenacíssima. Na sua casta e na sua civilização – porque aqui, como em todo o mundo, os mareantes criaram civilizações urbanas e os peões criaram civilizações rurais.

Quando houvermos de distinguir as raças pelos caracteres que a profissão impõe aos homens, a primeira das grandes divisões a estabelecer será talvez esta entre mareantes e peões, entre o braço e a asa, e a enxada e o remo. A vela e o bordão constituirão então as duas armas com que o homem se aventura à conquista da terra, – e também os dois símbolos religiosos das suas aspirações capitais. O bordão enraíza e retarda; a vela acelera e arrebata: e cada qual terá criado sua espécie étnica, pouco menos de irredutível. A vela criou o mareante, habituado a longas horas de inércia, mercante, fazendo do comércio o ganha-pão, expansivo, palrador e comunicativo como convém a seu mister de permutador de bens; e até lhe deu o andar singular, com seu ritmo inconfundível, que fez dizer a um grande ilustre romancista, que também foi marinheiro, que o navegador nunca sente terra firme debaixo dos pés. Facilmente dissipador e pródigo, porque vai buscar os bens onde outros os criam, e o barco lhe alarga o mundo e torna inesgotáveis as provisões, o mareante é cosmopolita e versátil, intuitivamente partilhando do carácter de todas as raças e de todas as propensões, alternando-as e conjugando-as em uma pronta simpatia, desprendido de todas as relações constantes. E o bordão criou o caminheiro, deu-lhe apenas um apoio exíguo e frágil para lhe amparar os passos lentos, todos movidos por seu esforço; e apressou a fadiga que o tenta a quedar-se e o induz na vida sedentária, pedindo o sustento aos quatro palmos de terra que os seus braços podem cavar, avaro porque não podendo ir longe não tem mais onde matar a fome senão no retalho do chão sobre que se curva, tímido, calado por disciplina dos dilatados silêncios a que a sua condição o obriga, desconfiando do vizinho, que raro lhe aparece porque por sua vez é prisioneiro da terra como ele, suspeitando de todas as amizades de passagem, particularista, obedecendo comovido à voz do campanário, aferrado a um sistema / 8 / rígido de relações invariáveis. Para o mareante a vida é um fenómeno de expansão e um facto da aventura descuidada; para o peão a vida é concentração e acumulação, e um facto de zelo aturado, previdência e prudência.

Ora os povos do Baixo Vouga são mareantes, ou filhos próximos de mareantes.

Esta é a sua feição capital. Nos seus hábitos e modos actuais são manifestos os sinais da origem mareante.

Jaime Magalhães Lima, Os Povos do Baixo-Vouga


 

                  ...porque temo

Ser esta feira de maus compradores,

Porque agora os mais sabedores

Fazem as compras na feira do Demo,

E os mesmos diabos são seus correctores.

                               Gil Vicente – Auto da Feira
 

 
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