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Sérgio Paulo Silva, Um santo lavado com vinho. Breve memória do meu S. Paio, 1ª ed., Estarreja, 2004, 48 págs.

Breve memória do meu S. Paio

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Na borda dum mercantel estão sentados meu pai, eu e meu irmão, num dia qualquer dum Verão desaparecido dos idos anos cinquenta. Meu pai parece que desenriça uma linha. Olhando agora essa velha fotografia, dou-me conta de como me fascinavam as linhas que o vogar dos barcos enriçavam pelas águas e de como já vai sendo distante a minha ligação ao universo rendilhado da Ria de Aveiro.

Meu pai, eu e meu irmão num mercantel.

A construção da Ponte da Varela demoraria ainda alguns anos. Fazia-se a travessia da Ria em barcos moliceiros ou mercanteis, ou de lancha, do cais da Béstida, na Murtosa, para o cais da Rampa, na Torreira e o percurso era um caminho decorado de tantas vezes feito, ora de carro, ora de camioneta, que começava a cheirar à Ria quando surgiam as sebes de tramagueiras. A Béstida surgia então desabrigada, húmida, assustadora nos medos que nos obrigava a vencer, sobretudo em dias de temporal, sempre inundada de cheiros.

Os cheiros... A par das imagens, de certo modo comuns a todos, os cheiros fazem parte da minha memória da Ria. O cheiro a escasso, o cheiro do moliço, do gasóleo das lanchas, nesses pequenos cais em que as gentes exalavam a sua presença de partir e chegar, nas marés dos dias, mas, sobretudo, o cheiro do breu. É estranho, mas sempre me fascinou o trabalho de conservação das embarcações. Ainda hoje, sempre que na borda alguém amanha uma bateira, eu paro para observar e continuo a deliciar-me com o cheiro espesso e negro do breu.

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O primitivo cais da Béstida, tal como o registou a objectiva do Prof. Dr. Egas Moniz na década de 1920.

Na outra banda era a areia e, ano após ano, um tempo solto que se arrastava sempre até à festa do S. Paio. Tínhamos então uma varanda privilegiada na casa que o meu pai tinha alugado, quase a fazer esquina do começo da Av. Hintze Ribeiro (interpunha-se apenas o prédio onde ficava a loja Catrazana do Sr. Secundino), varanda donde os nossos olhos divisavam toda a Ria, a vida que nela então fervilhava.

Uma outra fotografia, captada no meio da rua, pertinho do Café Guedes, então uma barraca, mostra-me com meu irmão Vladimiro em tempo de S. Paio. Vê-se ao fundo o arco e, não sei se pela festa ou não, ambos temos um brinquedo nas mãos. Para nós, nesse tempo, a festa era exactamente isso, o luxo dum brinquedo. E uma agitação enorme na casa. Meu pai franqueava a porta aos inúmeros amigos que vinham de todo o lado. Havia sempre enguias fritas, caldeiradas, escabeche, bolinhos de bacalhau, padas de UI ou de Pardilhó, arroz doce, muita conversa, jogatina de cartas, canecas e o que mais calhava.

Inolvidável era o espectáculo dos barcos que chegavam apinhados de gente, o foguetório, a algaraviada, os bailaricos improvisados com uma gaita-de-beiços que fosse. Por vezes, os barcos eram tantos que já só conseguiam amarrar às rés dos que já lá estavam. E havia ainda as bateiras negras, polvilhadas de casca de arroz, carregadas de melancias e melões das terras marinhoas.

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Eu com meu irmão Vladimiro. Ao fundo, vê-se um arco do S. Paio e o cais da rampa, cuja demolição foi um crime.

Nas mãos, temos um luxo, brinquedos de lata, impossíveis hoje face à legislação, como de resto seriam censurados filmes como Aniki-Bó-Bó ou «La Guerre aux Boutons».
 
 

Os velozes anos trouxeram estradas, a ponte, carros e camionetas que de imediato fizeram naufragar os barcos nas águas do tempo. Então já eu era rapaz espigadote e o meu S. Paio já não era o brinquedo de folheta, mas as tentações dos carrosséis, a moeda arriscada na roda-da-fortuna, os primeiros bailaricos. A roda resplandecia aos meus olhos com as suas vistosas navalhas mas, sobretudo, com as harmónicas, que disfarçavam os fatídicos pentes que a palheta sempre indicava como prémio.

