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Na borda dum mercantel estão sentados meu pai, eu e meu
irmão, num dia qualquer dum Verão desaparecido dos idos anos
cinquenta. Meu pai parece que desenriça uma linha. Olhando agora
essa velha fotografia, dou-me conta de como me fascinavam as linhas
que o vogar dos barcos enriçavam pelas águas e de como já vai sendo
distante a minha ligação ao universo rendilhado da Ria de Aveiro. |
Meu
pai, eu e meu irmão num mercantel. |
A construção da Ponte da Varela demoraria ainda alguns anos.
Fazia-se a travessia da Ria em barcos moliceiros ou mercanteis, ou de
lancha, do cais da Béstida, na Murtosa, para o cais da Rampa, na
Torreira e o percurso era um caminho decorado de tantas vezes feito, ora
de carro, ora de camioneta, que começava a cheirar à Ria quando surgiam
as sebes de tramagueiras. A Béstida surgia então desabrigada, húmida,
assustadora nos medos que nos obrigava a vencer, sobretudo em dias de
temporal, sempre inundada de cheiros.
Os cheiros... A par das imagens, de certo modo comuns a
todos, os cheiros fazem parte da minha memória da Ria. O cheiro a
escasso, o cheiro do moliço, do gasóleo das lanchas, nesses pequenos
cais em que as gentes exalavam a sua presença de partir e chegar, nas
marés dos dias, mas, sobretudo, o cheiro do breu. É estranho, mas sempre
me fascinou o trabalho de conservação das embarcações. Ainda hoje,
sempre que na borda alguém amanha uma bateira, eu paro para observar e
continuo a deliciar-me com o cheiro espesso e negro do breu.
O primitivo cais da Béstida,
tal como o registou a objectiva do Prof. Dr. Egas Moniz na década de
1920.
Na outra banda era a areia e, ano após ano, um tempo solto
que se arrastava sempre até à festa do S. Paio. Tínhamos então uma
varanda privilegiada na casa que o meu pai tinha alugado, quase a fazer
esquina do começo da Av. Hintze Ribeiro (interpunha-se apenas o prédio
onde ficava a loja Catrazana do Sr. Secundino), varanda donde os nossos
olhos divisavam toda a Ria, a vida que nela então fervilhava.
Uma outra fotografia, captada no meio da rua, pertinho do
Café Guedes, então uma barraca, mostra-me com meu irmão Vladimiro em
tempo de S. Paio. Vê-se ao fundo o arco e, não sei se pela festa ou não,
ambos temos um brinquedo nas mãos. Para nós, nesse tempo, a festa era
exactamente isso, o luxo dum brinquedo. E uma agitação enorme na casa.
Meu pai franqueava a porta aos inúmeros amigos que vinham de todo o
lado. Havia sempre enguias fritas, caldeiradas, escabeche, bolinhos de
bacalhau, padas de UI ou de Pardilhó, arroz doce, muita conversa,
jogatina de cartas, canecas e o que mais calhava.
Inolvidável era o espectáculo dos barcos que chegavam
apinhados de gente, o foguetório, a algaraviada, os bailaricos
improvisados com uma gaita-de-beiços que fosse. Por vezes, os barcos
eram tantos que já só conseguiam amarrar às rés dos que já lá estavam. E
havia ainda as bateiras negras, polvilhadas de casca de arroz,
carregadas de melancias e melões das terras marinhoas.
Eu com meu irmão Vladimiro.
Ao fundo, vê-se um arco do S. Paio e o cais da rampa, cuja demolição foi
um crime.
Nas mãos, temos um luxo,
brinquedos de lata, impossíveis hoje face à legislação, como de resto
seriam censurados filmes como Aniki-Bó-Bó ou «La Guerre
aux Boutons».
Os velozes anos trouxeram estradas, a ponte, carros e
camionetas que de imediato fizeram naufragar os barcos nas águas do
tempo. Então já eu era rapaz espigadote e o meu S. Paio já não era o
brinquedo de folheta, mas as tentações dos carrosséis, a moeda arriscada
na roda-da-fortuna, os primeiros bailaricos. A roda resplandecia aos
meus olhos com as suas vistosas navalhas mas, sobretudo, com as
harmónicas, que disfarçavam os fatídicos pentes que a palheta sempre
indicava como prémio.
Por entre o formigueiro, via os jogadores da vermelhinha, os
propagandistas, as doceiras, os que cantavam e dançavam numa animação
sem fadiga; num magote, cantava-se ao desafio; noutro bulhava-se por
causa do vinho. Os vendedores de melancias cabeceavam nos seus melões e
nos barcos já se tinham disposto as velas para resguardar da orvalheira
fria da noite os que dormitariam nas esteiras até à hora de partir entre
berros e foguetes.
