Qualquer
criança, desde tenra idade, conhece o arroz. Vai por vezes
quotidianamente à mesa acompanhando os mais diversos pratos, podendo
coroar as refeições como sobremesa. Arroz doce, em travessas ou
pratinhos, a que um toque de canela acrescenta sabor e não raro, na sua
decoração, momentos de arte e fantasia. Mas, quando chega à mesa e muito
antes de passar pela cozinha, já foi descascado e limpo e não pode mais
voltar a ser arroz. Depois de removida a casca o grão poderá manter o
pericarpo intacto, como qualquer grão de milho ou de trigo, mas nunca
mais poderá voltar a ser gente porque é exactamente a casca que o
protege e lhe dá a possibilidade de multiplicação.
Como disse, nos tempos
da minha infância o arroz era semeado em viveiros e depois transplantado
para o campo e disposto, pezinho a pezinho, com intervalos regulares
entre cada planta porque cada planta, tal como as pessoas, precisa do
seu espaço para se desenvolver e realizar no destino que lhe deu o
Criador: crescei e multiplicai-vos!... Este processo de cultivo tinha a
vantagem de a planta estar à frente dos infestantes e era praticamente
reservado às mulheres que levavam o dia, de sol a sol, enterrando as
jovens plantas. Este processo, ainda hoje praticado noutros quadrantes,
perdia-se na memória dos tempos e foi dando lugar ao actual, ou
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seja, passou a ser semeado directamente no local definitivo com recurso
à química para controlar as pragas de ervas daninhas, os tais
infestantes.
Campos de Salreu. Fotografia
de Maria Lamas para o livro «Mulheres do meu país». Note-se o barril
para a água, a foicinha, os lenços...
A sementeira do arroz
tem lugar em Abril/Maio e numa fase primária fazia-se uma mergulha
prévia, dentro de um saco de serapilheira, para que as sementes
entumecessem e ganhassem penso. Esta mergulha prévia fazia-se para que o
arroz já fosse talado e assim, beneficiando de lamas em suspensão,
ficava completamente tapado e rapidamente enraizava. Para além da
mergulha, os agricultores também se socorriam dos seus currais de gado,
enterrando os sacos debaixo das manjedouras, sacos que cobriam com
alguma palha e com estrume. O cereal, que tinha sido molhado, talava com
a fermentação do estrume. Se o lavrador se desleixasse e deixasse os
sacos demasiado tempo, era um problema porque as plantas enleavam-se,
enriçavam-se umas nas outras.
As sementes que ficassem
a boiar na água ou estavam chochas ou furadas pelo gorgulho.
Este novo modo de trabalhar o cereal continuava, se é que não
incrementava mesmo, a necessidade do labor humano. Porque era necessário
mondar para desafogar as plantas e porque era necessário expurgar os
arrozais das ervas daninhas (numa primeira fase o recurso à monda
química não estava generalizado), sobretudo da milhã vermelha, com
barbas, que se assemelhava ao arroz e que só os olhos calejados
distinguiam da milhã branca. Recorriam então os proprietários aos braços
que tinham em casa, mulheres e filhas... Como, porém, eram
insuficientes, para tantas
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mulheres de Veiros e da Murtosa que vinham em maltas numerosas por
soldos de miséria.
Falo-vos dum tempo em
que, desde a linha do comboio até às águas largas, até não haver mais
terra, poucos eram os juncais e mais raros ainda os terrenos com canízia.
Tudo eram arrozais a perder de vista e não havia um palmo de terra que
fosse desperdiçado.