Por entre o formigueiro, via os jogadores da vermelhinha, os propagandistas, as doceiras, os que cantavam e dançavam numa animação sem fadiga; num magote, cantava-se ao desafio; noutro bulhava-se por causa do vinho. Os vendedores de melancias cabeceavam nos seus melões e nos barcos já se tinham disposto as velas para resguardar da orvalheira fria da noite os que dormitariam nas esteiras até à hora de partir entre berros e foguetes.

Foram passando os anos e, em cada um se foi modificando a festa do Senhor S. Paio e, bem assim, se foram modificando outras festividades que ocorriam um pouco por todo o Distrito. Hoje, eu sei que estes festejos não têm o peso histórico da Nossa Senhora dos Remédios ou das romagens a S. Tiago de Compostela. É recente (falamos de séculos) na nossa História a ria de Aveiro e, naturalmente, a formação do sítio que hoje se chama Praia da Torreira. Como se iniciou o culto de S. Paio?

Não sei. Deixo isso para estudiosos com mais vagar. O que tenho por certo é que se veneravam outras datas, outros Santos(as), como a Stª Marinha em Avanca ou a Sr.ª do Monte em Salreu. O que tenho por certo é que da Murtosa, de Cacia, de Aveiro, vinham barcos pejados de gente para os festejos de 15 de Agosto em Salreu e que hoje já não vêem. Aos festejos da Sr.ª da Saúde ainda se deslocam (a pé!) centenas de romeiros da Murtosa e de Veiros (sobretudo) não se verificando isso nas restantes freguesias. Porquê? Volto a ignorar. Constato tão-somente os factos. E assim tenho por certo o quanto os festejos do S. Paio diziam a todas as gentes ribeirinhas. Antes, muitos dias antes se alvoroçava o povo, se combinava a ida, se ajustavam barqueiros. Quem se demorava e não arranjava lugar, fazia dezenas de quilómetros a pé para apanhar os barcos na Béstida. Outros (tenhamos presente que esses anos eram anos de intensa vida agrícola, sem tractores, totalmente dependente dos animais e de extrema escassez de dinheiro) que ou quando não podiam de todo ir, esperavam os que tinham ido nos cais e quando chegavam os mercanteis e os moliceiros da festa, atafulhados com os seus familiares e amigos, armavam no terreiro grossa festa, assim prolongando a de todos quantos tinham tido a felicidade de ir e saciando as suas ânsias e frustrações. Era o S. Paio dos augados, celebrado em alguns textos e belissimamente recuperado da memória pelo grupo musical A Pardilhós. À boca do esteiro de Salreu, no alto da casa dos Garridos, morou num nicho numa imagem do S. Paio pequenino durante muitos anos. A casa ainda lá está, envelhecida e muda.

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Dia de S. Paio. Foto de meu pai, tirada da nossa varanda. Os barcos vão chegando. A alegria é espontânea, havendo pares que dançam.

O nicho também. Quanto à imagem do S. Paio, essa, desapareceu, como desapareceu sem se saber como o S. Paio dos augados, ou pequenino, vale o mesmo.

Os velozes anos... Sabem os mais velhos como de facto o tempo foge. Mas as mudanças que durante séculos se operavam suavemente são agora clivagens profundas e dolorosas, já não entre gerações, mas na própria geração – se me permitem dizê-lo – já que as imagens de hoje têm, amanhã, o rosto desfigurado. Dizia atrás que desapareceu o S. Paio dos augados. Mas também o outro e, no entanto, todos os anos, a 7/8 de Setembro, acorrem à Torreira multidões vindas de toda a parte. Já a baía da Torreira está deserta de barcos, já não aportam as bateiras dos melões e das melancias. Sim, ainda se vendem cavacas e bolos de gema, neste começo de século ainda há quem venda camarinhas mas... Que é feito da minha festa? Existe, persiste ainda e, todos os anos, lá estou. Ando na velha avenida, sozinho, entre a mexida multidão, abeiro-me da Ria e olho, mastigando os meus silêncios, a paisagem das minhas memórias. Na maré das horas, sempre, sempre velozes, fazem-se horas do fogo preso, que minha mulher tanto gosta de ver. Cada vez a acompanho menos. Prefiro ir para casa, onde, sozinho, bebo o último copo da noite, com meu pai, enquanto os foguetes silvam pelo céu e se desfazem em lágrimas de pólvora por dentro do meu peito.

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Havia sempre lugar para mais um no formigueiro. (Foto Guedes).

Depois, a aragem fria da noite tudo dissipará. Alguns dos romeiros voltarão a reencontrar-se talvez no S. Miguel, em Arouca. Anoitecerá cada vez mais cedo e tudo esquecerá. Por mais um ano.

Sérgio Paulo Silva

 
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