Foram passando os anos e, em cada um se foi modificando a
festa do Senhor S. Paio e, bem assim, se foram modificando outras
festividades que ocorriam um pouco por todo o Distrito. Hoje, eu sei que
estes festejos não têm o peso histórico da Nossa Senhora dos Remédios ou
das romagens a S. Tiago de Compostela. É recente (falamos de séculos) na
nossa História a ria de Aveiro e, naturalmente, a formação do sítio que
hoje se chama Praia da Torreira. Como se iniciou o culto de S. Paio?
Não sei. Deixo isso para estudiosos com mais vagar. O que
tenho por certo é que se veneravam outras datas, outros Santos(as), como
a Stª Marinha em Avanca ou a Sr.ª do Monte em Salreu. O que tenho por
certo é que da Murtosa, de Cacia, de Aveiro, vinham barcos pejados de
gente para os festejos de 15 de Agosto em Salreu e que hoje já não vêem.
Aos festejos da Sr.ª da Saúde ainda se deslocam (a pé!) centenas de
romeiros da Murtosa e de Veiros (sobretudo) não se verificando isso nas
restantes freguesias. Porquê? Volto a ignorar. Constato tão-somente os
factos. E assim tenho por certo o quanto os festejos do S. Paio diziam a
todas as gentes ribeirinhas. Antes, muitos dias antes se alvoroçava o
povo, se combinava a ida, se ajustavam barqueiros. Quem se demorava e
não arranjava lugar, fazia dezenas de quilómetros a pé para apanhar os
barcos na Béstida. Outros (tenhamos presente que esses anos eram anos de
intensa vida agrícola, sem tractores, totalmente dependente dos animais
e de extrema escassez de dinheiro) que ou quando não podiam de todo ir,
esperavam os que tinham ido nos cais e quando chegavam os mercanteis e
os moliceiros da festa, atafulhados com os seus familiares e amigos,
armavam no terreiro grossa festa, assim prolongando a de todos quantos
tinham tido a felicidade de ir e saciando as suas ânsias e frustrações.
Era o S. Paio dos augados, celebrado em alguns textos e belissimamente
recuperado da memória pelo grupo musical A Pardilhós. À boca do esteiro
de Salreu, no alto da casa dos Garridos, morou num nicho numa imagem do
S. Paio pequenino durante muitos anos. A casa ainda lá está, envelhecida
e muda.
Dia de S. Paio. Foto de meu
pai, tirada da nossa varanda. Os barcos vão chegando. A alegria é
espontânea, havendo pares que dançam.
O nicho também. Quanto à imagem do S. Paio, essa,
desapareceu, como desapareceu sem se saber como o S. Paio dos augados,
ou pequenino, vale o mesmo.
Os velozes anos... Sabem os mais velhos como de facto o tempo
foge. Mas as mudanças que durante séculos se operavam suavemente são
agora clivagens profundas e dolorosas, já não entre gerações, mas na
própria geração – se me permitem dizê-lo – já que as imagens de hoje
têm, amanhã, o rosto desfigurado. Dizia atrás que desapareceu o S. Paio
dos augados. Mas também o outro e, no entanto, todos os anos, a 7/8 de
Setembro, acorrem à Torreira multidões vindas de toda a parte. Já a baía
da Torreira está deserta de barcos, já não aportam as bateiras dos
melões e das melancias. Sim, ainda se vendem cavacas e bolos de gema,
neste começo de século ainda há quem venda camarinhas mas... Que é feito
da minha festa? Existe, persiste ainda e, todos os anos, lá estou. Ando
na velha avenida, sozinho, entre a mexida multidão, abeiro-me da Ria e
olho, mastigando os meus silêncios, a paisagem das minhas memórias. Na
maré das horas, sempre, sempre velozes, fazem-se horas do fogo preso,
que minha mulher tanto gosta de ver. Cada vez a acompanho menos. Prefiro
ir para casa, onde, sozinho, bebo o último copo da noite, com meu pai,
enquanto os foguetes silvam pelo céu e se desfazem em lágrimas de
pólvora por dentro do meu peito.
Havia sempre lugar para mais
um no formigueiro. (Foto Guedes).
Depois, a aragem fria da noite tudo dissipará. Alguns dos
romeiros voltarão a reencontrar-se talvez no S. Miguel, em Arouca.
Anoitecerá cada vez mais cedo e tudo esquecerá. Por mais um ano.
Sérgio Paulo Silva |