Esta abundância motivou
a existência duma fábrica de descasque na Quinta do Visconde, ao fundo,
servida pela Rua do Mato, tendo funcionado, no mesmo local uma fábrica
de lacticínios produtora do célebre "Queijo Salreu", tipo flamengo, cujo
rótulo era a coroa do Visconde. Quando essa fábrica acabou, o alvará
passou para o industrial Lopes & Alves passando o afamado queijo a ser
fabricado em Estarreja mas mantendo a mesma marca. Na história destas
duas fábricas há um facto que é de realçar: a montagem de todas as
máquinas e a invenção ou reconversão de algumas foi obra do chauffeur do
Senhor Visconde, um alemão de nome ano. Nesta fábrica de descasque
trabalhariam algumas dezenas de pessoas mas, ao tempo da minha infância,
já não havia na quinta quaisquer restos de maquinaria, ou instalações
que a tivessem suportado, restando somente o velho portão de ferro que
lhes dera serventia. De outra dimensão e importância era a fábrica da
família Marques Rodrigues, Hidroeléctrica, junto à estação da CP em
Estarreja e que foi alimentada por outro factor marcante da vida do
concelho, a produção de energia eléctrica própria, em mini-barragem, no
curso do Antuã, um pouco a montante da
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Ponte Velha, num sítio de antigos moinhos e a que ainda hoje se chama
turbina. Os arrozais geravam uma nova riqueza, a riqueza industrial...
E outras riquezas de que
se não daria grande conta. Não estando ainda mecanizada a agricultura,
todos os trabalhos eram feitos com recurso aos animais. Abundavam as
vacas marinhoas (que aos lavradores acrescentavam a riqueza das crias) e
bois, para os trabalhos que requeriam outro poder, outra força, bois
castrados que em toda aquela escravatura ocupavam a linha da frente: o
lavrar dos terrenos e o transporte de árvores ou batatas, de milho ou de
marés de moliço. Por vezes carregos mais leves, como o junco ou as
palhas que eram sempre volumosos e teriam até influenciado a
arquitectura dessas épocas: atente-se no tamanho dos portões das casas
de lavoura que ainda existem, nos padiais, na sua altura...
Nesses anos, a via de
acesso ao apeadeiro de Salreu, ao esteiro e às marinhas, não era a
estrada de paralelos (cubos) de granito que hoje é mas uma congosta de
saibro de declive acentuado onde o mau tempo abria profundos sulcos. Por
esse caminho desciam todos os carros de bois. No regresso, carregados,
os animais não conseguiam vencer o caminho sem o auxílio de outra junta
de bois ou de vacas, amarrando-se uma tiradoura ao chavelhão, pelo que
os lavradores optavam por guiar os animais à volta, pelo Largo do Seixal
onde, mesmo subindo, o declive era menos pronunciado, mais fácil de
vencer.
Tardavam a aparecer os
primeiros tractores. Lavrador que tivesse
/ 29 / uma só junta de vacas era um lavrador remediado, sendo pobre o
que tivesse uma carroça com uma vaquita. Nas casas abastadas havia
currais bem guarnecidos de gado para acudir às inúmeras tarefas. Só que
a um maior número de cabeças de gado e de propriedades acresciam outros
encargos. O gado, entre o mais, necessitava de camas e os terrenos de
estrume (para além das marés de moliço que os lavradores compravam) para
a sua fertilização. Havendo pouco junco no campo e como a bandeira do
milho se aproveitava como alimento do gado, as camas das vacas eram
fornecidas pelos pinhais: tojo, queiroga, alguma carqueja, algum outro
mato espontâneo. Os pinhais forneciam ainda, nesses anos em que as
botijas de gás ainda não existiam ou eram apenas privilégio de raras
famílias, a caruma, as pinhas, a lenha e madeira. Foi assim que os
lavradores de Salreu, com o dinheiro que obtinham do arroz, se tornaram
proprietários de muitos dos pinhais de Soutelo, Albergaria-a-Nova e
Albergaria-a-Velha
– para além daqueles que já então estavam na posse de famílias
salreenses – muitos dos quais se mantêm ainda hoje na posse dos herdeiros
desses antigos lavradores. Alguns que, com o evoluir da vida, ficaram
situados em zonas urbanas e industriais, foram enormemente valorizados e
compensaram, copiosamente, a desvalorização dos arrozais pelo abandono e
desinteresse a que foram sendo votados nas décadas mais recentes.
