Ao fundo da rua
das Amoreiras, de portas viradas para o largo da escola Conde de
Ferreira, tinha meu avô paterno, Raul Silva, um estabelecimento de
padaria e taberna, onde passei longos períodos da minha infância e
adolescência.
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Geniosos como
eram, meu avô e meu pai incompatibilizaram-se por qualquer razão e
andaram de candeias às avessas um par de anos. Quando, finalmente,
fizeram as pazes, meu avô fez questão que um neto fosse viver com ele.
O mais indicado seria o meu irmão Vladimiro, mais velho que eu ano e
meio, primogénito... Mas – jamais soube porquê! – calhou-me a mim e,
esses anos, que abrangeram um período situado nas décadas de cinquenta
e sessenta e poucos, acabaram, naturalmente, por me deixar marcas
profundas, indeléveis. |
Já o referi
anteriormente e não faria ressoar novamente as cordas da minha memória
se não tivesse, casualmente, encontrado imagens que intensamente
despertaram o que nelas tinha de adormecido ou, talvez fosse mais
correcto dize-lo, calado.
Nesse tempo haviam
por toda a teia do concelho muitas lojas, ou vendas, como a do meu
avô. Não existiam frigoríficos ou arcas congeladoras, eram raros os
automóveis e tão pouco havia qualquer tractor...
O pequeno comércio
do meu avô era, ao tempo, conhecido pelas redondezas pela sua arte de
padeiro e também porque a sua localização era privilegiada já que
aquela era a rota de quantos, vindos de Salreu, de Canelas de Angeja
ou Veiros, Pardilhó ou Avanca ou de todo o concelho da Murtosa,
demandavam a feira de St.º Amaro.
Há tempos, bati à
porta do mestre Raimundo, para o ouvir falar da sua arte de fazedor de
moliceiros. Atendeu-me a mulher, com quem fui conversando enquanto o
velhíssimo carpinteiro se levantava da sesta interrompida. Fomos
falando do que calhava. Sua mulher era natural de Pardilhó, tornou-se
murtoseira por casamento mas, recordava vivamente os dias da infância
onde tinha tido por companheiros de brincadeira meu sogro e irmãos. Já
lá iam mais de oitenta anos... Reconhecia-me,
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assim, como
próximo e abriu-me o coração. Confidenciou-me então o maior desgosto
da sua vida, desgosto que ainda lhe doía, apesar do sucesso do seu lar
e dos filhos na distante América. Os pais deram-lhe, de presente de
casamento, uma bezerra. Manteve-a enquanto pôde mas acabou por ser
forçada a vendê-la porque não queria que o bicho passasse fome, não
havia quem alugasse um bocadinho de terra e nem nas valetas se
conseguia um braçado de pasto com que desogar o animal...
Hoje possui terras
que estão a maninho porque nem de graça as pessoas as querem amanhar.
Já são outros os tempos!
Conversações como
esta fazem-me sempre lembrar vidas antigas, como eram estas nossas na
região do Baixo-Vouga. Noite andada, ao cantar dos galos, ouvia-se o
tropel dorido dos burros que vinham carregados de pinhas: havia quem
vivesse disso, quem tivesse que enganar a miséria. Pelos dias parados,
as gaitas dos amoladores acordavam os gatos e os cães, e os
jornaleiros entravam numa qualquer tasca para beber um pardal, às
vezes acompanhado por uma desvaliosa muge de escabeche, a barba de
muitos dias, as calças com fundilhos....
Para esta gente e
para os outros, todos os outros, a Feira de St.º Amaro era um dia de
necessidade ou de apaziguamento. Vinham, então, de todo o lado, toda a
noite passando em algazarra ou no silêncio dos cascos e dos eixos
ressequidos das carroças.
Para negociar uma
rês, para substituir o alguidar que já não suportava mais ganchos,
pela carne assada do Nunes ou do Beato, para saber preços, por um
pano, um traste ou tão simplesmente, para serem vistos e verem.
Há ainda quem se
recorde de barbeiros que arrancavam dentes, das bancas dos galegos ou
quem guarde a vara-das-vacas comprada numa derradeira visita para não
vir sem mercar.
Quando andava ao
rabusco das fotografias, assinalei à conservadora da Casa-Museu Egas
Moniz, Dr.ª Rosa Maria, o facto de não haver, no muito gado abrangido
pela objectiva dos registos mais antigos, gado tourino. E esse
pormenor trouxe-me à ideia a grande dificuldade que a fábrica da
Nestlé tinha encontrado quando se instalou aqui em Avanca.
Recordemos que
todos os trabalhos inerentes à lavoura, fosse o amanho das terras,
fosse o transporte de moliço, de árvores para madeiramento ou lenha,
enfim, qualquer trabalho, era executado por juntas de força, que as
variedades leiteiras não possuíam. Lá mais para o litoral, na arte
xávega da Torreira ou do Furadouro, cada companha era servida por doze
a quatorze juntas de bois castrados, recordemos que
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era o tempo em que o leitão de Janeiro ainda ia com a mãe ao
fumeiro...
A procura de leite
pela multinacional Suiça, o seu consumo crescente por parte da
população e a própria modernização da agricultura, impulsionaram
entretanto a criação e exploração das variedades leiteiras que, em
pouco tempo, se tornaram dominantes em toda a região. Mudavam-se os
tempos e as vontades...
Todo este mundo
fervilhante, desaguava em delta na feira de St.º Amaro e levava a
muitos povoados, mesmo de distantes serranias, o nome de Estarreja.
No início da
década de sessenta, o meu avô faleceu. Não mais se celebraram na loja
os ruidosos alboroques e, só na lembrança de um ou outro amigo, "Hoje
é dia da feira d'ano", é que eu recordava a feira de St.º Amaro:
estava voltada a página.
Os concursos
pecuários tentaram ainda atrair os criadores mas, doenças várias, dos
animais e da sociedade, exerciam demasiado peso na balança,
desequilibravam quanto já de si, se tinha sustentado em maravilhoso
improviso.
Passaram alguns
anos. Os acasos da vida levaram-me a ausências do país. Tinha
começado, entretanto, o grande surto da emigração, havia crescido a
indústria química, a faina do moliço entrara no seu estertor; a
agricultura modernizava-se, as carroças cediam o passo aos tractores,
à camionagem e a toda a maquinaria que dispensava animais e braços
humanos; as celhas e alguidares de barro transformaram-se em bacias
plásticas, as velhas salgadeiras em arcas congeladoras...
Após quase três
séculos de vida, o lume brando do tempo tinha reduzido,
inexoravelmente, a cinzas essa floresta de vida que era a feira de
St.º Amaro. Da fatalidade restam algumas palavras dispersas, que
parcialmente aqui se resguardam, e sobretudo as imagens captadas por
quem se deixou fascinar ou estudou a velha feira.
Para a memória das
gerações fica este livro, que é também uma desvaliosa homenagem ao
povo anónimo que por aqui passou e que connosco se confundiu.
Sérgio Paulo Silva