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Sérgio Paulo Silva, Memórias da Feira de St.º Amaro, 2ª ed., Estarreja, C. M. Estarreja, 2008, 84 págs.

A Memória Reencontrada

Ao fundo da rua das Amoreiras, de portas viradas para o largo da escola Conde de Ferreira, tinha meu avô paterno, Raul Silva, um estabelecimento de padaria e taberna, onde passei longos períodos da minha infância e adolescência.

Geniosos como eram, meu avô e meu pai incompatibilizaram-se por qualquer razão e andaram de candeias às avessas um par de anos. Quando, finalmente, fizeram as pazes, meu avô fez questão que um neto fosse viver com ele. O mais indicado seria o meu irmão Vladimiro, mais velho que eu ano e meio, primogénito... Mas – jamais soube porquê! – calhou-me a mim e, esses anos, que abrangeram um período situado nas décadas de cinquenta e sessenta e poucos, acabaram, naturalmente, por me deixar marcas profundas, indeléveis.

Já o referi anteriormente e não faria ressoar novamente as cordas da minha memória se não tivesse, casualmente, encontrado imagens que intensamente despertaram o que nelas tinha de adormecido ou, talvez fosse mais correcto dize-lo, calado.

Nesse tempo haviam por toda a teia do concelho muitas lojas, ou vendas, como a do meu avô. Não existiam frigoríficos ou arcas congeladoras, eram raros os automóveis e tão pouco havia qualquer tractor...

O pequeno comércio do meu avô era, ao tempo, conhecido pelas redondezas pela sua arte de padeiro e também porque a sua localização era privilegiada já que aquela era a rota de quantos, vindos de Salreu, de Canelas de Angeja ou Veiros, Pardilhó ou Avanca ou de todo o concelho da Murtosa, demandavam a feira de St.º Amaro.

Há tempos, bati à porta do mestre Raimundo, para o ouvir falar da sua arte de fazedor de moliceiros. Atendeu-me a mulher, com quem fui conversando enquanto o velhíssimo carpinteiro se levantava da sesta interrompida. Fomos falando do que calhava. Sua mulher era natural de Pardilhó, tornou-se murtoseira por casamento mas, recordava vivamente os dias da infância onde tinha tido por companheiros de brincadeira meu sogro e irmãos. Já lá iam mais de oitenta anos... Reconhecia­-me, / 4 / assim, como próximo e abriu-me o coração. Confidenciou-me então o maior desgosto da sua vida, desgosto que ainda lhe doía, apesar do sucesso do seu lar e dos filhos na distante América. Os pais deram-lhe, de presente de casamento, uma bezerra. Manteve-a enquanto pôde mas acabou por ser forçada a vendê-la porque não queria que o bicho passasse fome, não havia quem alugasse um bocadinho de terra e nem nas valetas se conseguia um braçado de pasto com que desogar o animal...

Hoje possui terras que estão a maninho porque nem de graça as pessoas as querem amanhar. Já são outros os tempos!

Conversações como esta fazem-me sempre lembrar vidas antigas, como eram estas nossas na região do Baixo-Vouga. Noite andada, ao cantar dos galos, ouvia-se o tropel dorido dos burros que vinham carregados de pinhas: havia quem vivesse disso, quem tivesse que enganar a miséria. Pelos dias parados, as gaitas dos amoladores acordavam os gatos e os cães, e os jornaleiros entravam numa qualquer tasca para beber um pardal, às vezes acompanhado por uma desvaliosa muge de escabeche, a barba de muitos dias, as calças com fundilhos....

Para esta gente e para os outros, todos os outros, a Feira de St.º Amaro era um dia de necessidade ou de apaziguamento. Vinham, então, de todo o lado, toda a noite passando em algazarra ou no silêncio dos cascos e dos eixos ressequidos das carroças.

Para negociar uma rês, para substituir o alguidar que já não suportava mais ganchos, pela carne assada do Nunes ou do Beato, para saber preços, por um pano, um traste ou tão simplesmente, para serem vistos e verem.

Há ainda quem se recorde de barbeiros que arrancavam dentes, das bancas dos galegos ou quem guarde a vara-das-vacas comprada numa derradeira visita para não vir sem mercar.

Quando andava ao rabusco das fotografias, assinalei à conservadora da Casa-Museu Egas Moniz, Dr.ª Rosa Maria, o facto de não haver, no muito gado abrangido pela objectiva dos registos mais antigos, gado tourino. E esse pormenor trouxe-me à ideia a grande dificuldade que a fábrica da Nestlé tinha encontrado quando se instalou aqui em Avanca.

Recordemos que todos os trabalhos inerentes à lavoura, fosse o amanho das terras, fosse o transporte de moliço, de árvores para madeiramento ou lenha, enfim, qualquer trabalho, era executado por juntas de força, que as variedades leiteiras não possuíam. Lá mais para o litoral, na arte xávega da Torreira ou do Furadouro, cada companha era servida por doze a quatorze juntas de bois castrados, recordemos que / 5 / era o tempo em que o leitão de Janeiro ainda ia com a mãe ao fumeiro...

A procura de leite pela multinacional Suiça, o seu consumo crescente por parte da população e a própria modernização da agricultura, impulsionaram entretanto a criação e exploração das variedades leiteiras que, em pouco tempo, se tornaram dominantes em toda a região. Mudavam-se os tempos e as vontades...

Todo este mundo fervilhante, desaguava em delta na feira de St.º Amaro e levava a muitos povoados, mesmo de distantes serranias, o nome de Estarreja.

No início da década de sessenta, o meu avô faleceu. Não mais se celebraram na loja os ruidosos alboroques e, só na lembrança de um ou outro amigo, "Hoje é dia da feira d'ano", é que eu recordava a feira de St.º Amaro: estava voltada a página.

Os concursos pecuários tentaram ainda atrair os criadores mas, doenças várias, dos animais e da sociedade, exerciam demasiado peso na balança, desequilibravam quanto já de si, se tinha sustentado em maravilhoso improviso.

Passaram alguns anos. Os acasos da vida levaram-me a ausências do país. Tinha começado, entretanto, o grande surto da emigração, havia crescido a indústria química, a faina do moliço entrara no seu estertor; a agricultura modernizava-se, as carroças cediam o passo aos tractores, à camionagem e a toda a maquinaria que dispensava animais e braços humanos; as celhas e alguidares de barro transformaram-se em bacias plásticas, as velhas salgadeiras em arcas congeladoras...

Após quase três séculos de vida, o lume brando do tempo tinha reduzido, inexoravelmente, a cinzas essa floresta de vida que era a feira de St.º Amaro. Da fatalidade restam algumas palavras dispersas, que parcialmente aqui se resguardam, e sobretudo as imagens captadas por quem se deixou fascinar ou estudou a velha feira.

Para a memória das gerações fica este livro, que é também uma desvaliosa homenagem ao povo anónimo que por aqui passou e que connosco se confundiu.

Sérgio Paulo Silva

 
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