A mecanização no cultivo
do arroz chegou primeiro às grandes explorações do sul, do Tejo, do
Sado, do Mondego, tornando-as mais produtivas e mais rentáveis e que já
de si o eram devido à
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temperatura das águas. As águas do Vouga e do Antuã, mais frias que as
do Mondego ou mais ainda que as águas dos rios do sul, não permitiam
grandes produções por hectare em comparação com aquelas. De entre as
variedades de arroz, foi o rajado que encontrou aqui o seu clima mais
favorável. O arroz rajado reconhece-se pela tonalidade avermelhada do
grão, muito cascudo e que na germinação mostra como que um bico
saliente, mais pronunciado que nas outras variedades, dando um
quilograma, depois de debulhado e limpo, cerca de seiscentos gramas. E,
por falar em bico saliente, ocorre-me que quando uma criança nos
surpreende com qualquer atitude ou dito se diz está-se a sair da
casca... Terá isto a ver com o arroz ou com a nascença dos pintainhos?
Vamos pensar que é da casca do ovo, porque a um fedelho que nos faz
alguma logo lhe arregalamos os olhos:
–
Anda cá meu melro que eu dou-te o arroz!..., e, neste caso, já não há
dúvidas, pois não?!
Vista aérea dos campos de
Salreu. Foto da Câmara Municipal de Estarreja.
Mas voltemos ao assunto
em que devo salientar que os anos de, digamos, mais êxito para os
lavradores de Salreu foram os das décadas de 1940 e 1950, nomeadamente os
anos da candonga aquando dos racionamentos provocados pela Guerra Civil
de Espanha / 2ª Guerra Mundial. Nesses anos, ao contrário, por exemplo,
dos cultivadores de Oliveira do Bairro, os cultivadores de Salreu
reacusavam-se a manifestar as suas produções à Comissão Reguladora do
Comércio pelo que nada podiam vender à Hidroeléctrica. Vendiam-no
essencialmente aos moleiros de Ul e aos moleiros do concelho por preços
superiores aos que as fábricas
/ 33 / pagavam. Nesse período,
o da candonga, esses moleiros chegavam a pagar 16$00 por Kg vendendo-o
depois por 35 e 40$00 já descascado. Nesse período a Hidroeléctrica
(como outras fábricas) teve paragens mas não por falta de matéria-prima,
mas por imposição da Comissão Reguladora que posteriormente as
indemnizava. Só na década de 1960, quando a Comissão se foi tornando mais
permissiva, é que se tornou possível a venda de quantidades apreciáveis à
fábrica de descasque. Só que os preços vinham caindo e, pelas razões
apontadas, a colocação das colheitas era cada vez mais difícil ou
penalizadora, o apelo da emigração grassava. Depois do Brasil, da
América, da Venezuela, a França tornara-se um sonho comum. Todos os que
trabalhavam na agricultura auferiam salários muito baixos que, na maior
parte dos casos, não iam além da subsistência. Quem trabalhava terras
arrendadas via os proprietários arrecadar a produção sem que lhes
restasse nada. Que mulher não trocava o trabalho no campo onde, apesar
das meias, as sanguessugas lhes infernizavam as pernas, por um trabalho
(igualmente violento, bem o sei, bem o vi) numa tijoleira? Que homem não
trocava a rabiça por um emprego no Amoníaco Português ou na Celulose de
Cacia? Subitamente desprovida de braços, a cultura do arroz apenas podia
vingar com o recurso à mecanização e ao uso generalizado da química e
financeiramente era ruinosa. Multiplicaram-se os juncais e a canízia
foi-se assenhoreando da vastidão dos terrenos. A cultura do arroz, agora
que vai singrando um novo século, continua, mas já é só uma questão de
teimosia e de subsídios, ilusório
/ 35 / oxigénio que os lodos sorvem. Resta a memória. E a de há menos
de um século é a única possível. Feita de mais silêncios que de
palavras, de raras imagens que por toda a parte procurei para ilustrar
este arrazoado. Um dia, à porta do café, numa roda de salreenses,
questionei um amigo sobre isso. Toda a sua família tivera um passado de
proprietários e cultivadores, ele próprio, apesar da idade, tinha comido
desse pão que o diabo amassara, poderia ter alguma fotografia... A sua
resposta foi desabrida:
– Fotografias? Desse
tempo?!... Quem as tiver, rasga-as para não se lembrar mais. Quem é que
quer recordar esses tempos? Se as pessoas tivessem agora que voltar a
passar os mesmos trabalhos, enforcavam-se...
Nessa roda de amigos
estava um mais velho que nós, que, tendo nascido em Soutelo, viera
servir para Salreu com onze anos de idade. Envolveu-se na conversa. O
pai tinha ido para o Brasil quando ele tinha seis anos e só haveria de
voltar quando o menino se tornara já homem e cumpria serviço militar.
Como a sorte lhe fora madrasta, deixara passar os anos com poucas
notícias e nenhum dinheiro que valesse à mulher que deixara com seis
filhos. A pobre, para acudir às crianças, aceitava o trabalho que
aparecia e também ela tinha penado nas marinhas do arroz. Não possuindo
terras, arrendava-as, e cultivava milho cuja produção ia inteirinha para
as mãos dos proprietários, como pagamento da renda, ficando para ela a
palha desvaliosa. Mas, então, porquê arrendar? Porque as crianças tinham
que comer e as terras sempre davam, pelo meio do milho, algum feijão,
couves, qualquer coisa que
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enganasse um porquito. A comida, contava-nos, era todos os dias couves
com batatas e batatas com couves, regadas com banha de porco... às vezes
uma sardinha... e as couves estavam sempre no olho! Era, pois, gente
assim que aceitava trabalhar no campo em condições desumanas só porque
era preciso sobreviver, sonhar com melhores tempos.
Já o disse: foi a paixão da pesca e da caça que me levaram muito novo
para o campo. Nesses anos, já tão distantes, a ria era pro-funda, cheia
de moliço - refúgio de peixes - os seus braços, os esteiros, navegáveis,
o rio Antuã não estava assoreado como está hoje e não minguava no verão
como agora míngua. Então, os invernos eram diferentes, com cheias
enormes, avassaladoras. Num desses invernos passei um agradável domingo
a passear de barco à vela ali mesmo defronte onde hoje está a subestação
da CP. O barco era uma bateira de ervagem, uma dessas bateiras que se
viam no esteiro de Salreu ou no esteiro de Canelas, ou ainda no
aconchego do Antuã, e que serviam para o transporte de juncos, dos sacos
de arroz, movimentação de bezerros... Os sacos de arroz que essas
bateiras, fortes e negras, transportavam provinham da debulha que era
feita em piões, pelos cavalos, nas eiras feitas de solão batido e
encostadas aos palheiros. Chegavam até elas trazidos em zorras ou à
cabeça das pessoas. Imagine-se o seu caminhar, com os sacos à cabeça e
os pés a enterrarem-se na lama... Nesse domingo, tanta era a água que o
Zé Remígio (um pouco mais velho que eu e hoje a residir na Alemanha)
armou a vela na bateira do pai e foi uma festa!
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As enguias eram muito abundantes na ria (atente-se na construção, na
Murtosa, de uma fábrica, a Comur, para exploração dessa fartura) e, como
se sabe, as enguias jovens sobem sempre os cursos de águas doces. Com
essas cheias que tudo inundavam, as enguias que subiam espalhavam-se e,
quando as pombas enfim esvoaçavam trazendo no bico o raminho de
oliveira, quedavam-se para o moroso crescimento. Quedavam-se nos poços,
quedavam-se nas valas que regurgitavam, nos rios e ribeiros e não era
difícil, em Setembro, aquando da ceifa do arroz, encher à mão um saco de
enguias nos poceiros e na lama, pelo meio dos restolhos. Claro que já
não eram gostosas, sabiam a lodo. Mas eram enguias...
Outro peixe de que me
recordo: os pimpões. Penso que estarão desaparecidos de tantos anos que
não vejo um só ou deles me cheguem notícias. Ainda há vida nas valas.
Noto-o pelas garças e pelos guarda-rios mas não sei o que seja, sim,
será um quase nada que não sei o que seja que ainda dá para iludir a
fome a estas aves. As garças e os guarda-rios: eis duas aves
emblemáticas dos campos de Salreu. O guarda-rios, muito belo na sua
configuração fusiforme, adaptada ao mergulho vertiginoso para a captura
dum peixito, extremamente belo nas suas cores mágicas que vão do ocre ao
azul fulgente, tão belo que as porcelanas da Vista Alegre lhe dedicaram
duas peças de colecção, e a garça, todas as várias garças, mesmo as
boieiras, no seu branco esquelético são sempre de distinta beleza,
sobretudo a real quando em postura de alerta, por um perigo ou por um
peixe. Numa gravura fina, no guarda-mato
/ 41 / de uma das minhas armas, está gravada uma garça real e só essa
gravura vale para mim a arma, pela mestria do artesão e pela poesia do
seu imaginário. De resto, outras aves têm ou tiveram os campos de Salreu
como local privilegiado de vida. O pato-real, tão emblemático nos
arrozais que uma conhecida marca de arroz o escolheu para ilustração das
suas embalagens; as narcejas que com os seus longos bicos decifram os
segredos da lama; as codornizes da milhã tão gulosas e que só partiam
quando deixavam de ter os pés enxutos e tantas, tantas outras aves como
os pardais que nesses anos formavam nuvens, como as marrequinhas que
vinham no inverno ou o triste rouxinol dos caniços, tão pequenino, tão
discreto mas com um canto que fazia perdurar na alma a beleza do
desamparo de todos aqueles sítios tão expostos ao frio, ao vento, à
solidão.
As cegonhas têm também
neste meio as suas moradas electivas. Contudo, nem sempre a sua presença
ocorreu na vastidão do baixo Vouga. Existiu, num velho eucalipto de que
certamente já ninguém se lembra e que ficava perto do apeadeiro, um
ninho com um casal há cerca de cinquenta anos. Ou pelo derrube da árvore
ou por qualquer outro motivo, desapareceram e durante longos anos nem
uma só visitava ou cruzava os céus do campo. As alterações climáticas
trouxeram-nas e fizeram delas uma praga. São assim um fenómeno recente e
escolher o seu perfil como símbolo da freguesia só por ignorância ou
parvoíce. Inicialmente a sua presença foi muito prestimosa pela ajuda
que deram no combate (que estava a ser feito selvaticamente – e em vão –
com produtos / 42 / químicos) a uma praga nova, a dos lagostins de água
doce mas, com a proliferação que tiveram têm operado alguns
desequilíbrios de monta. Como tudo lhes serve, em tudo fazem razia,
cobras de água ou peixes, juvenis de outras espécies ou rãs. O coaxar
das rãs, em antigas noites de verão, era tão intenso que se ouvia no
Largo da Igreja... e agora são poucas as que se vêm e nenhumas as que se
ouvem. E ainda, mercê das mesmas alterações climáticas, se vem agravando
o cenário, já que se vêm tornando sedentárias, quebrando os seus hábitos
migratórios multisseculares.
Outras, quiçá menos
vistosas, também aqui permaneceram desde sempre como o milhafre ou as
corujas, branca e cinzenta, que sempre demandaram o campo pela
abundância de ratazanas, seu alimento base.
Às vezes, de noite, ouço
o piar triste, árido, de algumas outras em viagem para as marinhas e
fico sempre a sorver as suas rotas imaginárias como quando escutava o
ciciar das asas dos patos nas noites que transbordavam de escuridão e eu
porfiava na sua espera.
Mulheres plantando arroz.
Excelente fotografia do Eng.º Rocha Soares. Atente-se nos chapéus e
lenços e sobretudo no uso de meias.
Por quantos anos mais
prosseguirá a cultura do arroz nos campos de Salreu? Porque, mesmo que
sem a expressão de tempos passados, nos faz falta ao coração, mais que à
barriga. Quando me ponho a conversar com quem a vida condenou a esse
degredo dou-me conta, de resto como acontece com pessoas que penaram na
faina maior ou na guerra colonial – e são meros exemplos – que há nas
suas palavras e no brilho dos olhos um perfume de nostalgia e poalhas
dum encantamento algures perdido. Contou-me a Dores que, quando
caminhavam (na ida?, na volta?), se consolavam de
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comer amoras que colhiam nos silvados marginais, tomavam banho no rio,
umas tomando conta das outras, em cuecas e soutien (coletes), quando os
havia, porque cada uma tinha de ter o brio de confeccionar a sua própria
roupa íntima. As raparigas faziam-na em casa de pano cru ou dum tecido
melhor, morim. Quando o evoluir da vida a levou para esse negócio
apareciam-lhes as cachopas a quem ela questionava:
– Queres pano do cu ou
morim?
Levavam sempre uma corda
à cinta e uma foicinha na mão. A foicinha servia para matar algum
licanço e para manter os atrevidos à distância... mas, sobretudo, para
no regresso trazer comida para os coelhos, um feixinho que amarravam com
a corda. Levavam água em bilhas e alimentavam-se com bacalhau miúdo ou
uma sardinha embrulhada em papel pardo...
No início da década de
cinquenta, a Maria da Ana – uma das grandes donas de maltas, como a
Clarinda Carapinheira e outras – então com oito anos, começou a
acompanhar a mãe nos trabalhos do arroz. Vinte e cinco tostões por
semana... Depois, com o passar dos anos, o salário foi sendo outro.
Também a força de trabalho. Chegou a ter sessenta mulheres a seu mando,
da Murtosa, de Veiras, de Pardilhó, e tanto trabalhavam no campo de
Salreu como iam para Ovar.
"Os lavradores de Ovar vinham aqui buscar
arroz que se plantava à boca do campo, na Carvalha, na Enxurreira, por
toda a parte. Nós arrancávamos o arroz, levávamo-lo e íamos plantá-lo a
Ovar, para os lados da Ribeira. Ficávamos por lá às semanas e
/ 44 / dormíamos em palheiros.
Tenho muitas saudades desse tempo, das brincadeiras que fazíamos. Um dia
uma vizinha nossa,..., roubou uns coelhos à minha mãe. Eu descobri a
coisa e disse à... que fosse espreitar o tacho que ela levava que devia
de ser coelho. Foi e veio-mo confirmar: era coelho guisado. A minha
amiga, danada com a ladra, não esteve com mais coisas e mijou-lhe no
tacho. Na hora de comer a gente pouco tinha e a outra regalava-se a
comer coelho e a molhar o pão no molho... Pode crer que tenho saudades
desse tempo e ainda hoje, quando vou à praça ou quando vou à Torreira
ainda ouço dizer "Olha a Maria da Ana!..." que era como me conheciam de
solteira."...
Se eu tivesse tido uma
dessas vidas de rios que querem desaguar nas nascentes, que correm ao
contrário, desenraizando-se, cavando caudais de ausências e vazios e de
súbito voltasse, com certeza que não reconheceria o chão das minhas
raízes. Reconhecê-lo-á o mar quando um dia voltar às suaves colinas onde
outrora se espraiou?
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